IRENE LISBOA 57
57-02-15-ls- irene-1 revisão em 4-2-2002
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no quinzenário de Moura «A Planície», 15-2-1957
(*) Hipóteses sobre a obra de Irene Lisboa: «Uma Mão Cheia de Nada, Outra de Coisa Nenhuma»
por Afonso Cautela
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«Nunca a arte mais perfeita produziu obra de tanta simplicidade» - Wagner
Natal de 1955 - Creio que não existe literatura sem raiz lírica; não é literatura a novelística documental, planfletária, folhetinesca, fotográfica, realista e naturalista. Na literatura vamos procurar a superação, a primitiva inocência que corresponde ao real verdadeiro, a transcendência que nos inclui no seio do mistério, a simplicidade, ou para dizer tudo, a poesia.
Perante uma literatura de puro imaginativo, de purificação dos dados sensoriais por uma simpatizante comunhão com o universo, já não podemos aplicar-lhe a nominação de Belo, mas a de Sublime. Nem crítica de costumes, nem análise psicológica, nem efabulação e trama de personagens individuados, nem teses de combate. É o Reino Poético não por oposição mas por superação ao Dialéctico.
Quando se fala de arte pura, de arte pela arte, é esta que vemos e não outra; a arte actual, embora a medo, tende para o espírito da música. Não queremos com isto repor aquela ingenuidade do Afonso Lopes Vieira que dizia ser a poesia mais para ouvir do que para ler; não é da analogia auditiva que falamos, mas da essência comum à grande música de sempre e à literatura cujo advento esperamos: o mergulho no Cosmos por obra de Amor.
Goza a música da prerrogativa de ter sido a primeira arte a dispensar o teor descritivo. Expressão pura em vez de significação comprometida. Forma em vez de representação. Sabe-se que é essa, a expressão pura, a tendência de toda a arte moderna. Abandonada a obsessão do «parecido» em pintura, do «entendível» em poesia, do «realista» em novelística e dramaturgia, do «folhetinesco» em cinema, falta a síntese de todos esses caminhos; ela não tardaria a surgir.
E surgiu. É o livro de Irene Lisboa uma ilha no meio do oceano. Os comentários que ouvimos e lemos, denunciam uma santa ignorância da sua génese. Falco deita a primeira rede ao oceano que os monstros da novelística não deixam visitar por fadas. Falco tem poucos e dis-persos aliados: a poesia popular anónima e as composições infantis de crianças (porque há composições de crianças, a maioria, que não são infantis, por indús-tria e (educação) dos adultos civilizados, que percebem tudo de tudo mas não percebem nada de nada). Por isso Falco crisma, com medo dos críticos, de historietas as suas sagas sublimes, além de que o titulo já a resguardava bastante: Uma Mão Cheia de Nada...Por isso houve quem dissesse: «Mas o livro não ensina nada...», «Mas o livro não diz coisa nenhuma...» Pois não, não cita coisa nenhuma. E porque havia de dizer?
Não foi por acaso que José Régio descobriu Falco, José Régio profetizou assim o aparecimento deste livro:
«Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas. Negastes a Deus, para vos adorardes a vós próprios. Mas o vosso trono é da madeira podre, e a vossa divindade não dura mais que um dia! Morrei par uma vez, mortos! e ressuscitai! O Livro que vos trago está em branco, porque só pode ser cheio em Espírito e Verdade. Nada mais vos tenho a dizer por hoje».
(A Salvação do Mundo, páginas 301/302).
Falco realizou a profecia: o livro está em branco. Eis o Evangelho. Que muitos mais surjam e que da literatura se possa dizer que transcendeu a nossa terrenal e abúlica condição; que seja super-vivência e não existência (onde se metem os existencialistas?); que seja profecia e não fotografia, comunhão e não desagre-gamento, Amor e não Ódio.
De toda a novelística naturalizante, radicada num pensamento realista que vem do pai Aristóteles, se poderia dizer o que Wagner dizia da música espectacular, da ópera, que ele aliás cultivou largamente:
«Só a pode fazer nascer (à meditação) a música onde a vista perde o domínio, os olhos cessam de ver os objectos com a intensidade habitual; muito pelo contrário, sendo nós impressionados superficialmente pela música, mais agitados que penetrados por ela, procuramos imperiosamente ver, mas de modo algum pensar» (Do livro Beethoven, página 76 da tradução portuguesa).
A ópera é para a música o que a novelística bem-pensante (Huxley), crítica (Lewis ou Sartre), socializante, apologética (mística ou sofistica), é para a Poesia, para o Espírito da Literatura. E é o livro do Espírito que nós andamos a descobrir.
A contemporaneidade e afinidade de ideias de Wagner e Nietzsche (dissidente daquele a partir da altura em que aquele abjurou Diónisos e se converteu a Apolo...) explica a coincidência de muitos pontos deste seu livrinho, em boa hora vertido para português, e a não menos fundamental «A Origem da Tragédia», inesgotável programa duma estética idealista, onde a Poesia é descoberta embora os nossos estetas ainda a não tenham... descoberto.
Para Wagner a música é «a anunciação da essência das coisas» (pagina 42).
Abatem-se os dualismos ontológicos e lógicos, para existir a pura recriação das essências. Só para quem vê o Cosmos dividido em dois, o material e o imaterial, o físico e o psíquico, o do sujeito e o do objecto, só para quem se obstina em conceber tudo à imagem e semelhança dos dados do senso-comum, não entende a excepção duma arte assim comunicativa e comunicante, razão e essência de tudo.
Falco, mais perfeita que os melhores dos poetas líricos, que bem vistos não passam de uns lamuriosos choradores de mágoas sentimentais, distancia-se do lirismo vigente porque não desdobra o eu do não-eu, de modo a hiperexaltar aquele. Assim substitui por comunhão o que era conflito no mais realismo, incapaz de visionar a Unidade dentro da Multiplicidade, a Transcendência na Imanência, o Espírito na Letra.
São quase todas as historietas narradas em eu, sem que o eu lembre alguma vez a pessoa existente da autora. O eu que fala pela sua voz é o eu das crianças, das aves, da agulha, do sol, da flor da murta... Daí a inserção quase contínua no absurdo; a narrativa decorre em terra de ninguém, a terra que por hoje ainda é só das crianças que o são, dos músicos geniais, de alguns poetas e desta narradora sublime:
Não está aí o mundo partido em dois, dia-partido, é um só, poético, puro, essente. É ele que fala nessa primeira pessoa do singular, a matriz que tanto deu as gerações de pássaros e flores, como as linhagens de trovadores e poetas desde que o mundo é mundo. Falco - intermediário do outro-mundo, entre o Sonho e a Razão, a Inocência e a Aparência, cheia esta de intercepções, de ilustrativos, inclusivamente os que desadornam o livro e que mais o prejudicam do que enriquecem, na opinião dos espíritos mais musicais (ou poéticos) do que plásticos (ou dialécticos).
Não é um mundo fechado o que assim reconquistou o Paraíso, porque é um mundo de Amor. De exclusão e inimizade é o do que pelas aparências e acidências, pela pormenorização esterilizante, (esse monumento «realístico» que são «As Vinhas da Ira!») pelo romanesco com desculpa de estar com atenção ao social orgânico, ao verídico, desintegra tudo num mar de ácido sulfúrico.
O mundo, não é a três dimensões, caríssimos dialécticos (históricos ou a-históricos) nem se reduz ao gástrico, aos mecanismos de produção e às ambiguidades do capital; nem ao existencial, corroente e desesperador, de melenas na testa.
Se a acção padagógica fosse o que já devia ser (e nós lutamos para que o seja), se em lugar de os homens se digladiarem num jogo de interesses, estudassem pedagogia, um livro como o de Falco podia fazer à humanidade melhor bem do que mil programas de regulamento económico.
«A Salvação do Mundo» não será, como se infere da obra de José Régio, obra política, isto é, dialéctica; será obra de pedagogia, isto é, poética.
Nada fareis, senhores inteligentes, sem esta lição de amor que a humanidade, depois de milhares de anos terem rolado sobre Sócrates e Cristo, começa a soletrar na boca de mestres que o Mestre renovam, jograis de Deus que são, no Espírito e nunca na Letra dos Evangelhos.
Natal de 1955
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Este texto de Afonso Cautela foi publicado no quinzenário «A Planície», de Moura, suplemento «Ângulo das Artes e das Letras», 15/2/1957
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POÉTICA E DIALÉCTICA (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no quinzenário de Moura «A Planície», 15-2-1957
(*) Hipóteses sobre a obra de Irene Lisboa: «Uma Mão Cheia de Nada, Outra de Coisa Nenhuma»
por Afonso Cautela
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«Nunca a arte mais perfeita produziu obra de tanta simplicidade» - Wagner
Natal de 1955 - Creio que não existe literatura sem raiz lírica; não é literatura a novelística documental, planfletária, folhetinesca, fotográfica, realista e naturalista. Na literatura vamos procurar a superação, a primitiva inocência que corresponde ao real verdadeiro, a transcendência que nos inclui no seio do mistério, a simplicidade, ou para dizer tudo, a poesia.
Perante uma literatura de puro imaginativo, de purificação dos dados sensoriais por uma simpatizante comunhão com o universo, já não podemos aplicar-lhe a nominação de Belo, mas a de Sublime. Nem crítica de costumes, nem análise psicológica, nem efabulação e trama de personagens individuados, nem teses de combate. É o Reino Poético não por oposição mas por superação ao Dialéctico.
Quando se fala de arte pura, de arte pela arte, é esta que vemos e não outra; a arte actual, embora a medo, tende para o espírito da música. Não queremos com isto repor aquela ingenuidade do Afonso Lopes Vieira que dizia ser a poesia mais para ouvir do que para ler; não é da analogia auditiva que falamos, mas da essência comum à grande música de sempre e à literatura cujo advento esperamos: o mergulho no Cosmos por obra de Amor.
Goza a música da prerrogativa de ter sido a primeira arte a dispensar o teor descritivo. Expressão pura em vez de significação comprometida. Forma em vez de representação. Sabe-se que é essa, a expressão pura, a tendência de toda a arte moderna. Abandonada a obsessão do «parecido» em pintura, do «entendível» em poesia, do «realista» em novelística e dramaturgia, do «folhetinesco» em cinema, falta a síntese de todos esses caminhos; ela não tardaria a surgir.
E surgiu. É o livro de Irene Lisboa uma ilha no meio do oceano. Os comentários que ouvimos e lemos, denunciam uma santa ignorância da sua génese. Falco deita a primeira rede ao oceano que os monstros da novelística não deixam visitar por fadas. Falco tem poucos e dis-persos aliados: a poesia popular anónima e as composições infantis de crianças (porque há composições de crianças, a maioria, que não são infantis, por indús-tria e (educação) dos adultos civilizados, que percebem tudo de tudo mas não percebem nada de nada). Por isso Falco crisma, com medo dos críticos, de historietas as suas sagas sublimes, além de que o titulo já a resguardava bastante: Uma Mão Cheia de Nada...Por isso houve quem dissesse: «Mas o livro não ensina nada...», «Mas o livro não diz coisa nenhuma...» Pois não, não cita coisa nenhuma. E porque havia de dizer?
Não foi por acaso que José Régio descobriu Falco, José Régio profetizou assim o aparecimento deste livro:
«Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas. Negastes a Deus, para vos adorardes a vós próprios. Mas o vosso trono é da madeira podre, e a vossa divindade não dura mais que um dia! Morrei par uma vez, mortos! e ressuscitai! O Livro que vos trago está em branco, porque só pode ser cheio em Espírito e Verdade. Nada mais vos tenho a dizer por hoje».
(A Salvação do Mundo, páginas 301/302).
Falco realizou a profecia: o livro está em branco. Eis o Evangelho. Que muitos mais surjam e que da literatura se possa dizer que transcendeu a nossa terrenal e abúlica condição; que seja super-vivência e não existência (onde se metem os existencialistas?); que seja profecia e não fotografia, comunhão e não desagre-gamento, Amor e não Ódio.
De toda a novelística naturalizante, radicada num pensamento realista que vem do pai Aristóteles, se poderia dizer o que Wagner dizia da música espectacular, da ópera, que ele aliás cultivou largamente:
«Só a pode fazer nascer (à meditação) a música onde a vista perde o domínio, os olhos cessam de ver os objectos com a intensidade habitual; muito pelo contrário, sendo nós impressionados superficialmente pela música, mais agitados que penetrados por ela, procuramos imperiosamente ver, mas de modo algum pensar» (Do livro Beethoven, página 76 da tradução portuguesa).
A ópera é para a música o que a novelística bem-pensante (Huxley), crítica (Lewis ou Sartre), socializante, apologética (mística ou sofistica), é para a Poesia, para o Espírito da Literatura. E é o livro do Espírito que nós andamos a descobrir.
A contemporaneidade e afinidade de ideias de Wagner e Nietzsche (dissidente daquele a partir da altura em que aquele abjurou Diónisos e se converteu a Apolo...) explica a coincidência de muitos pontos deste seu livrinho, em boa hora vertido para português, e a não menos fundamental «A Origem da Tragédia», inesgotável programa duma estética idealista, onde a Poesia é descoberta embora os nossos estetas ainda a não tenham... descoberto.
Para Wagner a música é «a anunciação da essência das coisas» (pagina 42).
Abatem-se os dualismos ontológicos e lógicos, para existir a pura recriação das essências. Só para quem vê o Cosmos dividido em dois, o material e o imaterial, o físico e o psíquico, o do sujeito e o do objecto, só para quem se obstina em conceber tudo à imagem e semelhança dos dados do senso-comum, não entende a excepção duma arte assim comunicativa e comunicante, razão e essência de tudo.
Falco, mais perfeita que os melhores dos poetas líricos, que bem vistos não passam de uns lamuriosos choradores de mágoas sentimentais, distancia-se do lirismo vigente porque não desdobra o eu do não-eu, de modo a hiperexaltar aquele. Assim substitui por comunhão o que era conflito no mais realismo, incapaz de visionar a Unidade dentro da Multiplicidade, a Transcendência na Imanência, o Espírito na Letra.
São quase todas as historietas narradas em eu, sem que o eu lembre alguma vez a pessoa existente da autora. O eu que fala pela sua voz é o eu das crianças, das aves, da agulha, do sol, da flor da murta... Daí a inserção quase contínua no absurdo; a narrativa decorre em terra de ninguém, a terra que por hoje ainda é só das crianças que o são, dos músicos geniais, de alguns poetas e desta narradora sublime:
Não está aí o mundo partido em dois, dia-partido, é um só, poético, puro, essente. É ele que fala nessa primeira pessoa do singular, a matriz que tanto deu as gerações de pássaros e flores, como as linhagens de trovadores e poetas desde que o mundo é mundo. Falco - intermediário do outro-mundo, entre o Sonho e a Razão, a Inocência e a Aparência, cheia esta de intercepções, de ilustrativos, inclusivamente os que desadornam o livro e que mais o prejudicam do que enriquecem, na opinião dos espíritos mais musicais (ou poéticos) do que plásticos (ou dialécticos).
Não é um mundo fechado o que assim reconquistou o Paraíso, porque é um mundo de Amor. De exclusão e inimizade é o do que pelas aparências e acidências, pela pormenorização esterilizante, (esse monumento «realístico» que são «As Vinhas da Ira!») pelo romanesco com desculpa de estar com atenção ao social orgânico, ao verídico, desintegra tudo num mar de ácido sulfúrico.
O mundo, não é a três dimensões, caríssimos dialécticos (históricos ou a-históricos) nem se reduz ao gástrico, aos mecanismos de produção e às ambiguidades do capital; nem ao existencial, corroente e desesperador, de melenas na testa.
Se a acção padagógica fosse o que já devia ser (e nós lutamos para que o seja), se em lugar de os homens se digladiarem num jogo de interesses, estudassem pedagogia, um livro como o de Falco podia fazer à humanidade melhor bem do que mil programas de regulamento económico.
«A Salvação do Mundo» não será, como se infere da obra de José Régio, obra política, isto é, dialéctica; será obra de pedagogia, isto é, poética.
Nada fareis, senhores inteligentes, sem esta lição de amor que a humanidade, depois de milhares de anos terem rolado sobre Sócrates e Cristo, começa a soletrar na boca de mestres que o Mestre renovam, jograis de Deus que são, no Espírito e nunca na Letra dos Evangelhos.
Natal de 1955
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Este texto de Afonso Cautela foi publicado no quinzenário «A Planície», de Moura, suplemento «Ângulo das Artes e das Letras», 15/2/1957
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