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Monday, February 27, 2006

HIPPIES 71

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O SISMO DA NOVA UTOPIA

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «O Século Ilustrado», coluna «Futuro», 27-2-1971

Até há pouco tempo era escassa, em português, a bibliografia sobre a juventude do nosso tempo. Mas à medida que o fenómeno ultrapassou a fase de sintoma para se declarar explosivo e uma das principais revoluções não violentas do nosso tempo, os editores portugueses, percebendo a estratégia, utilizaram táctica condizente.
E alguns títulos apareceram nos escaparates, sobre a juventude em geral e os «hippies» em particular: «Os Hippies», reportagem da «Time-Life», em edição da Europa-América; «Os Hippies - Quem os Conhece», na colecção « Cadernos Dom Quixote», são dois dos mais recentes. Na Colecção «Cadernos do Século», anuncia-se para o número 9 o título «Juventude a Relações Humanas», que irá corresponder ao interesse suscitado por um tema cada vez mais controverso.
Nele, pelo menos, convergem forças de tal modo importantes e dele se esperam mutações de tal modo profundas, que não admira esta expectativa, geral, mesclada de simpatia e de hostilidade. Ainda quando a Imprensa articula críticas ou diatribes contra os «hippies», nunca deixa de acentuar que eles pretendem coisas simples e, afinal, velhas de sempre: paz, liberdade, amor, eis uma trilogia que entrou na banalidade de todas as épocas, lugares-comuns que os absurdos da idade tecnológica têm, ao que parece, imensa dificuldade em permitir, aceitar e compreender.
Os profetas da Nova Utopia apenas desejam coisas «impossíveis» porque a marcha da sociedade e da História tornou impossíveis as coisas mais óbvias e necessárias. Apenas porque um pretenso progresso tecnológico vem dificultando as mais elementares e básicas e radicais das aspirações humanas. Eles apenas se revoltam contra o que oprime e reprime o homem, impossibilita a existência, corrompe a liberdade. O «impossível» deles esteve, afinal, como possível no sonho de todos os que trabalharam e sonharam pelo progresso humano.
Este mito - o do progresso -, indissoluvelmente ligado a outro - o do futuro -, pode criticar-se enquanto mito, mas a verdade é que tem constituído a mola-real, a ideia-força que lançou o homem, mergulhado no medo, no desespero e no niilismo, para além de si próprio, das suas fronteiras a limitações.
Se é verdade que um intrincado tecido mitológico recobre hoje o cérebro humano que, bombardeado pelos «mass media», não tem grande capacidade de raciocínio e de paixão crítica, isso não impede alguns de considerarem como lícitos certos mitos que, ao contrário da maioria, são positivos e empurram os homens para a frente, para a saída da caverna platónica... Esses mitos não são obstáculos ao progresso, mas o seu motor, o próprio progresso, desde que aliados, sempre, ao conhecimento da realidade histórica onde se implantem.
Numa tradução para língua espanhola (1), Eugen Bohler distingue entre mitologia a ideologia que, embora algumas vezes sejam a mesma coisa, outras vezes se separam e mesmo opõem. Tudo está em saber que espécie de mitos compõem o sistema estudado. No mito do futuro encontra Eugen Bohler a origem de muitos outros, pois a distanciação ou ruptura que ele abre ao pensamento terá de ser colmatada (preenchida) com uma rede mitológica consciente ou inconscientemente elaborada pela colectividade (através de todas as suas linguagens artísticas), cindida essa colectividade entre presente e não presente.
Esta psicologia do mito, talvez discutível, não deixa de apontar vantajosas conclusões para diagnóstico de uma juventude que fez do presente-passado tábua rasa, começando a dar exemplos de presente-futuro, que todas as academias e fortalezas e sistemas do mundo logo combateram a reprimiram, denegrindo e deturpando sempre que não podiam usar meios mais violentos. Cite-se, por exemplo, a maneira como foram caluniados os festivais de Wight e de Woodstock.
No fundo, a juventude utopista do nosso tempo nada mais quer do que seguir a linha que se pode vincular, por exemplo, ao Platão da «República». É estranho como com tão clássico e greco-latino programa, hoje os descendentes de Platão, Campanella ou de «sir» Thomas Morus - sonhador incorrecto, malcriado a incómodo, como se sabe - não obtêm a simpatia dos mais idosos e experientes: pais ou professores encarregados de tutelar as novas gerações.
Quem ler, através de uma recente tradução para espanhol(2), «As Utopias Socialistas», concluirá que a juventude neo-utopista de hoje nada mais faz do que pôr em prática as velhas teorias da nossa velha e respeitável cultura, de que são exemplos já muito próximos H.G. Wells, Júlio Verne, George Orwell e Aldous Huxley.
Ou será que a utopia contém sempre uma dose de crítica à realidade constituída? Sonhar o futuro, tal como a «alma» humana o quer e necessita, seria, assim, uma incómoda maneira de abanar o presente. Assim como um sismo de média violência. Assim como o sismo que na prototípica cidade de Los Angeles só assustou os que aí não estão acostumados a ser deles - sismos humanos - os seus próprios promotores.
Entre os inovadores a visionários, sempre houve homens « subterrâneos» que, educados ou não por Dostoievski, irromperam à luz do Sol com uma perigosa força cataclísmica. Daí que os pacíficos, os barbudos e pobres (desarmados) profetas da Nova Utopia sejam olhados com tanta reserva e, muitas vezes, de armas na mão, quando a verdade que eles sonham é apenas um lugar-comum de todos os tempos e de todos os lugares - cristãos ou budistas - em que ainda não havia televisão: o sonho da comunidade tribal onde todos possam viver a deixar viver. Como é que programa tão simples e tão lindo, pode assustar-nos tanto?
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(1) «Problema del Hombre Moderno», Eugen Bohler, Alianza Editorial, Madrid, 1967.
(2) «Las Utopias Socialistas», de A.L. Morton, Ediciones Martinez Roca, Barcelona, 1970.
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «O Século Ilustrado», coluna «Futuro», 27-2-1971
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