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Thursday, June 08, 2006

VIOLÊNCIA 1968

68-06-08-di> quarta-feira, 11 de Dezembro de 2002-scan

O CICLO VICIOSO DA VIOLÊNCIA(*)

8-6-1968 - O ciclo vicioso da violência pode impedir que se ajuíze com segurança e serenidade sobre o significado dos crimes políticos que, cada vez mais próximos no tempo, assinalam de tragédia a história contemporânea dos Estados Unidas.
Na sua ambi-guidade característica, a violência é lógica e, ao mesmo tempo, absurda. Se diariamente o hábito da morte provocada já não suscita nem repulsa nem emoção, é no entanto porque ainda esperamos dos homens alguma coisa que vemos explodir, em todo o mundo, um clamor de indignação.
Todos os dias se cometem crimes, todos os dias as balas servem para abater pessoas como animais, uns e outros vítimas inocentes de um ciclo que alguns supõem vicioso, sem termo e sem saída.
O crime político tem outro peso mas, no contexto em que se sucederam as mortes dos irmãos Kennedy e de Luther King, ou de outros homens e mulheres menos famosos mas igualmente adeptos dos mesmos princípios e soldados da mesma causa (a do pacifismo e da revolução não-violenta), para lá das repercussões políticas imediatas, a humanidade que ali se joga e perde é a mesma.
Um crime, seja ele qual for e onde quer que se pratique, compromete-nos a todos. Queiramos ou não, obriga-nos a reflectir sobre aquilo em que, nas nossos actos quotidianos, ou com a nos-sa indiferença e abstenção - contribuímos para o tornar possível, em que o consentimos. É fácil depor a culpa na arma e mão assassinas, mas todos deveremos relembrar que a parte compromete o todo e que todo o acto individual responsabiliza universal e virtualmente o seu autor.
Só por isso as vítimas de crime político têm peso diferente dos crimes comuns, e por isso também tão próximas se encontram das vítimas de crimes de guerra. São os mesmos os problemas que levantam e as responsabilidades que engendram aos vivos, aos que ficam, aos que ainda não foram abatidos, neste ou naquele lugar da terra, nos Estados Unidos ou no Vietname, aos inocentes que são todos os culpados e aos culpados que são todos os inocentes.
Nos atentados de Dalas, Memphis ou Los Angeles, importa não ver actos isolados de malvadez e delírio neurótico, casos, portanto, de psiquiatria social. São antes produtos de uma complexa estrutura de correspondências e, como todos os acontecimentos de significado político (ou sociológico) levam em si uma gama de implica-ções que só a percepção englobante explica, que só um critério totalizante explica.
Porque evidenciar um culpado para ocultar o sistema ou grupo que conspirou, pretender explicar como o todo uma pequeníssima parte do processo, é mecanismo mental que preside à especulação demagógica e, portanto, a todos os crimes, passados, presentes ou futuros.
Nas nossas mãos talvez não esteja modificar o sistema, conciliar grupos rivais ou inimigos, sustar a mão assassina ou denunciar e reabrir processos arquivados, como se diz que Robert Kennedy pretendia, uma vez no Poder; mas resta saber até que ponto a duplicidade e a especulação gratuita podem deformar a verdade ou lógica dos acontecimentos e as hipóteses mais prováveis, mais inteligentes, mais justas para os explicar.

16 de Junho de 1968 - A democracia, de facto, permite a proliferação de grupos extremistas - racistas e fascistas, que programam e praticam a violência - e a sua infiltração na vida pública, de forma que lhes é muito fácil pôr em prática a teoria do crime sistemático, relembrada por Truman Capote, a propósito do assassino de Robert Kennedy (Sarahan) e do livro de madame Blavatsky que pediu para ler na prisão.
Com que fim?
Certamente, o de fazer prevalecer o terror e aniquilar os restos democráticos da política norte-americana. Não se compreenderia que tais crimes fossem praticados pelos que desejam
a não-violência, o pacifismo, a democracia e a coexistência - que era exactamente o que procuravam os assassinados.
No entanto, houve leaders da violência também assassinados e, se a conjura existe, essas mortes podem atribuir-se à mesma e referida doutrina: trata-se de desmoralizar o sistema democrático, não o que existe de facto e na prática mas aquele em nome do qual falavam os Kennedy ou Luther King e em nome do qual foram assassinados: e para isso servem todos os alvos, e quanto maior for a mistura, melhor.
Aliás, se é lícito ir procurar num ajuste de contas partidário - perpetrado pelo bando rival - a causa dos crimes, também seria lícito invocar a cadeia de crimes como vinganças sucessivas: e explicar, por exemplo, o assassínio de Robert Kennedy como vingança dos partidários de Rockwell, assassinado em (???).
Por outro lado, o assassínio de Rockwell, dentro desta lógica, seria consequência da vingança perpetrada pelos partidários de Robert Kennedy ou Luther King ou John Kennedy,mas a contradição é evidente: é lícito mas menos lógico aceitar que os partidários da não-violência aceitassem, mesmo por vingança, o crime como método.
Mais do que a hediondez do crime, em si mesmo irredutível e irremediável, são de sublinhar as tentativas logo verificadas, perante os nossos olhos atónitos, de distrair as atenções e des-pistar-nos do verdadeiro sentido, do verdadeiro alvo, do verdadeiro significado do acontecimento. Mais criminoso do que o próprio crime, parecem-nos ser as tentativas de atribuir a causas grotescas e pueris, o nefando acto, o hediondo acto, ou especular com ele para fins que, no fundo, são indirectamente cúmplices, na medida em que contribuem para a atmosfera de confusionismo e mentira propícia à histeria criminal.
Um acontecimento com o peso e significado de um assassinato político não pode interpretar-se como um evento episódico ou anedótico, resultante de uma mania súbita, de um acesso de cólera individual ou de uma vingança igualmente pessoal, antecedida de rancores e ranger de dentes.
Por incrível que pareça, vimos quem se regosijasse com a morte do senador Robert Kennedy, porque isso "vinha demonstrar onde conduzem as democracias e a liberdade de cada um fazer o que quiser.» Vimos quem se regosijasse, porque isso vinha demonstrar também a corrupção reinante nas esferas partidárias, mormente em períodos eleitorais, onde o dinheiro tudo compra e onde tudo se vende. Vimos os indiferentes e vimos os que reagem por emoção epidérmica.
Quaisquer deles deslocam o problema do seu eixo de equilíbrio, indo procurar culpas e culpados onde eles não estão nem podiam estar, ou em fases e causas demasiado recentes, quando a verdade é que as raízes da violência se devem procurar bastante mais longe: onde há opressão e onde o homem explora outros homens, inicia-se o ciclo infernal cuja ambiguidade, cuja irreversibilidade se pode lamentar mas cuja natureza não deve hipocritamente ocultar-se.
Violência engendra violência, é certo, mas no fundo e na origem do primeiro gesto de ódio está o desprezo, o cinismo, a opressão, a exploração do mais forte e do mais poderoso sobre o mais pobre e o mais fraco.
Não pode nem deve esquecer-se, ou desviar-se para outros alvos, a causa das causas que explicam a violência, quer ela se exerça sobre os homens mais poderosos da terra quer quando se manifesta até por explosões de ódio e de crime entre os mais fracos, deles entre si.
Para os que acreditam nas situações paroxísticas e nas "crises curativas" em política internacional, a cadeia de crimes políticos ocorridos de há 4 anos para cá, nos Estados Unidos, deverá conduzir, inevitavelmente, a uma saída salvadora.
Ainda que várias vitimas tenham de seguir-se, e a violência varra esse país da opulência por alguns anos ainda, o caminho de reforma terá que dar lugar a um caminho de total revolução. Para os becos sem saída, só há uma saída. Quando se chega ao mais fundo desespero, é que a esperança surge. Quando o homem lobo do homem se entredevora de maneira tão eficaz, só um caminho de superação dialéctica (que é diferente de reforma e coexistência conciliatória) se apresenta.
Sempre que um crime político sobressalta e aterra as consciências dos homens justos do mundo, cada um de nós deveria meditar na função que é a sua e no concurso que dá ou se recusa a dar à guerra ideológica.
Porque na guerra ideológica continuam a radicar as últimas e verdadeiras causas dos grandes crimes; a causa verdadeira e última da mão homicida é sempre o mesmo fenómeno: o espírito de fanatismo erigido em regra, em lei, em justiça.
No entanto, o que se verifica é que se consumam os crimes mas a guerra ideológica que os tornou possíveis continua. O crime, instigado e perpetrado por culpa dessa guerra, é depois e novamente, num circuito infernal de vinganças, aproveitado para reacendê-la.
Homicídio ou genocídio, a fonte dos crimes históricos é o fanatismo ideológico. Ou, pelo menos, é sempre em nome de nobres ideais que se mata com mais gosto e fúria.
Saber a verdade, toda a verdade e só a verdade - eis a grande preocupação dos homens depois dos grandes e pequenos crimes.
Mas como é possível saber a verdade, toda a verdade e só a verdade, se cada órgão encarregado de a investigar, e transmitir, a modela e deturpa e transforma e comenta e corrompe?
Onde estão afinal os órgãos de informação que não sejam órgãos de propaganda? Onde está a imprensa como força responsável, que em vez de atear o incêndio ideológico responsável por tantos crimes, contribua para mais verdade e menos ideologia? Onde está o jornal que corrija os desmandos ideológicos das facções partidárias?
Nem sempre se vê claramente a ligação (possível, provável) entre alguns crimes políticos a que vamos assistindo - nos Estados Unidos, estes quatro últimos anos, por exemplo - e o processo lento, persistente, subterrâneo de envenenamento público feito através das propagandas, das histerias ideológicas, da demagogia, dos estereótipos formados e fomentados por essa histeria. E nem sempre se vê claramente a utilidade prática do pensamento crítico, da objectividade na informação.
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(*) Este texto de Afonso Cautela deverá ter permanecido inédito e com toda a razão: não são coisas que se digam em público.
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