G. ORWELL 1986
1-3 - orwell-1> temas recorrentes – os dossiês do silêncio
ANTECIPAÇÃO DA JOGADA - VITÓRIA DO «BIG BROTHER»(*)
[11/10/1986, «A Capital», «Crónica do Planeta Terra»] - Pode acontecer que um "tema proibido" (daqueles que tacitamente todos calamos porque seria heresia anti-social sequer citá-los) venha de repente à luz da ribalta e os holofotes se fixem nele como em vedeta de última hora caçada na chegada ao aeroporto.
Curiosa e inopinadamente aconteceu com a "informática" e respectiva ditadura, tema que automaticamente se tornou secreto, a partir do momento em que ficou claro que ao processo de informatização sistemática se devem pelo menos dois (pelo menos) dos mais chorados flagelos do mundo actual: o incremento do desemprego e a devassa da consciência individual e da vida privada.
É certo que o assunto foi badalado, há dois anos, quando se publicitou, a propósito da data, um livro propositadamente esquecido, o romance de George Orwell "1984".
É certo que relatórios de qualquer extinto Instituto Damião de Góis deverão ter, de fugida, citado o perigo para a Democracia do tal sistema computarizado de dados.
Enfim, na ficção e na semi-ficção, ou entre ecologistas fanáticos e radicais como o autor destas crónicas nestas crónicas, os alertas terão sido dados, de forma mais ou menos indirecta, não fosse magoar-se o sistema e o santo nome do "Big Brother
MUDOU A TÁCTICA
Que se faça agora uma reunião oficial de especialistas a dizerem cobras e lagartos da respectiva especialidade (a lavagem aos cérebros pela informática) e dos perigos para o cidadão comum, é caso para suspeitar de que a táctica de enredo mudou para melhor resultar.
Sim, porque a táctica de tramar o próximo pode mudar e muitas vezes já ficou provado que a melhor forma de silenciar um assunto-tabu é badalá-lo até à exaustão e antes que gente incómoda dele fale em termos obscenos.
Uma ditadura das antigas e clássicas terá dificuldade em perceber isto. Mas uma ditadura informática percebe (até) de dialéctica e sabe que as leis da lógica do absurdo têm razões que a razão desconhece. Não é com vinagre que se apanham moscas: e uma Comissão encarregada de nos proteger de outras comissões encarregadas de nos vigiar, no que respeita à devassa dos dados da nossa vida íntima e privada, é habilidade que se deve registar com elogios.
Em democracia "limpa", só ligeiramente musculada para não destoar, a táctica da bordoada muda de aparência para no fundo continuar igual. E quanto aos "beneficios da Informática" ela mudou por antecipação da jogada.
Talvez porque os computadores (sempre espertíssimos) tenham ensinado aos centros internacionais de decisão uma cruel verdade: convém não confiar exagerada e abusivamente na estupidez humana, quer dizer, na passividade das massas. Mesmo uma ditadura branquinha e de veludo como a informática pode chegar o dia em que o cidadão lhe veja as tripas, lhe tope as garras e lhe descubra as fauces.
REFINAR A FICÇÃO
A táctica, por isso, mudou: vamos pôr os dados na mesa e deixar que os jornais , durante uns diasitos, digam dos perigos, dos exageros, dos abusos...
Depois, arranja-se uma comissão que nos vai "proteger" desses abusos, desses perigos, desses exageros cometidos, como é óbvio, por outras comissões. E, depois, já esses abusos, exageros, perigos, poderão ser perpetrados livremente e sem mácula, sem que ninguém diga "ai", porque (lembrai-vos) , além do Grande Irmão que por nós vela, em tudo e sempre, lá está a Comissão que nos protege e dirá "ui" por nós.
Quem voltar a falar, então, na ditadura informática, é ameaçado por telefonemas e cartas anónimas. O silêncio e o segredo voltaram ao redil. A ditadura informática, depois deste interregno breve, voltará a ser assunto proibido.
Táctica de mestre, a da comissão protectora, e que talvez não tenha sido prevista por Orwell. Pois não: o que só prova como na realidade os factos ultrapassam a ficção, refinando-a.
PROCESSO IRREVERSÍVEL
As ditaduras que a democracia autoriza e fomenta não se impõem, é evidente, pelo fácies sanguinário mas conquistam corpos e mentes numa "boa" e com boas maneiras, com falinhas mansas, com paisagens tranquilas.
A ditadura informática, que já se sabia existir mas era sempre negada oficialmente, surge agora como uma revelação oficial, quando o Ministro da Justiça, Mário Raposo, dá o tom oficial ao encontro de especialistas que em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, lugar pouco dado a heresias, resolveu finalmente alertar oficialmente para os perigos dos computadores. Perigos ou, mais eufemisticamente, exageros.
Claro que os especialistas não se encontraram para assumir posição radical contra a ditadura informática. Ela está aí, escorreita, de pedra e cal, há uma Infor-jovem para lavar os cérebros logo desde pequeninos, todo o mundo elogia os computadores, todos lhe rendemos vassalagem e é evidente que temos e teremos a devassa que merecemos.
Agora que o processo se tornou absolutamente irreversível e em que o sistema informático já nos apanhou a todos na rede e nos vigia dia e noite, sem saída nem alternativa, eis que a bonomia das comissões protectoras aparece a defender os direitos do cidadão, como quem conta o final da anedota, sempre o mais picante.
Sim, porque uma democracia que viole, assim, como a informática está fazendo, os direitos do cidadão, na sua privacidade e na sua identidade, pode vir a ser acusada de conotações totalitárias... E as democracias democráticas têm uma imagem de marca a defender.
O MAU PASSA A SER BOM
A posição moderada do faz-que-faz-mas-não-faz é assim a única possível face à irreversibilidade do processo: vamos aprender a viver e a coabitar com as ditaduras que temos, já dizia o outro. Não adianta, pois, tomar posições radicais, ou eco-radicais, dizer agora que os computadores são a Super-Polícia.
Consumada a instituição, indissociável de todas as outras instituições, há que aguentar, enquanto oficialmente se cria uma comissão oficial encarregada de nos proteger.
A comprovar que ela funciona melhor do que no romance de Orwell e que já conseguiu, a tempo, condicionar as mentes para aceitar o inevitável, é este comentário ouvido a um espectador do filme "1984" : "Felizmente que Orwell se enganou na profecia e que em 1986 as coisas ainda não estão assim tão perfeitas como Orwell as profetizou..."
As coisas estão tão perfeitas e elaboradas relativamente à profecia que, por isso mesmo, o comum dos cidadãos não dá por ela. Ora isto prova que a tese dominante do romance "1984" vingou em toda a linha: a vitória do Big Brother está consumada quando bem for sinónimo de mal, paz sinónimo de guerra, beleza sinónimo de fealdade... E assim por diante.
O cidadão foi informaticamente condicionado a achar bom aquilo que porventura e sem esse condicionamento talvez achasse mau.
Haver quem não se tenha apercebido ainda que em 1984 as teses de Orwell já estavam ultrapassadas por terem atingido o máximo requinte de nem sequer se dar por elas, é a vitória absoluta do Grande Irmão.
- - - - -
(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 11/10/1986
ANTECIPAÇÃO DA JOGADA - VITÓRIA DO «BIG BROTHER»(*)
[11/10/1986, «A Capital», «Crónica do Planeta Terra»] - Pode acontecer que um "tema proibido" (daqueles que tacitamente todos calamos porque seria heresia anti-social sequer citá-los) venha de repente à luz da ribalta e os holofotes se fixem nele como em vedeta de última hora caçada na chegada ao aeroporto.
Curiosa e inopinadamente aconteceu com a "informática" e respectiva ditadura, tema que automaticamente se tornou secreto, a partir do momento em que ficou claro que ao processo de informatização sistemática se devem pelo menos dois (pelo menos) dos mais chorados flagelos do mundo actual: o incremento do desemprego e a devassa da consciência individual e da vida privada.
É certo que o assunto foi badalado, há dois anos, quando se publicitou, a propósito da data, um livro propositadamente esquecido, o romance de George Orwell "1984".
É certo que relatórios de qualquer extinto Instituto Damião de Góis deverão ter, de fugida, citado o perigo para a Democracia do tal sistema computarizado de dados.
Enfim, na ficção e na semi-ficção, ou entre ecologistas fanáticos e radicais como o autor destas crónicas nestas crónicas, os alertas terão sido dados, de forma mais ou menos indirecta, não fosse magoar-se o sistema e o santo nome do "Big Brother
MUDOU A TÁCTICA
Que se faça agora uma reunião oficial de especialistas a dizerem cobras e lagartos da respectiva especialidade (a lavagem aos cérebros pela informática) e dos perigos para o cidadão comum, é caso para suspeitar de que a táctica de enredo mudou para melhor resultar.
Sim, porque a táctica de tramar o próximo pode mudar e muitas vezes já ficou provado que a melhor forma de silenciar um assunto-tabu é badalá-lo até à exaustão e antes que gente incómoda dele fale em termos obscenos.
Uma ditadura das antigas e clássicas terá dificuldade em perceber isto. Mas uma ditadura informática percebe (até) de dialéctica e sabe que as leis da lógica do absurdo têm razões que a razão desconhece. Não é com vinagre que se apanham moscas: e uma Comissão encarregada de nos proteger de outras comissões encarregadas de nos vigiar, no que respeita à devassa dos dados da nossa vida íntima e privada, é habilidade que se deve registar com elogios.
Em democracia "limpa", só ligeiramente musculada para não destoar, a táctica da bordoada muda de aparência para no fundo continuar igual. E quanto aos "beneficios da Informática" ela mudou por antecipação da jogada.
Talvez porque os computadores (sempre espertíssimos) tenham ensinado aos centros internacionais de decisão uma cruel verdade: convém não confiar exagerada e abusivamente na estupidez humana, quer dizer, na passividade das massas. Mesmo uma ditadura branquinha e de veludo como a informática pode chegar o dia em que o cidadão lhe veja as tripas, lhe tope as garras e lhe descubra as fauces.
REFINAR A FICÇÃO
A táctica, por isso, mudou: vamos pôr os dados na mesa e deixar que os jornais , durante uns diasitos, digam dos perigos, dos exageros, dos abusos...
Depois, arranja-se uma comissão que nos vai "proteger" desses abusos, desses perigos, desses exageros cometidos, como é óbvio, por outras comissões. E, depois, já esses abusos, exageros, perigos, poderão ser perpetrados livremente e sem mácula, sem que ninguém diga "ai", porque (lembrai-vos) , além do Grande Irmão que por nós vela, em tudo e sempre, lá está a Comissão que nos protege e dirá "ui" por nós.
Quem voltar a falar, então, na ditadura informática, é ameaçado por telefonemas e cartas anónimas. O silêncio e o segredo voltaram ao redil. A ditadura informática, depois deste interregno breve, voltará a ser assunto proibido.
Táctica de mestre, a da comissão protectora, e que talvez não tenha sido prevista por Orwell. Pois não: o que só prova como na realidade os factos ultrapassam a ficção, refinando-a.
PROCESSO IRREVERSÍVEL
As ditaduras que a democracia autoriza e fomenta não se impõem, é evidente, pelo fácies sanguinário mas conquistam corpos e mentes numa "boa" e com boas maneiras, com falinhas mansas, com paisagens tranquilas.
A ditadura informática, que já se sabia existir mas era sempre negada oficialmente, surge agora como uma revelação oficial, quando o Ministro da Justiça, Mário Raposo, dá o tom oficial ao encontro de especialistas que em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, lugar pouco dado a heresias, resolveu finalmente alertar oficialmente para os perigos dos computadores. Perigos ou, mais eufemisticamente, exageros.
Claro que os especialistas não se encontraram para assumir posição radical contra a ditadura informática. Ela está aí, escorreita, de pedra e cal, há uma Infor-jovem para lavar os cérebros logo desde pequeninos, todo o mundo elogia os computadores, todos lhe rendemos vassalagem e é evidente que temos e teremos a devassa que merecemos.
Agora que o processo se tornou absolutamente irreversível e em que o sistema informático já nos apanhou a todos na rede e nos vigia dia e noite, sem saída nem alternativa, eis que a bonomia das comissões protectoras aparece a defender os direitos do cidadão, como quem conta o final da anedota, sempre o mais picante.
Sim, porque uma democracia que viole, assim, como a informática está fazendo, os direitos do cidadão, na sua privacidade e na sua identidade, pode vir a ser acusada de conotações totalitárias... E as democracias democráticas têm uma imagem de marca a defender.
O MAU PASSA A SER BOM
A posição moderada do faz-que-faz-mas-não-faz é assim a única possível face à irreversibilidade do processo: vamos aprender a viver e a coabitar com as ditaduras que temos, já dizia o outro. Não adianta, pois, tomar posições radicais, ou eco-radicais, dizer agora que os computadores são a Super-Polícia.
Consumada a instituição, indissociável de todas as outras instituições, há que aguentar, enquanto oficialmente se cria uma comissão oficial encarregada de nos proteger.
A comprovar que ela funciona melhor do que no romance de Orwell e que já conseguiu, a tempo, condicionar as mentes para aceitar o inevitável, é este comentário ouvido a um espectador do filme "1984" : "Felizmente que Orwell se enganou na profecia e que em 1986 as coisas ainda não estão assim tão perfeitas como Orwell as profetizou..."
As coisas estão tão perfeitas e elaboradas relativamente à profecia que, por isso mesmo, o comum dos cidadãos não dá por ela. Ora isto prova que a tese dominante do romance "1984" vingou em toda a linha: a vitória do Big Brother está consumada quando bem for sinónimo de mal, paz sinónimo de guerra, beleza sinónimo de fealdade... E assim por diante.
O cidadão foi informaticamente condicionado a achar bom aquilo que porventura e sem esse condicionamento talvez achasse mau.
Haver quem não se tenha apercebido ainda que em 1984 as teses de Orwell já estavam ultrapassadas por terem atingido o máximo requinte de nem sequer se dar por elas, é a vitória absoluta do Grande Irmão.
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(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 11/10/1986
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