ROSSELLINI 1972
rosselini-2-ls> quinta-feira, 2 de Janeiro de 2003-scan
A TOMADA DO PODER POR LUÍS XIV - UM PROBLEMA DE ECOLOGIA (*)
[In «A Capital», em 9-12-1972]
"A arte faz-se cada vez mais um meio de evasão, mesmo de decadência. Onde está o pensamento? Não creio que possa haver maior alegria do que a de pensar, e creio que esta alegria pode voltar a recuperar-se rapidamente, se se der às pessoas a possibilidade disso. Desgraçadamente vivemos numa sociedade que faz tudo para converter as pessoas no mais superficial possível.
"Eu, que vivo bastante isolado, espanto-me quando tomo contacto com as gentes, ao descobrir que circulam não só muitas ideias feitas mas também muitas e muitas frases feitas. Parece que as compraram num mercado como se compram objectos de plástico e é espantoso que a maior parte dos raciocínios estejam construídos com base em frases deste género."- ROBERTO ROSSELLINI
A "ALEGORIA DA CAVERNA"
Não são as aparências que importam, que garantem uma realidade mas a essência, muito elementar e muito simples, que preside, como núcleo dinamizador, como fonte das fontes, como causa rerum a essas aparências.
Nesta opção filosófica de Rossellini, A Tomada do Poder por Luís XIV tem a nítida vantagem de permitir, logo pelo cenário (pelas aparências das aparências), um contraste chocante, gritante mesmo entre as sombras da caverna e a alma, para utilizar a conhecida alegoria platónica.
Se há época, na história europeia, onde as aparências atingiram os requintes da Pompa e onde a acumulação barroca de supérfluos atingiu o absurdo, o delírio, o ridículo da balofa e pura Ostentação, essa época é sem dúvida e por definição, a de Luís XIV.
Das rendas a Versalhes, nenhuma outra se prestaria melhor para afirmar o contraste da alma prisioneira das fantasmagorias e na tentativa de se evadir da ganga das formas transitórias para atingir o núcleo da sua "profunda natureza". A antinomia do fundo e da forma não é em Rossellini uma oposição académica, como seria por exemplo entre os teóricos do neo-realismo: é a força que dinamiza as relações das suas figuras, os seus rasgos e crimes, a sua santidade ou a sua velhacaria.
Qualquer de nós - observador superficial, que só às máscaras e aos disfarces atende - terá a tendência para classificar de ridículo aquele rei e a sua corte, e sobre ele fazer recair o ódio que à consciência de hoje um tal espectáculo de exagero faraónico pode suscitar.
Não assim Roberto Rossellini, cujo "parti pris" é outro, mais vasto, mais fundo. Não se fica, enquanto observador, narrador e historiador, pela superfície dos factos, eventos, fenómenos, máscaras, cores, disfarces e fachadas, mas vai ao fundo e à essência das figuras e das situações. O seu trabalho é o de afastar as aparências, as máscaras, os sintomas, os véus e as rendas, para lhes encontrar uma explicação e, quase, uma justificação. Para lhes apanhar a determinante decisiva. Para lhes encontrar a causa da causa. E encontra-a.
Luís XIV aparece-nos inteiramente motivado: antes de mais e acima de tudo, pelo meio ambiente. Rossellini faz-nos ver como o "habitat" modela um comportamento mas também como um comportamento pode e deve (apesar de todas as limitações e sombras que o constrangem) reagir sobre esse "habitat" e contribuir, com um pequeno degrau, para a evolução da espécie a caminho da luz.
Um pouco como na espiral de Teilhard, para Rossellini o homem caminha da barbárie para a cultura, das trevas para a luz, do tosco para o perfeito, do opaco para o transparente, do sintoma para a causalidade verdadeira. E o "entourage" de um personagem, se é verdade que inevitavelmente o modela, dá-lhe também a "chance" de se afirmar no caminho da luz, da perfeição, da cultura, da liberdade; dá-lhe também a "chance" de evoluir; mas o que para Rossellini nunca pode ser invertida é a ordem e prioridade (é isso, para ele, o mal): e tomar a nuvem por Juno, o efeito pela causa, o sintoma pela doença, leva ao erro, ao mal, ao pecado.
O que estiver em erro, ajuíza então erradamente e classifica de criminoso aquele que é apenas produto de um meio "criminogéneo", de doente o que é apenas produto de um meio "patogénico", de malvado o que é apenas produto de um meio gerador de malvadez.
"O povo deve depender do seu Rei, como a Natureza depende do Sol", diz Luís XIV a Colbert. A Natureza, em sentido lato, quererá significar, em termos modernos, o que tenho vindo a designar por "entourage", "habitat", "meio ambiente".
DEMONSTRAÇÃO PELO ABSURDO
Rossellini desenvolve airosamente no seu filme a conhecida técnica matemática conhecida por "demonstração pelo absurdo".
Pelo exaspero das aparências, levadas ao requinte do exagero e da pompa balofa, a essência ou realidade (o que ele chama "a natureza profunda das coisas") torna-se-nos quase uma necessidade física. Qualquer das sequências capitais em que se divide o filme, mas especialmente a última - a ceia real assistida por toda a corte e "sustentada" por um exército de criados - vistas fora do contexto, da corrente sintáctica do filme, são apenas uma exibição de fatos, mesuras, cabeleiras (experimente-se entrar na sala escura uma hora depois do filme ter começado e registe-se que impressão terá esse espectador retardatário); na corrente geral da narrativa, porém, estabelece-se entre as aparências e o seu contrário, entre o espectáculo e a alma, - a simples essência da vida – um contraponto dialéctico incessante.
É como se pelo absurdo das aparências grandiloquentes, se nos demonstrasse a verdade da essência, da "natureza profunda das coisas".
O cinema terá mostrado centenas (milhares) de figuras ilustres nos seus leitos de morte; dezenas de cineastas terão filmado os últimos instantes de personagens históricos ou de ficção, movidos porventura por propósitos de realismo.
No entanto, as sequências que em A Tomada do Poder por Luns XIV descrevem os últimos instantes e depois a morte do Cardeal Mazarino, são a total reinvenção da conjuntura.
O realismo de Rossellini, para lá de uma poderosa, devoradora absorção do essencial (da corrente de vida e humanidade que subjaz ao ouropel, aos costumes, ao específico de época, classe, cultura), é ainda um realismo de pormenorização. Um realismo que reconstitui, pela imaginação, o pormenor característico.
Uma pergunta que obsessiona Rossellini e que certamente obcecará muitos de nós: como se passaram efectivamente as coisas com os nossos irmãos da Idade do Ferro, com Sócrates, com S. Francisco de Assis, com Luís XIV, com o general della Rovere?
Na pormenorizacão das aparências, tanto como na sintonização da essência, ousaria dizer que Rossellini é, depois de Fernão Lopes, como pintor de pormenor, o maior cronista de época de todos os tempos... Com a vantagem, sobre Fernão Lopes, de ter uma câmara de filmar e, ainda, a soberana vantagem de não ter assistido aos eventos: imaginar é a grande maneira de acertar em cheio na realidade que se pretende descrever.
A LARVA NO CASULO
Assim fica definido, também, o que os eruditos críticos da especialidade, já assinalaram neste génio do cinema: o seu classicismo (o seu sereno domínio da técnica e da linguagem cinematográfica) e o seu modernismo, expresso, quanto a mim, principalmente pela sua intuição "ecológica" da realidade: ele nunca vê um personagem, um comportamento, um grupo, desligado do meio que o gera, explica, modela, agride e até certo ponto justifica.
O espectador sentirá certamente um arrepio de horror, ao imaginar-se rei naquela cama de docel, cerrada por cortinas, acordado por um exército de criados e cortesãos, apanhado, devassado, destruído na sua mais íntima intimidade por dezenas de olhos alheios.
E sentirá no Rei, de repente, apenas um (pobre) ser humano vítima do seu "entourage", martirizado por todas as convenções e mitos que constituem o seu tempo e o seu espaço, a sua época e a sua condição, o seu acaso histórico e a necessidade do lugar a que está radicado.
Sentirá o horror do acaso que nos pode fazer nascer Luís XIV, S. Francisco ou Sócrates, e a necessidade que sempre determina, a partir de baixo, todas as nossas células, logo nove meses antes de ver a luz...
Impossível não o absolver, então, no nosso juízo. Impossível, enquanto ser humano, não o explicar. Impossível não nos ligarmos a ele por uma profunda simpatia humana: de certo modo, nós também pressentimos, cada um no seu meio ambiente, dentro da sua própria fatalidade, quão vítimas somos de costumes e mitos, tão martirizantes como esse.
Aqui radica o humanismo não humanitário de Rossellini. A História, para ele, não é outra coisa senão o sofrimento, o desconforto, a desorientação da larva que se mexe dentro de um casulo que por enquanto lhe fica apertado. Todas as épocas - seja a da Idade da Pedra, a de Sócrates, a de S. Francisco, a de Luís XIV ou a do general della Rovere -, são essas peles dentro das quais a criatura humana se agita e sofre no anseio de se libertar. E se há uma palavra de censura implícita na ética de Rossellini, só pode ser para aqueles que, como Fouquet nada fizeram para, ajudar a humanidade a sair desse casulo apertado e que
totalmente se mimetizam com o meio, se fizeram efeito da causa ambiente, sem eles próprios serem causa (criação) de outros efeitos. Só a esterilidade humana é, para Rossellini, o mal.
SE UM MARCIANO NOS VISSE...
Ao escolher um tema "histórico", outra lição actual se pode explicitar no filme: a
relatividade das estruturas mentais que tornam todos os juízos de valor (logo, a noção de bem e de mal) extremamente precários e efémeros. Hoje, a partir da nossa época, de uma formação intelectual determinada da nossa perspectiva, de um determinado grau de evolução, facilmente emitiremos juízos de valor sobre esses cenários de uma época, sobre as modas, as manias, as convenções.
Mas há, no filme, uma reflexão implícita que nos leva a hesitar em proferir juízos de valor definitivos. É como se uma voz tos segredasse: "E tu, que pensas tu da tua época, das modas de que és vítima, dos costumes em que estás mergulhado e de que não te podes distanciar, sobre os quais julgas ter poder crítico mas sobre que não podes exercer uma visão objectiva?" Modas, no entanto, e modos, que um ser de outra cultura, de outra época (passada? futura? ), de outro lugar, de outro planeta, pode considerar perfeitamente ridículos, condenáveis, estúpidos, anacrónicos.
Aqui a espantosa Modernidade de Rossellini. Direi antes: o seu visionarismo profético. A relatividade das estruturas, a fatuidade dos juízos de valor, a ambiguidade dos sentimentos, a transitividade dos mitos (o homem é um criador de mitos), a efemeridade de modas e de "habitat", tudo isso (e o que disso resulta em catadupa logarítmica define o pensamento de vanguarda que redescobriu o direito de todas as culturas à sua autonomia e à sua expressão.
Há em Rossellini um aviso implícito que podemos ouvir igualmente nos maiores filósofos, poetas e profetas do nosso tempo: se um marciano te vir, a ti, europeu de 1972, lá do seu planeta, tem cuidado, ó petulante mortal, pode ter o mesmo ataque de riso que tu tens ao ver Luís XIV enterrado nas suas rendas até ao pescoço, mergulhado na sua época, esperando pelo décimo sétimo prato de uma refeição que não acaba, pedindo um copo de água numa ordem que se transmite em cadeia a dezenas de criados, roendo enjoado o caroço de uma azeitona e mandando para trás o leitão que o médico da corte lhe desaconselha.
"DOENTES DE PROPAGANDA”
A conhecida indignação de Rossellini contra a degradação da palavra pelo "cliché" da propaganda, encaixa-se perfeitamente nesta ordem de preocupações: a "propaganda" e, de uma maneira geral, os mass media é um dos factores vectoriais que compõem o nosso "habitat".
O eco-sistema do animal chamado homem engloba o que é comum aos outros animais (a Natureza), o que já vem de épocas recuadas, mas também o que é específico do homem moderno e da tecnologia que lhe molda o comportamento, que lhe lava o cérebro, que o manipula e determina.
A propósito do seu "Sócrates", Rossellini teria dito:
"Estamos gravemente doentes de propaganda. Sócrates disse uma palavra admirável ("O Mundo está cheio de opiniões e completamente desprovido de conhecimentos"). Creio que sim. Se dispusermos de conhecimentos, todos os problemas se resolverão, mas, desgraçadamente, não dispomos deles. O que me interessa é saber."
Como estamos a perceber, é inesgotável a torrente de significações a extrair de um filme como A Tomada do Poder por Luís XIV. Assinalei algumas, mas faltava ainda uma fundamental: o contraponto que se estabelece entre passado e presente.
A história está aí não como crónica estática de um tempo ido mas como reflexo permanente da viva actualidade do espectador (e vice-versa). E essa transposição não se faz por analogia superficial, por contraste de efeitos ou sequer por metáfora. A transposição de significações, de forma a servirem para todos os tempos e não só para o tempo histórico definido pela narrativa, faz-se através daquela advertência básica que encontramos no autor de "A Idade do Ferro": definido por coordenadas de tempo e de espaço-tempo, cada "momento" da História exemplariza, na sua efémera relatividade e nas relações básicas que estabelece entre ser vivo e meio ambiente, todos os momentos.
Quer dizer: o que há de idêntico (e nos identifica com eles, portanto!) entre vários momentos históricos (o que há de actualidade ou perenidade nas reconstituições históricas de Rossellini) é o tecido de relações fundamentais que definem sempre, segundo a mesma lei universal, as relações do ser vivo com o seu meio ambiente. É de notar que esta lei universal, respeitando ao macrocosmos, é a única a permanecer, ainda quando todas as leis dos microcosmos culturais se mudam e transmudam.
Mudam as aparências, mas essa lei cósmica (e não já cultural), esse vínculo fundamental (no sentido em que Asimov empregou a palavra "fundamentos"), essa dialéctica das relações vida-meio ambiente, permanece.
Quer dizer: a realidade permanece, por muito que variem os fenómenos, as raças, até as civilizações sob os quais ela - realidade - se actualiza. A "potência" e o "acto", de Aristóteles, será porventura outra das aquisições da cultura clássica que Rossellini revivifica, moderniza. Exacto: actualiza.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas + 5 estrelas, talvez a melhor coisa que ele escreveu em toda a sua vida, foi publicado no jornal «A Capital», em 9-12-1972
A TOMADA DO PODER POR LUÍS XIV - UM PROBLEMA DE ECOLOGIA (*)
[In «A Capital», em 9-12-1972]
"A arte faz-se cada vez mais um meio de evasão, mesmo de decadência. Onde está o pensamento? Não creio que possa haver maior alegria do que a de pensar, e creio que esta alegria pode voltar a recuperar-se rapidamente, se se der às pessoas a possibilidade disso. Desgraçadamente vivemos numa sociedade que faz tudo para converter as pessoas no mais superficial possível.
"Eu, que vivo bastante isolado, espanto-me quando tomo contacto com as gentes, ao descobrir que circulam não só muitas ideias feitas mas também muitas e muitas frases feitas. Parece que as compraram num mercado como se compram objectos de plástico e é espantoso que a maior parte dos raciocínios estejam construídos com base em frases deste género."- ROBERTO ROSSELLINI
A "ALEGORIA DA CAVERNA"
Não são as aparências que importam, que garantem uma realidade mas a essência, muito elementar e muito simples, que preside, como núcleo dinamizador, como fonte das fontes, como causa rerum a essas aparências.
Nesta opção filosófica de Rossellini, A Tomada do Poder por Luís XIV tem a nítida vantagem de permitir, logo pelo cenário (pelas aparências das aparências), um contraste chocante, gritante mesmo entre as sombras da caverna e a alma, para utilizar a conhecida alegoria platónica.
Se há época, na história europeia, onde as aparências atingiram os requintes da Pompa e onde a acumulação barroca de supérfluos atingiu o absurdo, o delírio, o ridículo da balofa e pura Ostentação, essa época é sem dúvida e por definição, a de Luís XIV.
Das rendas a Versalhes, nenhuma outra se prestaria melhor para afirmar o contraste da alma prisioneira das fantasmagorias e na tentativa de se evadir da ganga das formas transitórias para atingir o núcleo da sua "profunda natureza". A antinomia do fundo e da forma não é em Rossellini uma oposição académica, como seria por exemplo entre os teóricos do neo-realismo: é a força que dinamiza as relações das suas figuras, os seus rasgos e crimes, a sua santidade ou a sua velhacaria.
Qualquer de nós - observador superficial, que só às máscaras e aos disfarces atende - terá a tendência para classificar de ridículo aquele rei e a sua corte, e sobre ele fazer recair o ódio que à consciência de hoje um tal espectáculo de exagero faraónico pode suscitar.
Não assim Roberto Rossellini, cujo "parti pris" é outro, mais vasto, mais fundo. Não se fica, enquanto observador, narrador e historiador, pela superfície dos factos, eventos, fenómenos, máscaras, cores, disfarces e fachadas, mas vai ao fundo e à essência das figuras e das situações. O seu trabalho é o de afastar as aparências, as máscaras, os sintomas, os véus e as rendas, para lhes encontrar uma explicação e, quase, uma justificação. Para lhes apanhar a determinante decisiva. Para lhes encontrar a causa da causa. E encontra-a.
Luís XIV aparece-nos inteiramente motivado: antes de mais e acima de tudo, pelo meio ambiente. Rossellini faz-nos ver como o "habitat" modela um comportamento mas também como um comportamento pode e deve (apesar de todas as limitações e sombras que o constrangem) reagir sobre esse "habitat" e contribuir, com um pequeno degrau, para a evolução da espécie a caminho da luz.
Um pouco como na espiral de Teilhard, para Rossellini o homem caminha da barbárie para a cultura, das trevas para a luz, do tosco para o perfeito, do opaco para o transparente, do sintoma para a causalidade verdadeira. E o "entourage" de um personagem, se é verdade que inevitavelmente o modela, dá-lhe também a "chance" de se afirmar no caminho da luz, da perfeição, da cultura, da liberdade; dá-lhe também a "chance" de evoluir; mas o que para Rossellini nunca pode ser invertida é a ordem e prioridade (é isso, para ele, o mal): e tomar a nuvem por Juno, o efeito pela causa, o sintoma pela doença, leva ao erro, ao mal, ao pecado.
O que estiver em erro, ajuíza então erradamente e classifica de criminoso aquele que é apenas produto de um meio "criminogéneo", de doente o que é apenas produto de um meio "patogénico", de malvado o que é apenas produto de um meio gerador de malvadez.
"O povo deve depender do seu Rei, como a Natureza depende do Sol", diz Luís XIV a Colbert. A Natureza, em sentido lato, quererá significar, em termos modernos, o que tenho vindo a designar por "entourage", "habitat", "meio ambiente".
DEMONSTRAÇÃO PELO ABSURDO
Rossellini desenvolve airosamente no seu filme a conhecida técnica matemática conhecida por "demonstração pelo absurdo".
Pelo exaspero das aparências, levadas ao requinte do exagero e da pompa balofa, a essência ou realidade (o que ele chama "a natureza profunda das coisas") torna-se-nos quase uma necessidade física. Qualquer das sequências capitais em que se divide o filme, mas especialmente a última - a ceia real assistida por toda a corte e "sustentada" por um exército de criados - vistas fora do contexto, da corrente sintáctica do filme, são apenas uma exibição de fatos, mesuras, cabeleiras (experimente-se entrar na sala escura uma hora depois do filme ter começado e registe-se que impressão terá esse espectador retardatário); na corrente geral da narrativa, porém, estabelece-se entre as aparências e o seu contrário, entre o espectáculo e a alma, - a simples essência da vida – um contraponto dialéctico incessante.
É como se pelo absurdo das aparências grandiloquentes, se nos demonstrasse a verdade da essência, da "natureza profunda das coisas".
O cinema terá mostrado centenas (milhares) de figuras ilustres nos seus leitos de morte; dezenas de cineastas terão filmado os últimos instantes de personagens históricos ou de ficção, movidos porventura por propósitos de realismo.
No entanto, as sequências que em A Tomada do Poder por Luns XIV descrevem os últimos instantes e depois a morte do Cardeal Mazarino, são a total reinvenção da conjuntura.
O realismo de Rossellini, para lá de uma poderosa, devoradora absorção do essencial (da corrente de vida e humanidade que subjaz ao ouropel, aos costumes, ao específico de época, classe, cultura), é ainda um realismo de pormenorização. Um realismo que reconstitui, pela imaginação, o pormenor característico.
Uma pergunta que obsessiona Rossellini e que certamente obcecará muitos de nós: como se passaram efectivamente as coisas com os nossos irmãos da Idade do Ferro, com Sócrates, com S. Francisco de Assis, com Luís XIV, com o general della Rovere?
Na pormenorizacão das aparências, tanto como na sintonização da essência, ousaria dizer que Rossellini é, depois de Fernão Lopes, como pintor de pormenor, o maior cronista de época de todos os tempos... Com a vantagem, sobre Fernão Lopes, de ter uma câmara de filmar e, ainda, a soberana vantagem de não ter assistido aos eventos: imaginar é a grande maneira de acertar em cheio na realidade que se pretende descrever.
A LARVA NO CASULO
Assim fica definido, também, o que os eruditos críticos da especialidade, já assinalaram neste génio do cinema: o seu classicismo (o seu sereno domínio da técnica e da linguagem cinematográfica) e o seu modernismo, expresso, quanto a mim, principalmente pela sua intuição "ecológica" da realidade: ele nunca vê um personagem, um comportamento, um grupo, desligado do meio que o gera, explica, modela, agride e até certo ponto justifica.
O espectador sentirá certamente um arrepio de horror, ao imaginar-se rei naquela cama de docel, cerrada por cortinas, acordado por um exército de criados e cortesãos, apanhado, devassado, destruído na sua mais íntima intimidade por dezenas de olhos alheios.
E sentirá no Rei, de repente, apenas um (pobre) ser humano vítima do seu "entourage", martirizado por todas as convenções e mitos que constituem o seu tempo e o seu espaço, a sua época e a sua condição, o seu acaso histórico e a necessidade do lugar a que está radicado.
Sentirá o horror do acaso que nos pode fazer nascer Luís XIV, S. Francisco ou Sócrates, e a necessidade que sempre determina, a partir de baixo, todas as nossas células, logo nove meses antes de ver a luz...
Impossível não o absolver, então, no nosso juízo. Impossível, enquanto ser humano, não o explicar. Impossível não nos ligarmos a ele por uma profunda simpatia humana: de certo modo, nós também pressentimos, cada um no seu meio ambiente, dentro da sua própria fatalidade, quão vítimas somos de costumes e mitos, tão martirizantes como esse.
Aqui radica o humanismo não humanitário de Rossellini. A História, para ele, não é outra coisa senão o sofrimento, o desconforto, a desorientação da larva que se mexe dentro de um casulo que por enquanto lhe fica apertado. Todas as épocas - seja a da Idade da Pedra, a de Sócrates, a de S. Francisco, a de Luís XIV ou a do general della Rovere -, são essas peles dentro das quais a criatura humana se agita e sofre no anseio de se libertar. E se há uma palavra de censura implícita na ética de Rossellini, só pode ser para aqueles que, como Fouquet nada fizeram para, ajudar a humanidade a sair desse casulo apertado e que
totalmente se mimetizam com o meio, se fizeram efeito da causa ambiente, sem eles próprios serem causa (criação) de outros efeitos. Só a esterilidade humana é, para Rossellini, o mal.
SE UM MARCIANO NOS VISSE...
Ao escolher um tema "histórico", outra lição actual se pode explicitar no filme: a
relatividade das estruturas mentais que tornam todos os juízos de valor (logo, a noção de bem e de mal) extremamente precários e efémeros. Hoje, a partir da nossa época, de uma formação intelectual determinada da nossa perspectiva, de um determinado grau de evolução, facilmente emitiremos juízos de valor sobre esses cenários de uma época, sobre as modas, as manias, as convenções.
Mas há, no filme, uma reflexão implícita que nos leva a hesitar em proferir juízos de valor definitivos. É como se uma voz tos segredasse: "E tu, que pensas tu da tua época, das modas de que és vítima, dos costumes em que estás mergulhado e de que não te podes distanciar, sobre os quais julgas ter poder crítico mas sobre que não podes exercer uma visão objectiva?" Modas, no entanto, e modos, que um ser de outra cultura, de outra época (passada? futura? ), de outro lugar, de outro planeta, pode considerar perfeitamente ridículos, condenáveis, estúpidos, anacrónicos.
Aqui a espantosa Modernidade de Rossellini. Direi antes: o seu visionarismo profético. A relatividade das estruturas, a fatuidade dos juízos de valor, a ambiguidade dos sentimentos, a transitividade dos mitos (o homem é um criador de mitos), a efemeridade de modas e de "habitat", tudo isso (e o que disso resulta em catadupa logarítmica define o pensamento de vanguarda que redescobriu o direito de todas as culturas à sua autonomia e à sua expressão.
Há em Rossellini um aviso implícito que podemos ouvir igualmente nos maiores filósofos, poetas e profetas do nosso tempo: se um marciano te vir, a ti, europeu de 1972, lá do seu planeta, tem cuidado, ó petulante mortal, pode ter o mesmo ataque de riso que tu tens ao ver Luís XIV enterrado nas suas rendas até ao pescoço, mergulhado na sua época, esperando pelo décimo sétimo prato de uma refeição que não acaba, pedindo um copo de água numa ordem que se transmite em cadeia a dezenas de criados, roendo enjoado o caroço de uma azeitona e mandando para trás o leitão que o médico da corte lhe desaconselha.
"DOENTES DE PROPAGANDA”
A conhecida indignação de Rossellini contra a degradação da palavra pelo "cliché" da propaganda, encaixa-se perfeitamente nesta ordem de preocupações: a "propaganda" e, de uma maneira geral, os mass media é um dos factores vectoriais que compõem o nosso "habitat".
O eco-sistema do animal chamado homem engloba o que é comum aos outros animais (a Natureza), o que já vem de épocas recuadas, mas também o que é específico do homem moderno e da tecnologia que lhe molda o comportamento, que lhe lava o cérebro, que o manipula e determina.
A propósito do seu "Sócrates", Rossellini teria dito:
"Estamos gravemente doentes de propaganda. Sócrates disse uma palavra admirável ("O Mundo está cheio de opiniões e completamente desprovido de conhecimentos"). Creio que sim. Se dispusermos de conhecimentos, todos os problemas se resolverão, mas, desgraçadamente, não dispomos deles. O que me interessa é saber."
Como estamos a perceber, é inesgotável a torrente de significações a extrair de um filme como A Tomada do Poder por Luís XIV. Assinalei algumas, mas faltava ainda uma fundamental: o contraponto que se estabelece entre passado e presente.
A história está aí não como crónica estática de um tempo ido mas como reflexo permanente da viva actualidade do espectador (e vice-versa). E essa transposição não se faz por analogia superficial, por contraste de efeitos ou sequer por metáfora. A transposição de significações, de forma a servirem para todos os tempos e não só para o tempo histórico definido pela narrativa, faz-se através daquela advertência básica que encontramos no autor de "A Idade do Ferro": definido por coordenadas de tempo e de espaço-tempo, cada "momento" da História exemplariza, na sua efémera relatividade e nas relações básicas que estabelece entre ser vivo e meio ambiente, todos os momentos.
Quer dizer: o que há de idêntico (e nos identifica com eles, portanto!) entre vários momentos históricos (o que há de actualidade ou perenidade nas reconstituições históricas de Rossellini) é o tecido de relações fundamentais que definem sempre, segundo a mesma lei universal, as relações do ser vivo com o seu meio ambiente. É de notar que esta lei universal, respeitando ao macrocosmos, é a única a permanecer, ainda quando todas as leis dos microcosmos culturais se mudam e transmudam.
Mudam as aparências, mas essa lei cósmica (e não já cultural), esse vínculo fundamental (no sentido em que Asimov empregou a palavra "fundamentos"), essa dialéctica das relações vida-meio ambiente, permanece.
Quer dizer: a realidade permanece, por muito que variem os fenómenos, as raças, até as civilizações sob os quais ela - realidade - se actualiza. A "potência" e o "acto", de Aristóteles, será porventura outra das aquisições da cultura clássica que Rossellini revivifica, moderniza. Exacto: actualiza.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas + 5 estrelas, talvez a melhor coisa que ele escreveu em toda a sua vida, foi publicado no jornal «A Capital», em 9-12-1972
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