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Friday, August 11, 2006

J. DUBUFFET 1971

1-3 - dubuffet-1-ls> sexta-feira, 20 de Dezembro de 2002-scan

JEAN DUBUFFET: UM «VÂNDALO» DA CULTURA(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, de certeza, no jornal «Notícias da Beira» (Moçambique), coluna do autor «Notícias do Futuro», 11-8-1971, e provavelmente no semanário «O Século Ilustrado», em data a identificar


[11-8-1971, in «Notícias da Beira»] - Enquanto a crítica universitária, entre nós, lê e nos incita a ler, transcreve e nos incita a transcrever os luminares da cultura universitária (ou ordem cultural estabelecida), a edição e leitura de Jean Dubuffet – “Cultura Asfixiante” é o título do ensaio que acaba de sair nas Publicações Dom Quixote, em tradução de Serafim Ferreira - não me parece, como antídoto e contra-veneno, menos aconselhável e útil.

Quando a polémica, que se mantém em aberto, entre crítica livre e crítica universitária (esta é que é a verdadeira dicotomia, não a que lhes interessa a eles, entre «crítica dita científica» e «crítica dita impressionista»), entre cultura pop e cultura de elites, quem pense pela sua própria cabeça parece às vezes não ter outra saída que o desespero e o suicídio intelectual.

Jean Dubuffet vem em socorro do «out-sider», quase faz figura de vândalo das artes, de quinta-colunista perigoso, de elemento subversivo, com as suas «boutades», cheias de franqueza, de humor, de indignação e, - até - , de senso, de muito bom senso.

Defendamo-nos, então, com o escudo invisível Jean Dubuffet, sempre que a elite, com toda a cavalaria e artilharia pesada, investe, ciosa dos seus pergaminhos, diplomas e sorbones. Ciosa dos seus títulos, galardões, interesses, privilégios e latifúndios.

A propósito de subversão artística, ocorreram-me, durante a leitura de Jean Dubuffet, alguns outros textos básicos para um processo desintegratório da cultura estabelecida e que, com maior ou menor propriedade, designaremos de cultura oficial.

Quase com tanto impacto explosivo e de idêntico rigor polémico, são textos clássicos da reviravolta, entre outros que os eruditos acrescentarão a esta lista, os seguintes:

Les Chiens de Garde, de Paul Nizan
As revelações da morte, de Leão Chestov
O Mundo e o Ocidente, de Arnold Toynbee
O Teatro e o seu Duplo, de Antonin Artaud
Mort de la Morale Bourgeoise de Emmanuel Berl
Pornografia e Obscenidade, de D. H. Lawrence
A Obscenidade e a lei da Reflexão, de Henry Miller
Précis de Décomposition, de E. M. Cioran
Journal Du Voleur, de Jean Genet

Segundo dizem os sensatos (que medem tudo segundo o novíssimo padrão do cálculo-vantagens) nada adiantaram esses textos que por aí se ficaram.

Nada adiantam - dizem - a revolta individual e individualista, hoje já todos esqueceram esses textos e, praticamente, também os seus autores.

No entanto, verificando melhor, conclui-se que toda a pintura moderna, por exemplo, se apoia invisivelmente ou indirectamente, nesses textos e nesses autores, que até nem falavam de arte, que até nem à pintura se referiam.

Jean Dubuffet vem desvendar um pouco esse enigma, essa invisível ligação, essa correlação aparentemente impossível, insólita, inexistente. Afirmando o seu intransigente individualismo de pintor, ilustra o que tem sido, sem textos de apoio, muitas vezes, a luta dos artistas modernos, cada um na sua individualidade e não desejando abdicar dela, cada um tendo que enfrentar todo o Sistema Cultural e fazer da sua arte um constante confronto com ele. Para imporem obras que não permitem padrões standarts de apreciação crítica, Jean Dubuffet e muitos outros representam, mesmo enquanto pintores apenas, enquanto apenas artistas, várias contra-culturas, adubadas à custa própria, integral e sólida mas solitariamente também.

Assim vejo a odisseia da arte moderna nos seus mais puros e corajosos e autênticos representantes. Cada um deles foi a Revolta.

Para o crítico de formação clássica ou académica (são todos, não?) não lhe é possível encontrar «textos teóricos» que fundamentem a interpretação dessas obras, porque os vai procurar onde eles não estão: quer dizer, nas fichas de bibliotecas referentes a artes e tretas. De repente, porém, o observador marginal apercebe-se que esses velhos textos da «subversão» cultural (tout court) têm tudo e mais alguma coisa a ver com arte e artistas, são eles que, constituem, verdadeiramente, o Manifesto da Vanguarda, o estatuto da Nova Arte.

E assim que a Nietzsche, a Bakunine, a todo o Artaud e a todo o Samuel Beckett se podem ir buscar os novos fundamentos da nova arte que é, em cada artista, uma nova (contra-)cultura.

É que, em tais apertos, não há estruturalismo nem realismo que nos ajude. Para interpretar a vanguarda que o é - anti-académica e anti-cultura vigente, por definição - não há, por definição, ismo nenhum que nos ajude, já que ismo é sempre produto de ordem cultural vigente.

Há muito de prometaico, claro e enfim, nas tentativas de alguns «poetas», de alguns danados, para pôr em questão todos os fundamentos da ordem cultural vigente.

Jean Dubuffet que o diga, o seu itinerário de vândalo que o comprove.

Deverá perguntar-se, então, o que faz correr esses anti-Sammis, o que leva esses mafarricos a discutir essa ordem e a revoltar-se contra.

A meu ver, a razão está em que a «civilização» tal como lha metem boca abaixo lhes repugna (como artistas que são, a sua sensibilidade capta o que o radar avariado dos outros nem sonha) e lhes parece antes uma armadilha, uma doença, uma prisão.

Como doença, armadilha, prisão, a encararam Nietzsche, Artaud, Cioran, Chestov, Dostoievski, Fernando Pessoa, Samuel Beckett (para a semana cito mais) que por isso podem ser considerados os verdadeiros teóricos da verdadeira Arte Moderna. Como doença, armadilha e prisão a criticaram, portanto, nas suas constantes e nos seus fundamentos.

Quando discutimos arte é toda a Cultura que discutimos. E o resto é diarreia verbal.

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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, de certeza, no jornal «Notícias da Beira» (Moçambique), coluna do autor «Notícias do Futuro», 11-8-1971, e provavelmente no semanário «O Século Ilustrado», em data a identificar
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