ROMANCE 1971
1-3 - quinta-feira, 5 de Dezembro de 2002 - intriga> intriga> literatu> manifest> - grelha aberta – diário de um idiota – inédito ac de 1971 – esboços e ousadias
O ROMANESCO CONTRA O REAL - MANIFESTO CONTRA O ROMANESCO
28/Março/1971 - Entre as várias tácticas de distrair e adiar a que a didáctica reaccionária[????] lança mão, para ter submetidos os aprendizes da ideologia, o romanesco ocupa ligar preponderante, como desvirtuador do real e como pretexto distractivo do que importa, do que verdadeiramente importa.
A cultura em geral, aliás, é um imenso fardo, mas o que se consome em romance ou literatura é ainda a parte maior de todo esse fardo.
Mesmo em crise - criticado pelos teóricos do novo romance, acabou este por fabricar outro padrão de «distrair e adiar» tão abominável[????] como o primeiro -- o romance continua a alimentar o vazio dos cérebros vazios das massas, a completa alienação dos indivíduos, precisamente porque incide sobre o centro dessa alienação: as relações.
Adaptado, em versão para a TV ou para o cinema ou para a fita desenhada, o romanesco é um dos grandes suportes da abjecção e até o Papa Paulo VI já alerta os fiéis para a «poluição anímica» tão «perigosa» como a outra. O Romanesco é criação típica da Civilização do Papel, da coisa sempre teórica, da coisa só mental, do voyerismo» típico e devorador que transfere sempre para o papel, para a teoria, para a cabeça, a existência humana.
Distrai e adiar é, como se sabe, o grande lema da didáctica reaccionária (ao serviço da Abjecção) ou didáctica repressiva: com o romanesco, dos grandes clássicos aos modernos, das obras-primas aos best sellers, com os autores universais, com as sagas familiares de vários volumes e centenas de capítulos, vai o sistema conseguindo empatar e evitar que o cego abra outro olho, que o dorminhoco acorde, que o morto ressuscite, que o alienado se revolte e consciencialize.
Evita a subversão.
Tanto como a Indústria distractiva, a Indústria didáctica é um dos pilares da Abjecção. Aliás o romanesco entrou quase sempre no campo da indústria distractiva e nem só quando produzido por fabrico em série. Os mais brilhantes escritores, muitos prémios Nobel, colaboram nisso, à farta, vão impondo os sempre respeitados clássicos e sua mitologia, para uso do status quo. Modernismo, sim, mas devagar, dizem esses vanguardistas de merda, para quem moderno é apenas mais um gorro que muda de moda e que eles mudam de cabeça .
A «cochonnerie» de que falava Artaud ao falar da literatura de consumo era, com certeza, especialmente dirigida ao romanesco, mais do que a qualquer outra forma de abjecção literária. No romance toda a merda cabe e cabe toda a mediocridade e cabe tudo o que é medíocre.
Estou a ler «O Ouro», de Blaise Cendrars, que me recomendaram como «bom», já não sei onde, e abomino esse ar de «relatório de viagem» que tudo aquilo tem.
Viajar foi, para este tipo de gente, uma alegre palreação pelos confins da terra, comendo e cagando a mesma imunda ideologia que, neste terra sagrada do ocidente, já comiam e cagavam.
É portanto e sempre, a visão do colonizador, que se sobrepõe a tudo o mais em Blaise Cendrars (mas só Blaise Cendrars?), a bisbilhotice do exótico. Nunca ele compreende por dentro a especificidade de cada grupo -- e como poderia compreender, se nem nisso pensa? «O Ouro», exemplo (um entre milhões) de literatura colonizada, no mais exacto, completo e imundo sentido.
Leia-se este mimo (entre centenas de outros):
«As negras e as mulatas preparam-se imensamente, põem grandes pentes de tartaruga na carapinha e flores de plumas. Usam vestidos decotados de cauda comprida e sempre de cores brilhantes. Estão sempre em festa» (página 49 da edição portuguesa, Colecção Miniatura, Livros do Brasil)
Mas toda a literatura está cheia disso, geralmente à conta da «arte pela arte». Por isso a repugnância de que as palavras de André Breton («A literatura leva a toda a parte»), Artaud, Pascoes ou Georges Bataille («literatura, ou é o essencial ou não é nada») repercutem até aos confins da modernidade ideológica, dirige-se principalmente a todos os Cendrars, de ontem e de amanhã, que, em sentido estrito e em sentido lato, vão beberricando e vomitando os seus beberricanços e chamando a isso romance, novela ou (novo) romance. Que lhes faça bom proveito ao estômago, à sua literatura no estômago .
Além de Cendrars, cito mais alguns exemplos [que recentemente me caíram nas mãos] muito recomendados pelos críticos em exercício:
«Os Ratoneiros» de William Faulkner
«O Homem e o Rio» do mesmo William Faulkner
«Planetarium», de Nathalie Sarraute
«Ciúme», de Alain Robbe-Grillet
«Estrada Fora», de Jack Kerouac
«A Paixão», de Almeida Faria
alguns Steinbecks, todo o Hemingway, etc, etc.,
[Uma das razões que explicam o êxito de todo este romanesco imundo, é que lisonjeia a mediocridade dos leitores e dos aspirantes a novo-romancistas, que topam aí uma boa oportunidade de eles também serem «grandes romancistas», já que sê-lo é apenas proporcional à estupidez e cretinice congénita de cada um. Assim vamos]
Cito aqueles -- porque passam por (muito) bons entre os críticos da especialidade e porque pertencem alguns, também, ao «novo romance» que teve veleidades de denunciar a «crise» do romanesco, mas que prosseguiu a crise com um romanesco (se possível) ainda pior.
«As velharias do novo romance» se intitula um artigo que escrevi algures, a propósito desse senhor que tenho o gosto de execrar chamado Robbe-Grillet, focinho dos mais abjectos que a imundície literária nos tem atirado à cara.
Aqui como em tudo, ou a gente se converte ou ficamos amarrados ao sistema a aos baldes de merda que ele nos obriga a tragar. Aqui como no resto, ou se escolhe ou se não escolhe. Ou se opta ou, por covardia e medo, não se opta.
Eu, por mim, [?] escolhi há muito, embora nem sempre tivesse coragem de o afirmar, mesmo para a gaveta. Tanta gente a leccionar literatura, quem se atrevia a dizer não?
Mas, agora, decidi, definitivamente.
Quem quiser tomar banho de merda, que leia literatura de consumo. Quem procurar num livro (mesmo num romance, que de tal só tem aspecto) a companhia que lhe serve e merece, procurará aqueles escritores a que eu chamo poetas.
Em vez de escritores descritores, descritivos, eventicistas, relatores de proezas, em vez de Somerset, dos Faulkner, dos Eça, dos Cardoso Pires, em vez da casca e sempre os da casca, procurará os que nunca se resignaram à mediocridade do sistema e que, ao revoltar-se, são a revolução, o obsceno, o poético: a contra-cultura, quer escrevam novela, verso, romance, teatro, guiões de filme ou para TV, o diabo.
Quer dizer: por detrás da obra (mero sinal de outra coisa, sempre) tem que estar algém, uma alma, uma personalidade, uma experiência existencial, uma resistência à ordem, uma exemplaridade humana, uma singularidade, uma aventura mística, iniciática, etc.
Fora disto, é o que se sabe e o que se vê. Não há grande obra sem grande escritor: banalidade que terá de ser bem sublinhado, agora que os neo-experimentalistas de caca querem impor a obra sem autor.
ENTRONIZAÇÃO PERFEITA DA MEDIOCRIDADE
Hemingway é, como se sabe, a entronização perfeita da Mediocridade: esse homem nunca escreveu duas linhas inteligentes. Nunca disse nada que fosse além da casca: deram-lhe o Nobel, claro. Mereceu-o. Foi dos que mais ajudaram a prestigiar a literatura no estômago. Foi dos que maior elogio fez (implícito, pois nem sequer esperteza para isso teria) do realienatório e reaviltatório que a literatura pode ser quando obediente, admiradora e obrigada.
Deram-lhe o Nobel, claro e muito bem. Suicidou-se. Pudera! Era tão raso e chato, só o entusiasmavam as caçadas. Se eu fosse assim também me suicidava. Só não me suicido é porque penso a vida, desde que nasci, como um suicida: quer dizer, alguém que só tem um minuto de vida para mostar o que vale.
No entanto, Hemingway é uma referência para milhões de leitores, que dele se abeberam, que o tiveram e têm como «autor de culto». Conceitos, critérios, manias.
De charopadas como Hemingway salvam-nos (e salvam a literatura) apenas os escritores off-side, aqueles para quem escrever não é relatar, descrever, descascar (a realidade?), aqueles para quem escrever é uma profunda experiência nunca desligada de existir e que, existindo, escreveram e que escrevendo existiram.
Já o disse nos textos sobre o Obsceno, de que aliás este manifesto anti-romanesco é continuação, embora intervalada por mais de uma dezena de anos.
No verdadeiro escritor, literatura em geral e romanesco em especial terá que ser sinónimo de profecia, iniciação, experiência. Será experiência, gnose e visão: Será sempre uma óptica diferente que oferece resistência à óptica deformada que nos é imposta, inclusive por quase toda a literatura literária (e daí que ele esteja fatalmente ao serviço do sistema).
[Se a vida me deixar, farei um dicionário breve dos que são escritores, mas para esse dicionário deixo já uma achega, sem sair do género que os catálogos dão como romance ou, mais geral, como ficção ou romance.]
[Daqueles em que é mais preponderante e visível uma teoria, através de um protagonista que obvia e confessionalmente representa o alter-ego do autor, cito exemplos que mais frequentemente manuseio: ]
Mais do que a ficção, mais do que o romanesco, são os testemunhos que nos trazem essa companhia, essa força, essa identidade.
Enquanto não chegarmos à noção de «literatura como poesia» e do escritor como poeta, da «literatura como essencial», todos os crimes em nome dela são possíveis. Têm sido e continuarão a ser.
Sem receio de generalizar, direi que toda a criação e toda a exegese da criação (crítica) se liga a uma experiência de carácter iniciático, sem a qual não se passa da casca. Daí o panorama triste, balofo, desvirtuado que aos olhos exigentes apresenta a crítica de arte, especialmente em Portugal, onde a imaginação é tradicionalmente odiada. Como se sabe das inquisições e onde se desconhece que a «única real tradição viva», conforme o peroraram os surrealistas, é a única via da literatura anti-literária. Sem a experiência surrealista, ou uma das que a surrealista exarou em acta, todo o literário não passa de anedota pura. E todo o romanesco (filme, texto, livro) de passatempo para consumir e matar o tempo do consumidor (matá-lo, enfim).
Com ou sem alucinogénicos, a viagem em profundidade é sempre a viagem que importa. É sempre a imaginação em estado puro. Por isso, a todas as obras-primas da ficção universal, prefiro os diários que proveitosamente leio para modelo.
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O ROMANESCO CONTRA O REAL - MANIFESTO CONTRA O ROMANESCO
28/Março/1971 - Entre as várias tácticas de distrair e adiar a que a didáctica reaccionária[????] lança mão, para ter submetidos os aprendizes da ideologia, o romanesco ocupa ligar preponderante, como desvirtuador do real e como pretexto distractivo do que importa, do que verdadeiramente importa.
A cultura em geral, aliás, é um imenso fardo, mas o que se consome em romance ou literatura é ainda a parte maior de todo esse fardo.
Mesmo em crise - criticado pelos teóricos do novo romance, acabou este por fabricar outro padrão de «distrair e adiar» tão abominável[????] como o primeiro -- o romance continua a alimentar o vazio dos cérebros vazios das massas, a completa alienação dos indivíduos, precisamente porque incide sobre o centro dessa alienação: as relações.
Adaptado, em versão para a TV ou para o cinema ou para a fita desenhada, o romanesco é um dos grandes suportes da abjecção e até o Papa Paulo VI já alerta os fiéis para a «poluição anímica» tão «perigosa» como a outra. O Romanesco é criação típica da Civilização do Papel, da coisa sempre teórica, da coisa só mental, do voyerismo» típico e devorador que transfere sempre para o papel, para a teoria, para a cabeça, a existência humana.
Distrai e adiar é, como se sabe, o grande lema da didáctica reaccionária (ao serviço da Abjecção) ou didáctica repressiva: com o romanesco, dos grandes clássicos aos modernos, das obras-primas aos best sellers, com os autores universais, com as sagas familiares de vários volumes e centenas de capítulos, vai o sistema conseguindo empatar e evitar que o cego abra outro olho, que o dorminhoco acorde, que o morto ressuscite, que o alienado se revolte e consciencialize.
Evita a subversão.
Tanto como a Indústria distractiva, a Indústria didáctica é um dos pilares da Abjecção. Aliás o romanesco entrou quase sempre no campo da indústria distractiva e nem só quando produzido por fabrico em série. Os mais brilhantes escritores, muitos prémios Nobel, colaboram nisso, à farta, vão impondo os sempre respeitados clássicos e sua mitologia, para uso do status quo. Modernismo, sim, mas devagar, dizem esses vanguardistas de merda, para quem moderno é apenas mais um gorro que muda de moda e que eles mudam de cabeça .
A «cochonnerie» de que falava Artaud ao falar da literatura de consumo era, com certeza, especialmente dirigida ao romanesco, mais do que a qualquer outra forma de abjecção literária. No romance toda a merda cabe e cabe toda a mediocridade e cabe tudo o que é medíocre.
Estou a ler «O Ouro», de Blaise Cendrars, que me recomendaram como «bom», já não sei onde, e abomino esse ar de «relatório de viagem» que tudo aquilo tem.
Viajar foi, para este tipo de gente, uma alegre palreação pelos confins da terra, comendo e cagando a mesma imunda ideologia que, neste terra sagrada do ocidente, já comiam e cagavam.
É portanto e sempre, a visão do colonizador, que se sobrepõe a tudo o mais em Blaise Cendrars (mas só Blaise Cendrars?), a bisbilhotice do exótico. Nunca ele compreende por dentro a especificidade de cada grupo -- e como poderia compreender, se nem nisso pensa? «O Ouro», exemplo (um entre milhões) de literatura colonizada, no mais exacto, completo e imundo sentido.
Leia-se este mimo (entre centenas de outros):
«As negras e as mulatas preparam-se imensamente, põem grandes pentes de tartaruga na carapinha e flores de plumas. Usam vestidos decotados de cauda comprida e sempre de cores brilhantes. Estão sempre em festa» (página 49 da edição portuguesa, Colecção Miniatura, Livros do Brasil)
Mas toda a literatura está cheia disso, geralmente à conta da «arte pela arte». Por isso a repugnância de que as palavras de André Breton («A literatura leva a toda a parte»), Artaud, Pascoes ou Georges Bataille («literatura, ou é o essencial ou não é nada») repercutem até aos confins da modernidade ideológica, dirige-se principalmente a todos os Cendrars, de ontem e de amanhã, que, em sentido estrito e em sentido lato, vão beberricando e vomitando os seus beberricanços e chamando a isso romance, novela ou (novo) romance. Que lhes faça bom proveito ao estômago, à sua literatura no estômago .
Além de Cendrars, cito mais alguns exemplos [que recentemente me caíram nas mãos] muito recomendados pelos críticos em exercício:
«Os Ratoneiros» de William Faulkner
«O Homem e o Rio» do mesmo William Faulkner
«Planetarium», de Nathalie Sarraute
«Ciúme», de Alain Robbe-Grillet
«Estrada Fora», de Jack Kerouac
«A Paixão», de Almeida Faria
alguns Steinbecks, todo o Hemingway, etc, etc.,
[Uma das razões que explicam o êxito de todo este romanesco imundo, é que lisonjeia a mediocridade dos leitores e dos aspirantes a novo-romancistas, que topam aí uma boa oportunidade de eles também serem «grandes romancistas», já que sê-lo é apenas proporcional à estupidez e cretinice congénita de cada um. Assim vamos]
Cito aqueles -- porque passam por (muito) bons entre os críticos da especialidade e porque pertencem alguns, também, ao «novo romance» que teve veleidades de denunciar a «crise» do romanesco, mas que prosseguiu a crise com um romanesco (se possível) ainda pior.
«As velharias do novo romance» se intitula um artigo que escrevi algures, a propósito desse senhor que tenho o gosto de execrar chamado Robbe-Grillet, focinho dos mais abjectos que a imundície literária nos tem atirado à cara.
Aqui como em tudo, ou a gente se converte ou ficamos amarrados ao sistema a aos baldes de merda que ele nos obriga a tragar. Aqui como no resto, ou se escolhe ou se não escolhe. Ou se opta ou, por covardia e medo, não se opta.
Eu, por mim, [?] escolhi há muito, embora nem sempre tivesse coragem de o afirmar, mesmo para a gaveta. Tanta gente a leccionar literatura, quem se atrevia a dizer não?
Mas, agora, decidi, definitivamente.
Quem quiser tomar banho de merda, que leia literatura de consumo. Quem procurar num livro (mesmo num romance, que de tal só tem aspecto) a companhia que lhe serve e merece, procurará aqueles escritores a que eu chamo poetas.
Em vez de escritores descritores, descritivos, eventicistas, relatores de proezas, em vez de Somerset, dos Faulkner, dos Eça, dos Cardoso Pires, em vez da casca e sempre os da casca, procurará os que nunca se resignaram à mediocridade do sistema e que, ao revoltar-se, são a revolução, o obsceno, o poético: a contra-cultura, quer escrevam novela, verso, romance, teatro, guiões de filme ou para TV, o diabo.
Quer dizer: por detrás da obra (mero sinal de outra coisa, sempre) tem que estar algém, uma alma, uma personalidade, uma experiência existencial, uma resistência à ordem, uma exemplaridade humana, uma singularidade, uma aventura mística, iniciática, etc.
Fora disto, é o que se sabe e o que se vê. Não há grande obra sem grande escritor: banalidade que terá de ser bem sublinhado, agora que os neo-experimentalistas de caca querem impor a obra sem autor.
ENTRONIZAÇÃO PERFEITA DA MEDIOCRIDADE
Hemingway é, como se sabe, a entronização perfeita da Mediocridade: esse homem nunca escreveu duas linhas inteligentes. Nunca disse nada que fosse além da casca: deram-lhe o Nobel, claro. Mereceu-o. Foi dos que mais ajudaram a prestigiar a literatura no estômago. Foi dos que maior elogio fez (implícito, pois nem sequer esperteza para isso teria) do realienatório e reaviltatório que a literatura pode ser quando obediente, admiradora e obrigada.
Deram-lhe o Nobel, claro e muito bem. Suicidou-se. Pudera! Era tão raso e chato, só o entusiasmavam as caçadas. Se eu fosse assim também me suicidava. Só não me suicido é porque penso a vida, desde que nasci, como um suicida: quer dizer, alguém que só tem um minuto de vida para mostar o que vale.
No entanto, Hemingway é uma referência para milhões de leitores, que dele se abeberam, que o tiveram e têm como «autor de culto». Conceitos, critérios, manias.
De charopadas como Hemingway salvam-nos (e salvam a literatura) apenas os escritores off-side, aqueles para quem escrever não é relatar, descrever, descascar (a realidade?), aqueles para quem escrever é uma profunda experiência nunca desligada de existir e que, existindo, escreveram e que escrevendo existiram.
Já o disse nos textos sobre o Obsceno, de que aliás este manifesto anti-romanesco é continuação, embora intervalada por mais de uma dezena de anos.
No verdadeiro escritor, literatura em geral e romanesco em especial terá que ser sinónimo de profecia, iniciação, experiência. Será experiência, gnose e visão: Será sempre uma óptica diferente que oferece resistência à óptica deformada que nos é imposta, inclusive por quase toda a literatura literária (e daí que ele esteja fatalmente ao serviço do sistema).
[Se a vida me deixar, farei um dicionário breve dos que são escritores, mas para esse dicionário deixo já uma achega, sem sair do género que os catálogos dão como romance ou, mais geral, como ficção ou romance.]
[Daqueles em que é mais preponderante e visível uma teoria, através de um protagonista que obvia e confessionalmente representa o alter-ego do autor, cito exemplos que mais frequentemente manuseio: ]
Mais do que a ficção, mais do que o romanesco, são os testemunhos que nos trazem essa companhia, essa força, essa identidade.
Enquanto não chegarmos à noção de «literatura como poesia» e do escritor como poeta, da «literatura como essencial», todos os crimes em nome dela são possíveis. Têm sido e continuarão a ser.
Sem receio de generalizar, direi que toda a criação e toda a exegese da criação (crítica) se liga a uma experiência de carácter iniciático, sem a qual não se passa da casca. Daí o panorama triste, balofo, desvirtuado que aos olhos exigentes apresenta a crítica de arte, especialmente em Portugal, onde a imaginação é tradicionalmente odiada. Como se sabe das inquisições e onde se desconhece que a «única real tradição viva», conforme o peroraram os surrealistas, é a única via da literatura anti-literária. Sem a experiência surrealista, ou uma das que a surrealista exarou em acta, todo o literário não passa de anedota pura. E todo o romanesco (filme, texto, livro) de passatempo para consumir e matar o tempo do consumidor (matá-lo, enfim).
Com ou sem alucinogénicos, a viagem em profundidade é sempre a viagem que importa. É sempre a imaginação em estado puro. Por isso, a todas as obras-primas da ficção universal, prefiro os diários que proveitosamente leio para modelo.
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