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Friday, March 03, 2006

R. DE CARVALHO 66

raul-1
- notas de leitura – autores em que ele se leu


RAUL DE CARVALHO, POETA ABSOLUTO(*)

3/3/1966 - Hesitei em escrever este artigo sobre Raul de Carvalho, artigo que não pretende ser crítico mas apenas o testemunho de um leitor. Raul de Carvalho pareceu-me sempre um poeta de tal modo evidente e absoluto, de tal modo à prova de análise e de crítica , que difícil ou impossível me parece demonstrar como é e porque é assim. Perante um poeta tão evidente, que dizer? Que fazer? Hesitei e ponderei os argumentos de pessoas utilitárias e práticas, que poderiam classificar de indesejável, importuno ou incómodo o propósito de escrever sobre Raul de Carvalho e todos os problemas que a sua poesia levanta. Ponderei e concluí que, de facto, terei de ser incómodo, importuno e indesejável ao falar sobre Raul de Carvalho, mau grado os argumentos das pessoas sensatas e a razão dos que têm sempre razão (porque não sabem ter mais nada). (...)
Um desses argumentos é, por exemplo, o de que o articulista não deve distrair o presumível leitor com problemas secundários, quando há problemas vitais a tratar e a resolver; nem desmoralizar as massas com artigos sobre poesia e poetas "decadentes"; nem complicar deliberada e "demasiadamente" o que é simples. Há um dever de urgência - dizem os sensatos - para quem escreve relativamente a quem lê. Não parece - dizem - que se deva perder tempo (e fazê-lo perder) com escritores líricos ou (ainda por cima) místicos, quando uma doutrinação "realista" (dizem eles) é agora mais necessária e urgente do que nunca.

De outro ponto de vista - insensato -, porém, havia a considerar isto: tema em que os críticos não gostam de pegar - porque difícil, proibido ou perigoso - eis precisamente o tema em que se deve pegar, quando se não é nem crítico, nem sensato, nem realista. E eis porque me pareceu útil, mesmo muito útil, testemunhar sobre Raul de Carvalho, poeta absoluto.

Em Raul de Carvalho, a constante que chamaríamos mística, na sua obra, sugere uma série de comentários generalizáveis aos escritores que, sem partilharem uma crença ou religião organizada, se confessam religiosos. Eis um dos temas perigosos e eis onde valerá a pena ficar algum tempo, gastar algumas palavras.
Diga-se, entretanto, que uma atitude como a sua, tem tudo e todos contra si, nada nem ninguém a favor. Nada mais incómodo para as religiões organizadas do que os espíritos "religiosamente livres" ou "livremente religiosos". E nada mais importuno também para os não religiosos. O deus dos poetas - espeleólogos de um absoluto que é deles e é lá com eles - não é o deus das igrejas nem o dos metafísicos. Não é nada de absoluto mas algo de relativo que se pretende tornar absoluto.
Não fora o receio de parecer pedante e a simples enumeração dos poetas que falaram do seu deus quase não teria fim. Místicos não oficiais, "ateo-teístas" como a si próprio se classificaria Teixeira de Pascoaes, acabam quase todos por chegar a uma solução de compromisso em que o medianeiro não é um sacerdote oficial ou oficioso mas o amor e o objecto do amor. Em Dostoievski todos nós sabemos que é a piedade (o amor latu sensu) quem salva todos aqueles homens sem deus, que não acreditam nele e que o não querem, o deus identificável com uma ortodoxia, um dogma, uma ordem clerical. Diríamos que o deus dos poetas é o deus dos heréticos, restando indagar da legitimidade que lhes assiste de praticar uma tal identificação – liberdade = amor = deus e de cantar essa identidade.
Mas terá sentido perguntar o que é ou não é legítimo a um poeta que paga com o corpo as ilegitimidades do espírito? Será justo pedir-lhe mais alguma coisa ou coisa diferente dessa ilegitimidade? O poeta não se definirá exactamente pelas ilegalidades que pratica e não será tanto maior quanto mais graves elas forem?

Depois do surrealismo, deixaria de haver diferença, para o poeta, entre existência poética e existência prática. Na literatura portuguesa, porém, a Oeste da Europa, o surrealismo esteve de passagem e poucos escritores houve que identificassem totalmente a poesia que viveram com a vida que escreveram. Ao optar entre a regra e a excepção, a teoria e a prática, o pensamento e a existência, poucos nomes houve que possam comparar-se e susceptíveis de interessar à vanguarda europeia. Depois de Fernando Pessoa, tudo se passou sem grandes riscos e rasgos.
Por isso Raul de Carvalho permaneceu isolado. O seu caso não podia comparar-se e nenhum outro caso. Numa literatura exclusivamente em competição de talentos, teria de ficar deslocado. Para o situar e compreender, será necessário um campo comparativo muito mais vasto, um padrão que ultrapasse as nossas fronteiras literárias, uma escala de valores muito diferente da que, durante dezenas de anos, os críticos impuseram aqui como única e como a melhor.
Se essa escala não existe, há que o dizer com franqueza e ir procurá-la Se a poesia de Raul de Carvalho reduz certas obras a uma lastimável insignificância, há que interpretá-lo em função disso. Se a sua voz abafa outras vozes, há que o reconhecer sem reticências. Se a sua presença incomoda, não se tente abafá-la porque já é tarde. Se a sua obra formula problemas, inquieta pela complexidade e pelos silêncios, há que saber abordá-la (onde, como e quando), há que o ler com atenção. Se como críticos formos nós a fracassar, responsabilizemo-nos unicamente do falhanço e, como é óbvio, não a ele, não à sua poesia que possivelmente foi demais para isto...
Experiência após experiência, numa oficina de si próprio, Raul de Carvalho procurou caminhos, tentou inovações, viveu total e absolutamente uma aventura sem perguntar nunca, por covardia ou conforto, onde o levava essa aventura, a que abismos o conduzia. Há que optar, e Raul de Carvalho optou.
Nele se pode falar com propriedade de uma existência que foi resistência, uma maneira que o poeta tem de se fazer ao largo e, pelo instinto ou pela imaginação, navegar no rio subterrâneo de que só ele conhece o trajecto.
Pagou , é claro, no corpo essa aventura. Mas em que época ou lugar, não pagou o poeta com o corpo a poesia que (aparentemente) escreveu com as mãos? Onde e quando deixou a poesia de ser descida aos infernos , existência e resistência, combate corpo a corpo, luta de vida ou de morte, solidão, mesa da solidão e teoria da solidão? Onde e quando já houve poetas subsidiados? Ou , se os houve, que fez deles o tempo? A que nada os reduziu?
Poeta irregular, ''experimental'' no melhor e único sentido da palavra experimental, talvez não seja até um poeta de talento. Mas desde quando o talento teve que interessar para que houvesse génio e a arte foi condição prévia para que haja poesia?
Repete-se, talvez, e podem notar-se na sua obra duas ou três constantes temáticas. Mas por fidelidade a si próprio e nunca por escassez imaginativa .
Repete-se porque gira em torno de algumas obsessões centrais com uma persistência quase religiosa. Tão semelhante a um livro de horas, a um diário de guerra ou de exílio, a sua obra é essa procura, essa meditação, essa lenta e dolorosa reelaboração de si próprio. O autor de Parágrafos não separou nunca a experiência da experimentação, o ofício de existir do ofício de escrever.

Poderá falar-se, em Raul de Carvalho, de uma certa teimosia lírica e romântica (ultra-romântica mesmo), de uma tendência mística, de uma crença num sobrenatural pouco explícito e de implicações religiosas possivelmente contraditórias. Poderão outros acusá-lo de metaforização excessiva, caótica libertação de imagens e descontrolo verbal. Outros ainda, sensíveis ao autobiográfico e sem distinguir um palmo adiante do nariz, mui zelosos da pública moralidade e suas saias, dirão que o poeta acusa, em termos bem explícitos hábitos inusitados, propósitos fora do normal e (até quem sabe?) estranhas perversidades. Virão outros, de lente em punho, lamentar-se das anáforas, do discursivismo, da monotonia temática. O catedrático ou crítico oficial das letras queixar-se-á mesmo de que ele não escreveu sonetos e não carpinteirou nada bem os versos, as rimas, as sílabas. Outros, poetas de farda, dirão dele - Raul de Carvalho -, que usa e abusa do discurso coloquial. Para os que gostam de cor-de-rosa, a sua poesia pinta tudo de negro e "decadentista" é o melhor que se poderá dizer dela. Para os que preferem o negro, a poesia de Raul de Carvalho canta demasiado idílica ou idealìsticamente, o amor, a vida e a morte. Qualquer doutor em Estilística, arreliado e furibundo, arrepelando os sedosos cabelos de académico por correspondência e arrebitando o cachimbo de impaciência, o arremeterá por não saber onde o classificar, catalogar, arrumar.
Claro: Todos eles têm razão. Por isso mesmo e graças a eles, é que o poeta existe. Não para agradar à. Estilística e aos doutores, mas para gramar e descer aos infernos, que foi essa e sempre essa e só essa a sua função através do tempo.
Quer os críticos tenham dito que sim, ou dito que não, ou não tenham dito nada - aguardemos que o futuro fale dele. Porque o tempo há-de falar e querer conhecê-lo. Não só como e porque o atesta a obra publicada, não só como e porque o atesta a obra inédita (mais vasta, mais complexa e mais significante do que a publicada,), mas porque, numa e noutra, foi sempre jogada e comprometida nessa obra toda uma existência. A vida é afinal e sempre o preço com que o poeta paga a imortalidade que lhe pertence.
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(*) Com certeza inédito, este texto fala mais do Afonso do que propriamente do Raul. Acho que valeu a pena escrevê-lo.

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