JACQUES MONOD 1970
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JACQUES MONOD: FILÓSOFO INCLASSIFICÁVEL(*)
[5-12-1970,«O Século Ilustrado»] - Antigo militante do Partido Comunista Francês (de 1943 a 1945) e Prémio Nobel de Medicina (1965), Jacques P.Monod acaba de publicar um livro - «O Acaso e a Necessidade» - que está fatalmente votado à mais viva polémica.
Entre outras opiniões de choque, o famoso biologista sustenta a tese de que o materialismo dialéctico não tem base científica:
« Essa epistemologia que é o materialismo dialéctico - uma teoria do conhecimento radicalmente falsa à luz do conhecimento científico», escreve ele.
Não recusa a análise económica empreendida pelo marxismo mas com restrições: «Temos necessidade de uma doutrina socialista nova, radicalmente nova - diz. - Tem de se começar por pôr de lado o marxismo e reconstruir uma doutrina. Somente depois poderemos reincorporar nesta o que se pode e deve conservar do marxismo, principalmente a análise económica.»
Se Monod não tivesse abandonado o Partido em 1945, já teria sido convidado a isso, pelo «escândalo» das suas presentes afirmações. Atacado por Althusser, aquando da lição inaugural que proferiu no Collège de France, explicou-se desta maneira:
«O meu profundo divórcio com o marxismo descreve-se em poucas palavras: o materialismo dialéctico é incompatível com a ciência. Aquele consiste numa interpretação subjectiva da natureza, inaceitável para um homem de ciência. O materialismo dialéctico é uma ideologia totalizante - não digo totalitária - que pretende abraçar tudo, o que é incompatível com a atitude científica.»
Mas nem só a sua posição política é de choque. Também no campo especulativo soa a heresia (e de que maneira!).
Uma das mais famosas é a dicotomia que estabelece entre objectivo e projectivo, termo este que Monod prefere a subjectivo. Sustenta ele que o «escândalo da vida» reside no carácter «projectivo» desta, num universo onde tudo é objectivo, sem carácter finalista. Pergunta ele:
«Sendo assim, põe-se a questão: será que a ciência - a física, a química - que ignora e deve ignorar toda a espécie de finalismo, pode prestar contas integrais da aparição e desenvolvimento dos seres vivos, esses objectos dotados de projecto que trazem em si essa faculdade a que se chamou teleonomia? »
Outra das suas teses mais conhecidas (e tantas são que nunca uma crónica as poderia esgotar) é a concepção de «o ser vivo como uma máquina», tema que apresentou nos Encontros de Genebra em 1965 e único texto de Jacques Monod que existe editado em Portugal.
Consequência filosófica inevitável dessa tese:
« Não faz qualquer sentido perguntarmos se somos livres (...). O que dá a impressão subjectiva de liberdade é que os seres vivos são mecanismos dotados de um altíssimo grau de autonomia, relativamente ao meio ambiente. O comportamento é sempre ditado, em grande, em enorme parte, por mecanismos internos. É por isso que a palavra liberdade nunca deveria figurar, salvo como metáfora, na terminologia científica.»
Paradoxal mas aliciante é a crítica que Jacques P.Monod faz simultaneamente a Hegel - «esse cancro filosófico»! -, ao materialismo dialéctico, ao positivismo de Comte e Spencer:
«Os marxistas opõem-se sempre aos positivistas. Pergunto a mim mesmo porquê. Afinal de contas o marxismo não representa mais do que uma certa escola do positivismo, e tendo, em minha opinião, muitos mais erros do que o positivismo de Augusto Comte, ou mesmo do que o de Spencer, acerca do qual as gerações actuais não retêm senão o optimismo um pouco ingénuo. Acusaram-se os positivistas por acreditarem que o desenvolvimento da ciência segregaria automaticamente uma sociedade melhor e a dignificação do homem... Que isso surgiria por si... Mas isso faz igualmente parte da «Vulgata» do marxismo.»
Com estas transcrições de Jacques Monod pretendi apenas chamar a atenção do leitor para um pensador que me parece fascinante, para um rebelde da ciência e da filosofia, para um «out-sider» do Ensino - muito antes de 1968, foi ele um dos primeiros a denunciar todo o ensino científico francês -, para um escritor de ideias com a grande virtude da clareza e do rigor.
Citando algumas passagens da entrevista que Jacques Monod concedeu ao semanário «Le Nouvel Observateur», apenas tentei provocar, em quem se interesse por tais assuntos de fronteira (fora das convicções académicas, das confortáveis ortodoxias, das instituições estabelecidas) o gosto urgente de o ler e conhecer mais a fundo.
Um pensamento estimulante de controvérsias é sempre um pensamento para o futuro.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas, apesar de simples nota de leitura, foi publicado no semanário «O Século Ilustrado», Lisboa, «O Futuro em Questão», 5-12-1970 e no jornal «Notícias da Beira», Moçambique,«Notícias do Futuro», 11-12-1970
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JACQUES MONOD: FILÓSOFO INCLASSIFICÁVEL(*)
[5-12-1970,«O Século Ilustrado»] - Antigo militante do Partido Comunista Francês (de 1943 a 1945) e Prémio Nobel de Medicina (1965), Jacques P.Monod acaba de publicar um livro - «O Acaso e a Necessidade» - que está fatalmente votado à mais viva polémica.
Entre outras opiniões de choque, o famoso biologista sustenta a tese de que o materialismo dialéctico não tem base científica:
« Essa epistemologia que é o materialismo dialéctico - uma teoria do conhecimento radicalmente falsa à luz do conhecimento científico», escreve ele.
Não recusa a análise económica empreendida pelo marxismo mas com restrições: «Temos necessidade de uma doutrina socialista nova, radicalmente nova - diz. - Tem de se começar por pôr de lado o marxismo e reconstruir uma doutrina. Somente depois poderemos reincorporar nesta o que se pode e deve conservar do marxismo, principalmente a análise económica.»
Se Monod não tivesse abandonado o Partido em 1945, já teria sido convidado a isso, pelo «escândalo» das suas presentes afirmações. Atacado por Althusser, aquando da lição inaugural que proferiu no Collège de France, explicou-se desta maneira:
«O meu profundo divórcio com o marxismo descreve-se em poucas palavras: o materialismo dialéctico é incompatível com a ciência. Aquele consiste numa interpretação subjectiva da natureza, inaceitável para um homem de ciência. O materialismo dialéctico é uma ideologia totalizante - não digo totalitária - que pretende abraçar tudo, o que é incompatível com a atitude científica.»
Mas nem só a sua posição política é de choque. Também no campo especulativo soa a heresia (e de que maneira!).
Uma das mais famosas é a dicotomia que estabelece entre objectivo e projectivo, termo este que Monod prefere a subjectivo. Sustenta ele que o «escândalo da vida» reside no carácter «projectivo» desta, num universo onde tudo é objectivo, sem carácter finalista. Pergunta ele:
«Sendo assim, põe-se a questão: será que a ciência - a física, a química - que ignora e deve ignorar toda a espécie de finalismo, pode prestar contas integrais da aparição e desenvolvimento dos seres vivos, esses objectos dotados de projecto que trazem em si essa faculdade a que se chamou teleonomia? »
Outra das suas teses mais conhecidas (e tantas são que nunca uma crónica as poderia esgotar) é a concepção de «o ser vivo como uma máquina», tema que apresentou nos Encontros de Genebra em 1965 e único texto de Jacques Monod que existe editado em Portugal.
Consequência filosófica inevitável dessa tese:
« Não faz qualquer sentido perguntarmos se somos livres (...). O que dá a impressão subjectiva de liberdade é que os seres vivos são mecanismos dotados de um altíssimo grau de autonomia, relativamente ao meio ambiente. O comportamento é sempre ditado, em grande, em enorme parte, por mecanismos internos. É por isso que a palavra liberdade nunca deveria figurar, salvo como metáfora, na terminologia científica.»
Paradoxal mas aliciante é a crítica que Jacques P.Monod faz simultaneamente a Hegel - «esse cancro filosófico»! -, ao materialismo dialéctico, ao positivismo de Comte e Spencer:
«Os marxistas opõem-se sempre aos positivistas. Pergunto a mim mesmo porquê. Afinal de contas o marxismo não representa mais do que uma certa escola do positivismo, e tendo, em minha opinião, muitos mais erros do que o positivismo de Augusto Comte, ou mesmo do que o de Spencer, acerca do qual as gerações actuais não retêm senão o optimismo um pouco ingénuo. Acusaram-se os positivistas por acreditarem que o desenvolvimento da ciência segregaria automaticamente uma sociedade melhor e a dignificação do homem... Que isso surgiria por si... Mas isso faz igualmente parte da «Vulgata» do marxismo.»
Com estas transcrições de Jacques Monod pretendi apenas chamar a atenção do leitor para um pensador que me parece fascinante, para um rebelde da ciência e da filosofia, para um «out-sider» do Ensino - muito antes de 1968, foi ele um dos primeiros a denunciar todo o ensino científico francês -, para um escritor de ideias com a grande virtude da clareza e do rigor.
Citando algumas passagens da entrevista que Jacques Monod concedeu ao semanário «Le Nouvel Observateur», apenas tentei provocar, em quem se interesse por tais assuntos de fronteira (fora das convicções académicas, das confortáveis ortodoxias, das instituições estabelecidas) o gosto urgente de o ler e conhecer mais a fundo.
Um pensamento estimulante de controvérsias é sempre um pensamento para o futuro.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas, apesar de simples nota de leitura, foi publicado no semanário «O Século Ilustrado», Lisboa, «O Futuro em Questão», 5-12-1970 e no jornal «Notícias da Beira», Moçambique,«Notícias do Futuro», 11-12-1970
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