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Monday, February 06, 2006

F. KAFKA 70

3565 caracteres - 15/Novembro/1970 - solta do «largo» ou secção «releituras» - secção «heresias & heresiarcas» ]Releituras

8-2-1992

A LITERATURA AVANÇA PELA HERESIA:O EXEMPLO GENIAL DE KAFKA

A simplicidade das «grandes descobertas» explica, em parte, a inconsciência que o próprio Kafka teve do seu génio. Quem, de facto, poderia acreditar que, aproveitando essa evidência -- a linguagem onírica -- essa realidade tão óbvia e quotidiana -- o sonho --, limitando-se a transcrever os pesadelos nocturnos, estava a fazer uma «revolução literária»?
Só a desatenção, a frivolidade de uma cultura completamente cerrada à complexidade do real, à parte imersa do «iceberg», autosuficiente na sua tacanhez, pode explicar que tão pequenas descobertas sejam tão grandes revoluções. Kafka foi apenas, como Freud, um descobridor de evidências que séculos de dogmatismo racionalista, de sistemas metafísicos, de beatismos religiosos, tinham raivosamente ocultado ou menosprezado.
Por isso o autor de «O Castelo» tem muito menos a ver com a literatura-instituição (instituição ao serviço de outras e consabidas instituições) do que com aquela terra de ninguém onde se mexem os descontentes da civilização. A explicação da sua obra em termos estritamente literários, deixa tudo por explicar e os que o querem catalogar, não raro saem danadíssimos de impotência e raiva por não concretizarem a empresa. Com Kafka pisamos o terreno seguro de uma recusa, fundamental à vanguarda do nosso tempo, radicalmente antiliteratura: a recusa à intriga e ao evento, no sentido diuturno em que todo o romanesco de consumo os usa.
Escrever deixa de ser, com Kafka e a partir de Kafka, descrever os múltiplos eventos a que uma visão diurna (analítica) da realidade reduz essa realidade. Com Kafka, entramos no mundo nocturno ou sintético do símbolo, do essencial, do mito. Em vez de «a senhora condessa saiu de casa às onze», Kafka conta-nos os seus pesadelos, que nem saíram de casa e muito menos às onze. Às aparências convencionadas de uma realidade diurna atomizada e desfeita e mesquinha, prefere a continuidade do seu rio interior. Em vez da análise, a síntese. Em vez do secundário, essencial, o que verdadeiramente importa.
A propósito de Kafka, refira-se como a vanguarda do «nouveau roman», reaccionário de origem, regressou em força ao analítico, ao diurno, à multiplicação das formas particulares, ao avulso, ao acessório, ao enumerativo, ao descritivo, ao evento e ao eventicismo, ignorando a via revolucionária encetada por Kafka, e fazendo retornar a literatura à «cochonnerie» que sempre foi.
Refira-se como da inflação analítica resulta a torrente diarreica de romances que o mercado da cultura ocidental comporta. Forma de obstrução, aliás, extremamente eficaz, até para efeitos de esterilização política, pois enquanto se lê uma «novela» de 500 páginas, não se lê «O Capital» e muito menos «Os Manuscritos da Juventude», as páginas mais subversivas de Karl Marx. Convém que o romance seja estimulado com prémios à produção.
O «nouveau roman» não só vai ao mercado, não só descreve todo o tipo de hortaliças que encontra no mercado, como acrescenta ainda o dobro das páginas a contar as diferentes «perspectivas» sob que os repolhos podem ser encarados. O perigo que corre o leitor é darem-lhe um romance de 400 páginas a contar os tipos de repolho que podem ser encontrados no mercado abastecedor. A descrição tipo inventário (que, segundo parece, já chegou ao cinema, em longas metragens que chegam a demorar dias a projectar) vem desatar uma torneira que parecia fechada desde Kafka.
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