N. KAZANTZAKI 1967
1-2 - kazantzaki-1-ls> segunda-feira, 23 de Dezembro de 2002-scan
NIKOS KAZANTZAKI: O ESPÍRITO DA TERRA(*)
[29-9-1967] - Entre a tirania dos turcos, que dominavam, e o culto católico a que não queriam aderir, Creta e os cristãos cretenses identificaram a sua ortodoxia religiosa com a liberdade política por que lutavam.
Indissoluvelmente ligado à terra onde nasceu, e às suas vicissitudes históricas, herdeiro dessa moral do heroísmo, forjada na luta quotidiana contra o despotismo turco, Kazantzaki reflecte na sua obra e muito em especial na súmula da sua obra, que são estas memórias de «Carta a Greco» (1), o dualismo dramático que caracteriza uma concepção simultaneamente épica e trágica da existência.
«Uma coisa só dá dignidade ao homem: viver e morrer como um bravo» (pág. 495) . «Não foram, nem o medo, nem o sofrimento, nem a alegria ou o jogo, que primeiro abalaram a minha alma: foi a paixão da liberdade» (pág. 60) .
Kazantzaki é a voz da terra, da sua terra de Creta, e quando grita «liberdade ou morte» (o titulo de um seu romance) é Cristo e a palavra de Cristo que vêm imediatamente associados. Com ele fala e respira a terra natal, oprimida por estrangeiros, sufocada por tiranos sanguinários: este absoluta identificação entre pátria e religião, Creta e Cristo, este «espírito da terra», este temor respeitoso por uma herança histórica, se em muitos autores inspiram ou implicam a directa apologia de uma ética retrógrada e conservadora, em Kazantzaki vêm animados por um sopro sempre apaixonado, tantas vezes renovador e por vezes crítico, impulsos que o redimem de muitos preconceitos que proliferam na sua obra.
Mesmo quando se diz ou se supõe ateu, é um crente onde vivem e se agitam os mitos milenários de tradições, que, embora opostas, ele torna convergentes; de um lado o paganismo helénico e a sua mitologia do instinto, da vitalidade, do culto físico do corpo, da luminosidade mediterrânica, do sol, das raízes, dos antepassados; do outro, a tradição cristã na mitologia dos seus mártires; por último, o conhecimento livresco (creio que Kazantzaki nunca visitou o Extremo Oriente) da espiritualidade budista (sem mitologia?).
«LIBERDADE OU MORTE»
Quem escreveu «O Cristo Recrucificado» e «Liberdade ou Morte» (talvez o único poema épico do mundo moderno), quem assumiu quase sempre posições profundamente empenhadas na independência do seu povo, quem fez, em tantas ocasiões, causa comum com os oprimidos, esteve perto da síntese que desejou e pertence por isso à linhagem de escritores que, na literatura ocidental, dilacerados entre uma tradição religiosa demasiado arreigada para a poderem dispensar e um Mundo em progresso com todas as suas exigências de mudança. e movimento, procuraram, por situação geográfica favorável ou por um esforço de vontade esclarecida, unir os extremos, realizar a síntese dos contrários, conciliar os princípios religiosos predominantes no Ocidente e o apelo que vem da espiritualidade oriental, ou ambos com as realidades históricas.
Romain Rolland na França, Tagore na Índia, Teixeira de Pascoaes , em Portugal, são alguns empreendimentos nesse sentido: «ateoteístas», cujo sentido profundamente religioso da existência, lhes não permitia ignorar a realidade e fatalidade do imanente histórico, político e social.
A um panteísmo sempre desperto deve Kazantzaki o cunho de optimismo que sempre o acompanha, com todas as contradições próprias do crente abrasado pela fé e alguns também dos paradoxos que o incréu não desdenharia.
« Carta a Greco» foi o último livro de Nikos Kazantzaki e que ele já não teve ocasião de rever. Escrito meses antes da sua morte, e publicado postumamente, neste testamento espiritual se encontra espelhado o místico da terra e da vida, a maneira sempre apaixonada e dramática de cantar a existência, uma expansão ou transbordante sensibilidade, uma imaginação infinitamente fértil, e sempre esse generoso ímpeto que parece ter herdado de um lutador olímpico, ignorando a indiferença e o realismo cínicos, perseguindo em todos os actos, passos e palavras, o absoluto.
De facto, Kazantzaki viveu e escreveu sempre como se o absoluto estivesse nele, ou nele tivesse incarnado... Possesso de Deus, e como todos os pensamentos dualistas, Kazantzaki vê o Mundo avançando através de uma luta eterna entre os princípios do Bem e do Mal, o espírito da luz e o das trevas(«Todas as aventuras dos santos e dos heróis me pareciam ser o mais simples, o caminho mais realista para o homem»), luta para a qual não há tréguas, e a que ele se entrega de corpo e alma.
Se a empresa de toda a sua vida foi - como declara - reunir em uma só voz (a sua) as vozes de Cristo, Buda e Lenine, ainda que o não tenha conseguido, é já significativo semelhante empenho e tão utópica ambição.
A posição de Kazantzaki que, como todos os místicos e todas as morais de cunho religioso propõe à conduta individual uma superação constante, uma ética de heroicidade, sacrifício pessoal, ascético aperfeiçoamento e entrega à transcendência, bastante vulnerável se apresenta a uma moral mais humana, mais realista, mais prática e utilitária, que, no entanto, não deixa de encontrar nas obras do grande escritor vários motivos de encantamento estético.
Com tudo o que nela haja de ideológica e filosoficamente discutível (até detestável), essa obra é uma das mais extraordinárias do nosso tempo. O nome do escritor que a equívoca adaptação ao cinema do seu Zorba, popularizou de maneira tão injusta, não será esquecido, mesmo quando o tempo demonstrar toda a fatuidade do pensador e do doutrinário.
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(1) Nikos Kazantzaki – Carta a Greco – Trad. de Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho – Nº 40 da Col. «Documentos do Tempo Presente» - Ed. Ulisseia, Lisboa, 1967 – 520 pgs – 70$00
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(*) Este texto de Afonso Cautela, não tão mau como isso, foi publicado no semanário «Vida Mundial», secção crítica de livros, em 29-9-1967
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NIKOS KAZANTZAKI: O ESPÍRITO DA TERRA(*)
[29-9-1967] - Entre a tirania dos turcos, que dominavam, e o culto católico a que não queriam aderir, Creta e os cristãos cretenses identificaram a sua ortodoxia religiosa com a liberdade política por que lutavam.
Indissoluvelmente ligado à terra onde nasceu, e às suas vicissitudes históricas, herdeiro dessa moral do heroísmo, forjada na luta quotidiana contra o despotismo turco, Kazantzaki reflecte na sua obra e muito em especial na súmula da sua obra, que são estas memórias de «Carta a Greco» (1), o dualismo dramático que caracteriza uma concepção simultaneamente épica e trágica da existência.
«Uma coisa só dá dignidade ao homem: viver e morrer como um bravo» (pág. 495) . «Não foram, nem o medo, nem o sofrimento, nem a alegria ou o jogo, que primeiro abalaram a minha alma: foi a paixão da liberdade» (pág. 60) .
Kazantzaki é a voz da terra, da sua terra de Creta, e quando grita «liberdade ou morte» (o titulo de um seu romance) é Cristo e a palavra de Cristo que vêm imediatamente associados. Com ele fala e respira a terra natal, oprimida por estrangeiros, sufocada por tiranos sanguinários: este absoluta identificação entre pátria e religião, Creta e Cristo, este «espírito da terra», este temor respeitoso por uma herança histórica, se em muitos autores inspiram ou implicam a directa apologia de uma ética retrógrada e conservadora, em Kazantzaki vêm animados por um sopro sempre apaixonado, tantas vezes renovador e por vezes crítico, impulsos que o redimem de muitos preconceitos que proliferam na sua obra.
Mesmo quando se diz ou se supõe ateu, é um crente onde vivem e se agitam os mitos milenários de tradições, que, embora opostas, ele torna convergentes; de um lado o paganismo helénico e a sua mitologia do instinto, da vitalidade, do culto físico do corpo, da luminosidade mediterrânica, do sol, das raízes, dos antepassados; do outro, a tradição cristã na mitologia dos seus mártires; por último, o conhecimento livresco (creio que Kazantzaki nunca visitou o Extremo Oriente) da espiritualidade budista (sem mitologia?).
«LIBERDADE OU MORTE»
Quem escreveu «O Cristo Recrucificado» e «Liberdade ou Morte» (talvez o único poema épico do mundo moderno), quem assumiu quase sempre posições profundamente empenhadas na independência do seu povo, quem fez, em tantas ocasiões, causa comum com os oprimidos, esteve perto da síntese que desejou e pertence por isso à linhagem de escritores que, na literatura ocidental, dilacerados entre uma tradição religiosa demasiado arreigada para a poderem dispensar e um Mundo em progresso com todas as suas exigências de mudança. e movimento, procuraram, por situação geográfica favorável ou por um esforço de vontade esclarecida, unir os extremos, realizar a síntese dos contrários, conciliar os princípios religiosos predominantes no Ocidente e o apelo que vem da espiritualidade oriental, ou ambos com as realidades históricas.
Romain Rolland na França, Tagore na Índia, Teixeira de Pascoaes , em Portugal, são alguns empreendimentos nesse sentido: «ateoteístas», cujo sentido profundamente religioso da existência, lhes não permitia ignorar a realidade e fatalidade do imanente histórico, político e social.
A um panteísmo sempre desperto deve Kazantzaki o cunho de optimismo que sempre o acompanha, com todas as contradições próprias do crente abrasado pela fé e alguns também dos paradoxos que o incréu não desdenharia.
« Carta a Greco» foi o último livro de Nikos Kazantzaki e que ele já não teve ocasião de rever. Escrito meses antes da sua morte, e publicado postumamente, neste testamento espiritual se encontra espelhado o místico da terra e da vida, a maneira sempre apaixonada e dramática de cantar a existência, uma expansão ou transbordante sensibilidade, uma imaginação infinitamente fértil, e sempre esse generoso ímpeto que parece ter herdado de um lutador olímpico, ignorando a indiferença e o realismo cínicos, perseguindo em todos os actos, passos e palavras, o absoluto.
De facto, Kazantzaki viveu e escreveu sempre como se o absoluto estivesse nele, ou nele tivesse incarnado... Possesso de Deus, e como todos os pensamentos dualistas, Kazantzaki vê o Mundo avançando através de uma luta eterna entre os princípios do Bem e do Mal, o espírito da luz e o das trevas(«Todas as aventuras dos santos e dos heróis me pareciam ser o mais simples, o caminho mais realista para o homem»), luta para a qual não há tréguas, e a que ele se entrega de corpo e alma.
Se a empresa de toda a sua vida foi - como declara - reunir em uma só voz (a sua) as vozes de Cristo, Buda e Lenine, ainda que o não tenha conseguido, é já significativo semelhante empenho e tão utópica ambição.
A posição de Kazantzaki que, como todos os místicos e todas as morais de cunho religioso propõe à conduta individual uma superação constante, uma ética de heroicidade, sacrifício pessoal, ascético aperfeiçoamento e entrega à transcendência, bastante vulnerável se apresenta a uma moral mais humana, mais realista, mais prática e utilitária, que, no entanto, não deixa de encontrar nas obras do grande escritor vários motivos de encantamento estético.
Com tudo o que nela haja de ideológica e filosoficamente discutível (até detestável), essa obra é uma das mais extraordinárias do nosso tempo. O nome do escritor que a equívoca adaptação ao cinema do seu Zorba, popularizou de maneira tão injusta, não será esquecido, mesmo quando o tempo demonstrar toda a fatuidade do pensador e do doutrinário.
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(1) Nikos Kazantzaki – Carta a Greco – Trad. de Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho – Nº 40 da Col. «Documentos do Tempo Presente» - Ed. Ulisseia, Lisboa, 1967 – 520 pgs – 70$00
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(*) Este texto de Afonso Cautela, não tão mau como isso, foi publicado no semanário «Vida Mundial», secção crítica de livros, em 29-9-1967
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