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Thursday, June 08, 2006

J. FARRELL 1967

1-3-farrell-1-ls> domingo, 22 de Dezembro de 2002-scan

O MUNDO QUE JAMES FARRELL NÃO FEZ(*)

«Que possuí eu já alguma vez? Nada!»
James Farrell

[8-6-1967, in «Jornal de Notícias»] - Farrell não goza ainda hoje da popularidade que merece. A sua obra, de longe muito acima de alguns prémios Nobel e Pulitzer, supera em qualidade a de muitos autores americanos no entanto internacionalmente célebres.
Farrell enfileira entre os escritores «malditos» dos Estados Unidos. Que também os há e houve no país dos best-sellers literários.
Em Portugal, depois de uma pequena novela – Um Homem e uma Mulher – de importância muito relativa na carreira de James Farrell, foi publicado «O Mundo que eu não Fiz», primeiro volume da sua obra de base. É com ele que podemos e devemos encetar a viagem a um dos escritores mais fascinantes que a América de língua inglesa nos tem dado, tão fascinantes como Henry Miller, embora de repercussão menor na Europa. E de características afins, a começar no teor autobiográfico, seguindo-se o uso livre de uma linguagem libérrima e finalmente a utilização da literatura como arma de vingança, superação e «salvação» pessoal.
Não se encontra em Farrell o repositório crítico e o testemunho acusatório de toda uma civilização como em Henry Miller, mas essa crítica é nele dada por uma galeria de personagens vivendo em condições de tal modo miseráveis e alienatórias que a sociedade aparece retratada, em negativo, indirectamente em questão e em cheque.

FIGURAS PSICOLÒGICAMENTE CARACTERIZADAS

Tal abundância de figuras psicologicamente caracterizadas e diferenciadas, aliás, o distingue de um Miller que fala de si, exclusivamente de si, com os outros em pano de fundo indiferenciado.
Farrell, ao contrário de Miller, percorre ainda todas as gamas do romance clássico, desde os esquemas canónicos da intriga, ao desfiar progressivo da acção e às figuras delineadas, ponto por ponto, sobre um fundo de dramas, episódios, anedotas e eventos reciprocamente en-quadrados também à maneira clássica. Talvez isto explique a pouca voga de Farrell na Europa, onde as tendências de cortar com a linha clássica do romance eclipsaram, por algum tempo, os autores que nessa linha se mantiveram.
Há, no entanto, atributos neste romancista que me parecem de indiscutível modernidade: a sua tesoura crítica, a sua mordacidade impiedosa para os instalados, a sua dostoievskyana - piedade para os humilhados e ofendidos, o seu sen-tido da linguagem oral e coloquial, e, acima de tudo, a riqueza semântica do seu «argot». 90 % de «O Mundo que eu não Fiz» é diálogo. A libertinagem das palavras, aliada ou não a certo frenesi erótico das personagens, são os mecanismos de que Farrell se serve (tal como Henry Miller) para a libertação, a suprema libertação de uma moral que escraviza sexual e espiritualmente os indivíduos. Tal como as blasfémias anatematizam o sagrado que assume a forma de um Jeová tirânico e vingativo, o calão é o exorcismo que liberta os indivíduos, simultaneamente, dessa tirania e desse anátema.
Serve de base à narrativa de «O Mundo que eu não Fiz» um grupo familiar, de ascendência irlandesa e de magérrimos recursos económicos, onde todos lutam pela sobrevivência e procuram melhorar a sua precária situação, à custa muitas vezes daqueles a quem mais querem. O romance narra essa luta no seio da família, na linguagem crua e directa dos pobres, dos que não tendo polimento de linguagem, são mais espontâneos e puros nos seus afectos, nos seus impulsos de amor ou de ódio. Há cenas de inaudita violência verbal, neste livro que parece ter servido ao seu autor de exorcismo.
Farrell, nascido em 1904, publica o livro aos 32 anos, primeiro «painel» de um tríptico autobiográfico onde se propõe contar a vida num bairro suburbano de Chicago, miserável bairro suburbano de Chicago, miserável bairro de uma cidade milionária de um país multimilionário: reportagem dos seus anos de infância, cheios de luz e de sombras, de amizades e rancores, de surpresas e descobertas.
Talvez sem o saber, Farrell escreveu um documento contra o racismo, generalizando os preconceitos de raça que atribui a certas personagens aos mais distantes limi-tes em que eles podem vigorar, inclusive a própria religião. Também aí, denuncia a hipócrita virtude de «um mundo que ele não fez», mundo onde os negócios de Deus estão sempre, por cupidez ou miséria dos homens, subordinados aos negócios da terra; mundo onde se invoca a divindade mas para salvaguardar antes ou depois os interesses da posse; mundo onde se aconselha a moral cristã mas logo a seguir se contradizem os preceitos dessa mo-ral pela maldade das acções e das palavras; mundo que ele tenta re-dimir e perdoar, mas que primeiro denuncia e acusa.
Farrell amalgama as suas pes-soas, atira uma contra as outras, na inevitável luta da sobrevivência, mas num derradeiro esforço procura salvá-las pela ternura e conclui que o ódio une a humanidade tanto como o amor, o ódio é a outra face do amor. À maneira de Carlo Coccioli, Farrell diz-nos que as pessoas vivem indissoluvelmente ligadas e que as explosões de ódio são apenas a outra maneira de saber que estão vivas, a única maneira de o amor se manifestar numa sociedade onde a miséria e a abjecção fundamentalmente o negam e degradam. A partir de tal profissão de fé, compreende-se porque as famílias defendem tão ciosamente esse círculo «sagrado» (embora se digladiem dentro dele) e porque se armam de preconceitos racistas, à falta de um motivo menos cego, menos injusto e manos irracional.

AFONSO CAUTELA

James Thomas Farrell - romancista americano, nasceu em Chicago em 1904. No seu primeiro romance, Young Lonigan (1932) conta a história de um pequeno irlandês dos bairros pobres de Chicago. Dar-lhe-á depois sequência em 1904, com A Juventude de Studs Lonigan e em 1935 O Último Julgamento, que descreve a agonia do herói. Publica depois um romance auto-biográfico em quatro volumes: Um Mundo que eu não Fiz (1936), Nenhuma Estrela Está Perdida (1938), Pai e Filhos (1940) e Os Meus Dias da Ira, onde se mostra discípulo de Theodor Dreiser.

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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em 8-6-1967. A nota bio-bibliográfica foi premonitória, pois das 5 enciclopédias que hoje consultei para confirmar os dois ll de Farrell, só uma – a Larousse brasileira – respondeu. As outras são omissas sobre um dos maiores escritores de todos os tempos. O que me deixa mais tranquilo quanto ao destino da minha posteridade...
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