INTELIGENTZIA 1971
diário71-2> inédito de 1971 – diário de um idiota – mein kampf
O BALANÇO DA CIVILIZAÇÃO
7/Junho/1971 - A proliferação desordenada de estímulos, factos, ideias e conhecimentos, parece ser a característica dominante da cultura a que se chama tecnológica.
A bio-resposta parece ser também uma proliferação desordenada de células e respectiva patologia chamada cancro.
Em ambos os casos, o processo de sub-divisão, hipertrofia, multiplicação e congestionamento, encontra paralelo no congestionamento urbano e, como ele, é sintoma de doença, de engarrafamento, sem horizontes de cura.
Quer no campo social, quer no campo cultural (ciências e conhecimentos), quer no campo vital (!), a civilização é cancerígena.
Dentro desta tendência para a multiplicação, não admira que se multipliquem os simpósios pare obviar à multiplicação, congressos, encontros, semi simpósios, etc (nenhuma palavra define tão bem a civilização anarco tecno-analítica, como esta: etc) que tentam fazer o balanço, a síntese, o ponto de tantas disciplinas. Fala-se então muito de actividade inter-disciplinar.
Afogado em tanta especialidade, meio maluco de técnicas e tecnicismos, o especialista não tem tempo de se coçar quanto mais de filosofar sobre o alcance da sua profissão: convidam-no então, de vez em quando, a participar em alegres comícios onde se filosofa sobre a ausência da filosofia, onde se apresentam sínteses das sínteses que não existem, onde se lamenta com profundíssimas análises o mal da hiper-análise, onde maniqueisticamente se critica o maniqueísmo do dualismo plato-kantiano e arredores. Onde, em suma, com palavras, se pretende fazer frente à civilização da Verborreia verbal e em papel se combate a civilização do papel. Onde se propõe mais meia dúzia de ciências a haver, que venham resolver problemas criados pela multiplicidade das múltiplas ciências que já havia.
30/8/1971 - Entre a vasta gama de funcionários que servem a ordem burro- tecnocrática, há um curioso “gang" encarregado da propaganda, que exerce a opressão intelectual mais crua e crassa em nome da mentalidade científica e da ciência, sempre!
Característico desse funcionalismo (público) é uma atitude de sistemático achincalhamento de tudo o que, esse mesmo funcionalismo, decide a priori e sem crítica, sem estudo, sem conhecimento, classificar de impostura irracionalista. É impostura irracionalista tudo o que convém à ordem vigente.
Chovem, então, as "desmistificações" da astrologia, do budismo, da mística cristã, do mito, da magia, de tudo, enfim o que, sob o anátema do "obscurantismo irracionalista" os tais funcionários do regime entendem pôr fora de campo, e porque não entendem, e porque lhes faz engulhos, e porque os incomada, e porque os desmascara.
Muito corrente, também, nesse gang de funcionários, é a constante e histérica alegação de que se encontram ao serviço da ciência, de que tudo neles é científico, de que a racionalidade e o espírito positivo rege todos os seus actos, desde a privada (vida deles) até à pública.
Entre nós ouvem-se muito os experimentalistas, os da arte cibernética, os da crítica estruturalista, os da nova crítica e já se ouviram os do neo-realismo, os (ditos) marxistas , os alto lá com o charuto muito científicos todos que se fartam.
Vai-se a ver é tudo - de um ponto de vista efectivamente científico - uma grande droga, porque, além de não coserem duas ideias seguidas que se digam coerentes e lógicas, a "ciência" deles está-se mesmo a ver qual é: a dos manuais que empinaram em qualquer escola para vomitarem em qualquer exame diante de qualquer professor, com vista ao lugar de presidente, professor ou chefe de qualquer coisa. Essa é que é a grande ciência que eles arrotam e nos atiram à cara, com que pretendem calar-nos e tachar-nos de reaccionários, de impressionistas, de obscurantistas, de místicos e de charlatães ao serviço da mais negra irracionalidade, da mais anti-científica impostura, etc, etc.
Na medicina, por exemplo, é cada tonelada de ciência que a gente fica esmagado. Tudo em nome da ciência - incluindo as drogas farmacêuticas, as transplantações e as teorias alimentares que até já os da profissão provaram estar erradas.
É que, além do mais, esses "cientistas" ignoram que a sua famosa "ciência" - não a que eles criaram, mas a que se limitam a usurpar, remastigar, devorar, reproduzir, avacalhar, - não pára de evoluir, porque não é mais nem menos do que um frágil edifício de "teorias" (de hipóteses), constantemente postas à prova na prática e dentro da realidade, sobre as quais teorias nada de eterno, definitivo, imutável e dogmático se pode construir, sobre as quais teorias se vai edificando, portanto, uma prática sempre precária e provisória e transitória, tanto mais frágil e vulnerável ( a prática), quanto menos os tempos vierem comprovando a verdade, a racionalidade, o fundamento e a fertilidade dessas tais teorias.
Assim é que, perante os histéricos lacaios de uma ciência que o deixou de ser a partir do momento em que se transformou em dogma, a partir do momento em que cristalizou e deixou de evoluir (não há ciência que resista ao seu uso e abuso dogmático, incrítico) o investigador out-sider continua a ser considerando um "impostor", um "curandeiro", um veículo de crendices e baboseiras .
Não falando já da miserável sujeição em que se encontra a (chamada) ciência de uma indústria e de uma tecnologia completamente ao serviço da exploração do homem pelo homem, será preciso citar, só como pequeno exemplo, a obediência da Medicina à indústria química? No entanto, ainda há funcionários que têm o arrojo de considerar crendice, devaneio, liberdades poéticas, bruxedos, o esforço de qualquer espírito que, por ser lúcido, queira escapar à histeria de consumo (indústria alimentar) e com ela à histeria de toda uma máquina homicida que tem na medicina seu vade mecum e que se julga impunível só porque a cumplicidade entre funcionários do sistema é total e porque essa cumplicidade, esse crime, se impõem "em nome da ciência.”
CRÍTICA DA PSEUDO-CIÊNCIA
Em 1960, no livro “O Despertar dos Mágicos”, fazia-se a crítica dessa pseudo-ciência que, ao serviço da exploração e da degradação humanas, se continua a apresentar como imaculada. Logo a Union Rationaliste, fundada em 1930 e com sede na Rue de L'École Polytechnique, 16 - Paris 5 , desencadeava contra os autores uma campanha de tal modo histérica, que ficou marcada data em que o"crime legalizado”estava finalmente desmascarado e o local onde ainda lhes doía. A raiva e o furor que tomaram, de repente, tão sisudos senhores, tão objectivos, científicos e racionalistas como esses que a gente por aqui atura, marcaram bem a data e local.
Entre nós, de nada serviu António Sérgio ter andado a pregar, como talvez mais ninguém no mundo, o que vem a ser ciência e qual a ciência que importa e de como se faz ciência pensando. Como ele sempre fez: o amor das novas hipóteses, o ousar teorias, o indagar e desbravar caminhos, a crítica constantemente exercida pela ciência às suas próprias "descobertas" (provisórias, sempre), a ciência entendida como PROBLEMÁTICA, tudo isso esquecem, ou nunca souberam, os que agora tomados do vírus “neopositivista", ou estruturalista, ou positivista-ainda-à-moda- do-Teófilo-Braga, vêm chagar a paciência dos que pacientemente continuam a ensaiar hipóteses, na modesta e apagada fainasinha de afinar os seus próprio intelectos (primeiro), de pesquisar que hipóteses interessam hoje ao avanço do mundo para amanhã (depois).
Como se sabe (mas não sabem os burros tecnocratas da crítica) a imaginação é o nome que tem a ciência quando se alia à poesia. Os autores de Le Matin des Magiciens tiveram que inventar um ismo - o realismo fantástico - para designar o que não fosse nem o dogmatismo da razão nem a superstição do sentimento. Os surrealistas já barafustavam contra as antinomias anacrónicas (que só servem os académicos o filisteus e funcionários do Sistema) que separavam a inteligência do coração, o intelectual do afectivo, a teoria da prática, a poesia da ciência, o uno do múltiplo, o colectivo do individual, o tradicional do novo, o manual do cerebral, o espírito da matéria, a história da actualidade, a fé da experiência, a análise da intuição, etc, etc, toda essa bambochata de prós e contras, única e exclusivamente inventados pelo maniqueísmo da ordem estabelecida, que é sempre maniqueísta nos ruminadores da ciência e nunca nos seus criadores.
Na imaginação criadora - rigorosamente entendida como a faculdade soberana do homem -se fundiam todas as antinomias que não são imputáveis à imaginação mas à sua degradação em “ciência vomitada". Na imaginação estava a palavra. E no ódio à imaginação se unem hoje todos os que, sob o alibi da ciência que nunca criaram nem hão-de criar, julgam liquidar todos os que a criam e continuar a servir-se deles e dela, matando sempre, matando muito.
SOL PARA TODOS OS COLONIZADOS DA INTELIGENTZIA
11/10/1971 - De cada vez que os barbitúricos doutores em crítica me dão com o ponteiro na tola e gritam ciência - porque me acham um crítico muito impressionista lá na gíria deles - faço um esforço de memória e colecciono aqueles homens de ciência que me são de cabeceira, de que fui, sou e serei assíduo frequentador.
Perlustrando um pouco as estantes e cedendo ao pedantismo doutoral de citar nomes, pedantismo a que os doutores constantemente me remetem, vejamos e anotemos como contributo a uma bibliografia do futuro homem de ciência: António Sérgio, Arthur Clark, Bernard Lovell, Linus Pauling, Julian Huxley, Fred Hoyle, Aldous Huxley, Teilhard de Chardin, Einstein (os textos filosóficos e humanistas, claro!...), Foucault, Lévy Strauss, Galileo, Giordano Bruno, Camille Flamarion, Maurice Maeterlinck, Asimov, Josué de Castro, J.B.S. Haldane, Robert Oppenheimer, Freud, Jung, Gaston Bachelard, Jacques Monod, etc
Pois serão estes nomes todos, nomes de literatos? De poetas? De místicos? De irracionalistas? De anti-cientistas?
De cada vem que um fricativo doutor em crítica classifica de "jornalismo”, com ar de soberano desprezo, o ainda possível pensamento público, nesta terra asfixiante inimiga das ideias e do imaginário, é necessário, para não quebrar o moral, a gente lembrar-se de que tem à mão, ali na estante, os bons amigos que têm ido fazendo menos solitária e angustiante esta peregrinação entre compatriotas, que têm, na fronteira da ciência e da imaginação, alimentado o sol à luz do qual depois todos - fricativos incluídos - se vão aquecer.
Se Jacques Monod se encontra nas estantes deste pobretana, deste auto-didacta, deste irrecuperável anti-doutor, não é porque ele tenha a petulância de dominar o pensamento científico de Jacques Monod, hoje o maior herege da Biologia, um dos tais pensadores de fronteira, um dos tais heterodoxos. É apenas porque alinha ao lado de outros hereges da ciência. Biologia e materialismo dialéctico, biologia e filosofia, eis o que o Aprendiz auto-didacta, eis o que se não deixou doutorar pelos colonizadores da inteligentzia, vai aprender em Jacques Monod. De modo a que lhe sirva para outros equilíbrios na corda bamba a que esta terra da doutores obriga todo o colonizado das triunfantes instituições da Intelligentzia em Portugal.
PORQUE SÃO ANTI-ECONÓMICOS OS ESQUEMAS DA ECONOMIA CLÁSSICA
17/12/1971 - Para se fazer entender dos que o hostilizam ou combatem, o herege terá que utilizar a linguagem e a estratégia do adversário (o conformista e funcionário de qualquer ordem estabelecida). Se os números estatísticos, as curvas de rendimento e o cálculo custo-vantagens são os argumentos que normalmente convencem o conformista, há que lhe falar em termos de rentabilidade, mesmo no que aos problemas de saúde e bem estar psicossomático das populações respeita.
No que à saúde pública importa, é muito mais barato prever do que prover. Precaver, por exemplo, mediante hábitos de higiene alimentar e de higiene geral uma epidemia de gripe, custa muito menos ao Estado - se o Estado se quiser incumbir disso - do que, depois da epidemia declarada, recorrer à vacina, à terapêutica e aos múltiplos panos quentes conhecidos, que não impedem os doentes de ficar dias e semanas na cama, dando rombo valente na Economia nacional... Isto sem falar nos prejuízos não propriamente contabilizáveis que até são mais importantes.
Regra geral, entende-se Medicina Preventiva principalmente como vacinação: mas digamos que a vacina já não é preventiva e que a verdadeira prevenção começa na higiene entendida como ataque à causa das causas.
Se um etnologista estudasse os diversos padrões culturais com o propósito de saber qual deles consubstancia o mais aperfeiçoado estádio de civilização e de progresso, talvez concluísse que o padrão tecnológico (ou tecnocrático?) não representa, de maneira nenhuma, um estilo definitivo e ideal de progresso, e isto à luz dos próprios critérios, da própria axiologia, das próprias filosofias de valor inerentes a esse padrão.
Há, de facto, desfasamentos tão gritantes na sua estrutura, que, desde logo, conclamam uma certa reserva, para não dizer uma certa hostilidade, por parte do etnologista, mormente se ele for também um pouco crítico e se teima em utilizar aquele tipo de raciocínio lógico que faz a glória e orgulho do tal supradito padrão cultural.
Os desfasamentos mais notórios, iríamos encontrá-los nos campos da saúde a da doença. Embora haja à vista medidas que se impõem como as mais aconselháveis pelo mais elementar bom senso, pela mais estrita lógica, uma incompreensível inércia continua a determinar tipos de comportamento aberrante, absurdo e até criminoso relativamente aos próprios conceitos de aberrante absurdo e criminoso engendrados dentro do supra-supra dito padrão.
No caso da gripe: estabelecido (pelas autoridades que emitem opinião) que seria relativamente fácil empreender campanhas higiénicas de prevenção, o observador imparcial, o tal etnologista com seu cheirinho de crítico, vai, ano após ano, verificando que a higiene é apenas um capítulo (morto) de certas disciplinas e manuais escolares e de que, na prática, os prejuízos se acumulam nas crises, deixando declarar-se (a gripe) o que podia e devia simplesmente evitar-se. Tal como as cheias no Ribatejo, ano após ano, os incidentes na linha do Estoril, os naufrágios na costa, os acidentes de viação, etc, etc. Continua a verificar-se o que podia pura e simplesmente evitar-se.
Digamos que o conceito de Higiene é um dos tais (muitos) a restabelecer em termos prospectivos, pois é bastante retrospectivo o que por enquanto permanece, nas referidas escolas e nos referidos manuais. Correspondendo ele - conceito de Higiene - a toda uma teoria geral da saúde, que por sua vez é consequência de toda uma teoria geral do mundo e da vida, se entendermos a teoria microbiana como relevante, é óbvio que os cuidados higiénicos continuarão a orientar-se exclusivamente no sentido de combater o vírus (ou a bactéria), relegando o resto para o secundário.
Um exemplo retirado ao quotidiano de todos os portugueses: mesmo a legislação em vigor impõe certos cuidados de "higiene" no fabrico do pão. O próprio público, insensivelmente "educado" pelos hábitos que lhe impõem, é levado a exigir um mínimo de limpeza, um pouco por intuição, um pouco por lenta subconsciencialização dessa necessidade. No entanto, o critério de Higiene a que me referia é bastante mais profundo e exigente. Mais lato. Se os cuidados de limpeza são óbvios, necessários, convenientes e desejáveis, muito mais importante para a Higiene como alguns outros (mais exigentes) hoje a entendem é, no que ao pão se refere, todo o processo de fabrico desde o teor da farinha (se de cereal biológico, se de cereal quimificado, se integral, se refinada) até ao (não ou sim) uso de fermentos industriais, grau de cosedura, misturas, etc.
Quer dizer: o conceito de higiene deixou de ser quantitativo para ser essencialmente qualitativo. Dependendo esse conceito de uma filosofia dietética mais geral e, por sua vez, de uma filosofia terapêutica: se causal como a naturopática, estará a higiene muito mais interessada no teor das farinhas do que na limpeza das padarias; se sintomática, muito mais interessada no micróbio do que nas causas profundas que determinam, através da alimentação, toda uma resistência orgânica das populações às endemias como a gripe e etc.
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O BALANÇO DA CIVILIZAÇÃO
7/Junho/1971 - A proliferação desordenada de estímulos, factos, ideias e conhecimentos, parece ser a característica dominante da cultura a que se chama tecnológica.
A bio-resposta parece ser também uma proliferação desordenada de células e respectiva patologia chamada cancro.
Em ambos os casos, o processo de sub-divisão, hipertrofia, multiplicação e congestionamento, encontra paralelo no congestionamento urbano e, como ele, é sintoma de doença, de engarrafamento, sem horizontes de cura.
Quer no campo social, quer no campo cultural (ciências e conhecimentos), quer no campo vital (!), a civilização é cancerígena.
Dentro desta tendência para a multiplicação, não admira que se multipliquem os simpósios pare obviar à multiplicação, congressos, encontros, semi simpósios, etc (nenhuma palavra define tão bem a civilização anarco tecno-analítica, como esta: etc) que tentam fazer o balanço, a síntese, o ponto de tantas disciplinas. Fala-se então muito de actividade inter-disciplinar.
Afogado em tanta especialidade, meio maluco de técnicas e tecnicismos, o especialista não tem tempo de se coçar quanto mais de filosofar sobre o alcance da sua profissão: convidam-no então, de vez em quando, a participar em alegres comícios onde se filosofa sobre a ausência da filosofia, onde se apresentam sínteses das sínteses que não existem, onde se lamenta com profundíssimas análises o mal da hiper-análise, onde maniqueisticamente se critica o maniqueísmo do dualismo plato-kantiano e arredores. Onde, em suma, com palavras, se pretende fazer frente à civilização da Verborreia verbal e em papel se combate a civilização do papel. Onde se propõe mais meia dúzia de ciências a haver, que venham resolver problemas criados pela multiplicidade das múltiplas ciências que já havia.
30/8/1971 - Entre a vasta gama de funcionários que servem a ordem burro- tecnocrática, há um curioso “gang" encarregado da propaganda, que exerce a opressão intelectual mais crua e crassa em nome da mentalidade científica e da ciência, sempre!
Característico desse funcionalismo (público) é uma atitude de sistemático achincalhamento de tudo o que, esse mesmo funcionalismo, decide a priori e sem crítica, sem estudo, sem conhecimento, classificar de impostura irracionalista. É impostura irracionalista tudo o que convém à ordem vigente.
Chovem, então, as "desmistificações" da astrologia, do budismo, da mística cristã, do mito, da magia, de tudo, enfim o que, sob o anátema do "obscurantismo irracionalista" os tais funcionários do regime entendem pôr fora de campo, e porque não entendem, e porque lhes faz engulhos, e porque os incomada, e porque os desmascara.
Muito corrente, também, nesse gang de funcionários, é a constante e histérica alegação de que se encontram ao serviço da ciência, de que tudo neles é científico, de que a racionalidade e o espírito positivo rege todos os seus actos, desde a privada (vida deles) até à pública.
Entre nós ouvem-se muito os experimentalistas, os da arte cibernética, os da crítica estruturalista, os da nova crítica e já se ouviram os do neo-realismo, os (ditos) marxistas , os alto lá com o charuto muito científicos todos que se fartam.
Vai-se a ver é tudo - de um ponto de vista efectivamente científico - uma grande droga, porque, além de não coserem duas ideias seguidas que se digam coerentes e lógicas, a "ciência" deles está-se mesmo a ver qual é: a dos manuais que empinaram em qualquer escola para vomitarem em qualquer exame diante de qualquer professor, com vista ao lugar de presidente, professor ou chefe de qualquer coisa. Essa é que é a grande ciência que eles arrotam e nos atiram à cara, com que pretendem calar-nos e tachar-nos de reaccionários, de impressionistas, de obscurantistas, de místicos e de charlatães ao serviço da mais negra irracionalidade, da mais anti-científica impostura, etc, etc.
Na medicina, por exemplo, é cada tonelada de ciência que a gente fica esmagado. Tudo em nome da ciência - incluindo as drogas farmacêuticas, as transplantações e as teorias alimentares que até já os da profissão provaram estar erradas.
É que, além do mais, esses "cientistas" ignoram que a sua famosa "ciência" - não a que eles criaram, mas a que se limitam a usurpar, remastigar, devorar, reproduzir, avacalhar, - não pára de evoluir, porque não é mais nem menos do que um frágil edifício de "teorias" (de hipóteses), constantemente postas à prova na prática e dentro da realidade, sobre as quais teorias nada de eterno, definitivo, imutável e dogmático se pode construir, sobre as quais teorias se vai edificando, portanto, uma prática sempre precária e provisória e transitória, tanto mais frágil e vulnerável ( a prática), quanto menos os tempos vierem comprovando a verdade, a racionalidade, o fundamento e a fertilidade dessas tais teorias.
Assim é que, perante os histéricos lacaios de uma ciência que o deixou de ser a partir do momento em que se transformou em dogma, a partir do momento em que cristalizou e deixou de evoluir (não há ciência que resista ao seu uso e abuso dogmático, incrítico) o investigador out-sider continua a ser considerando um "impostor", um "curandeiro", um veículo de crendices e baboseiras .
Não falando já da miserável sujeição em que se encontra a (chamada) ciência de uma indústria e de uma tecnologia completamente ao serviço da exploração do homem pelo homem, será preciso citar, só como pequeno exemplo, a obediência da Medicina à indústria química? No entanto, ainda há funcionários que têm o arrojo de considerar crendice, devaneio, liberdades poéticas, bruxedos, o esforço de qualquer espírito que, por ser lúcido, queira escapar à histeria de consumo (indústria alimentar) e com ela à histeria de toda uma máquina homicida que tem na medicina seu vade mecum e que se julga impunível só porque a cumplicidade entre funcionários do sistema é total e porque essa cumplicidade, esse crime, se impõem "em nome da ciência.”
CRÍTICA DA PSEUDO-CIÊNCIA
Em 1960, no livro “O Despertar dos Mágicos”, fazia-se a crítica dessa pseudo-ciência que, ao serviço da exploração e da degradação humanas, se continua a apresentar como imaculada. Logo a Union Rationaliste, fundada em 1930 e com sede na Rue de L'École Polytechnique, 16 - Paris 5 , desencadeava contra os autores uma campanha de tal modo histérica, que ficou marcada data em que o"crime legalizado”estava finalmente desmascarado e o local onde ainda lhes doía. A raiva e o furor que tomaram, de repente, tão sisudos senhores, tão objectivos, científicos e racionalistas como esses que a gente por aqui atura, marcaram bem a data e local.
Entre nós, de nada serviu António Sérgio ter andado a pregar, como talvez mais ninguém no mundo, o que vem a ser ciência e qual a ciência que importa e de como se faz ciência pensando. Como ele sempre fez: o amor das novas hipóteses, o ousar teorias, o indagar e desbravar caminhos, a crítica constantemente exercida pela ciência às suas próprias "descobertas" (provisórias, sempre), a ciência entendida como PROBLEMÁTICA, tudo isso esquecem, ou nunca souberam, os que agora tomados do vírus “neopositivista", ou estruturalista, ou positivista-ainda-à-moda- do-Teófilo-Braga, vêm chagar a paciência dos que pacientemente continuam a ensaiar hipóteses, na modesta e apagada fainasinha de afinar os seus próprio intelectos (primeiro), de pesquisar que hipóteses interessam hoje ao avanço do mundo para amanhã (depois).
Como se sabe (mas não sabem os burros tecnocratas da crítica) a imaginação é o nome que tem a ciência quando se alia à poesia. Os autores de Le Matin des Magiciens tiveram que inventar um ismo - o realismo fantástico - para designar o que não fosse nem o dogmatismo da razão nem a superstição do sentimento. Os surrealistas já barafustavam contra as antinomias anacrónicas (que só servem os académicos o filisteus e funcionários do Sistema) que separavam a inteligência do coração, o intelectual do afectivo, a teoria da prática, a poesia da ciência, o uno do múltiplo, o colectivo do individual, o tradicional do novo, o manual do cerebral, o espírito da matéria, a história da actualidade, a fé da experiência, a análise da intuição, etc, etc, toda essa bambochata de prós e contras, única e exclusivamente inventados pelo maniqueísmo da ordem estabelecida, que é sempre maniqueísta nos ruminadores da ciência e nunca nos seus criadores.
Na imaginação criadora - rigorosamente entendida como a faculdade soberana do homem -se fundiam todas as antinomias que não são imputáveis à imaginação mas à sua degradação em “ciência vomitada". Na imaginação estava a palavra. E no ódio à imaginação se unem hoje todos os que, sob o alibi da ciência que nunca criaram nem hão-de criar, julgam liquidar todos os que a criam e continuar a servir-se deles e dela, matando sempre, matando muito.
SOL PARA TODOS OS COLONIZADOS DA INTELIGENTZIA
11/10/1971 - De cada vez que os barbitúricos doutores em crítica me dão com o ponteiro na tola e gritam ciência - porque me acham um crítico muito impressionista lá na gíria deles - faço um esforço de memória e colecciono aqueles homens de ciência que me são de cabeceira, de que fui, sou e serei assíduo frequentador.
Perlustrando um pouco as estantes e cedendo ao pedantismo doutoral de citar nomes, pedantismo a que os doutores constantemente me remetem, vejamos e anotemos como contributo a uma bibliografia do futuro homem de ciência: António Sérgio, Arthur Clark, Bernard Lovell, Linus Pauling, Julian Huxley, Fred Hoyle, Aldous Huxley, Teilhard de Chardin, Einstein (os textos filosóficos e humanistas, claro!...), Foucault, Lévy Strauss, Galileo, Giordano Bruno, Camille Flamarion, Maurice Maeterlinck, Asimov, Josué de Castro, J.B.S. Haldane, Robert Oppenheimer, Freud, Jung, Gaston Bachelard, Jacques Monod, etc
Pois serão estes nomes todos, nomes de literatos? De poetas? De místicos? De irracionalistas? De anti-cientistas?
De cada vem que um fricativo doutor em crítica classifica de "jornalismo”, com ar de soberano desprezo, o ainda possível pensamento público, nesta terra asfixiante inimiga das ideias e do imaginário, é necessário, para não quebrar o moral, a gente lembrar-se de que tem à mão, ali na estante, os bons amigos que têm ido fazendo menos solitária e angustiante esta peregrinação entre compatriotas, que têm, na fronteira da ciência e da imaginação, alimentado o sol à luz do qual depois todos - fricativos incluídos - se vão aquecer.
Se Jacques Monod se encontra nas estantes deste pobretana, deste auto-didacta, deste irrecuperável anti-doutor, não é porque ele tenha a petulância de dominar o pensamento científico de Jacques Monod, hoje o maior herege da Biologia, um dos tais pensadores de fronteira, um dos tais heterodoxos. É apenas porque alinha ao lado de outros hereges da ciência. Biologia e materialismo dialéctico, biologia e filosofia, eis o que o Aprendiz auto-didacta, eis o que se não deixou doutorar pelos colonizadores da inteligentzia, vai aprender em Jacques Monod. De modo a que lhe sirva para outros equilíbrios na corda bamba a que esta terra da doutores obriga todo o colonizado das triunfantes instituições da Intelligentzia em Portugal.
PORQUE SÃO ANTI-ECONÓMICOS OS ESQUEMAS DA ECONOMIA CLÁSSICA
17/12/1971 - Para se fazer entender dos que o hostilizam ou combatem, o herege terá que utilizar a linguagem e a estratégia do adversário (o conformista e funcionário de qualquer ordem estabelecida). Se os números estatísticos, as curvas de rendimento e o cálculo custo-vantagens são os argumentos que normalmente convencem o conformista, há que lhe falar em termos de rentabilidade, mesmo no que aos problemas de saúde e bem estar psicossomático das populações respeita.
No que à saúde pública importa, é muito mais barato prever do que prover. Precaver, por exemplo, mediante hábitos de higiene alimentar e de higiene geral uma epidemia de gripe, custa muito menos ao Estado - se o Estado se quiser incumbir disso - do que, depois da epidemia declarada, recorrer à vacina, à terapêutica e aos múltiplos panos quentes conhecidos, que não impedem os doentes de ficar dias e semanas na cama, dando rombo valente na Economia nacional... Isto sem falar nos prejuízos não propriamente contabilizáveis que até são mais importantes.
Regra geral, entende-se Medicina Preventiva principalmente como vacinação: mas digamos que a vacina já não é preventiva e que a verdadeira prevenção começa na higiene entendida como ataque à causa das causas.
Se um etnologista estudasse os diversos padrões culturais com o propósito de saber qual deles consubstancia o mais aperfeiçoado estádio de civilização e de progresso, talvez concluísse que o padrão tecnológico (ou tecnocrático?) não representa, de maneira nenhuma, um estilo definitivo e ideal de progresso, e isto à luz dos próprios critérios, da própria axiologia, das próprias filosofias de valor inerentes a esse padrão.
Há, de facto, desfasamentos tão gritantes na sua estrutura, que, desde logo, conclamam uma certa reserva, para não dizer uma certa hostilidade, por parte do etnologista, mormente se ele for também um pouco crítico e se teima em utilizar aquele tipo de raciocínio lógico que faz a glória e orgulho do tal supradito padrão cultural.
Os desfasamentos mais notórios, iríamos encontrá-los nos campos da saúde a da doença. Embora haja à vista medidas que se impõem como as mais aconselháveis pelo mais elementar bom senso, pela mais estrita lógica, uma incompreensível inércia continua a determinar tipos de comportamento aberrante, absurdo e até criminoso relativamente aos próprios conceitos de aberrante absurdo e criminoso engendrados dentro do supra-supra dito padrão.
No caso da gripe: estabelecido (pelas autoridades que emitem opinião) que seria relativamente fácil empreender campanhas higiénicas de prevenção, o observador imparcial, o tal etnologista com seu cheirinho de crítico, vai, ano após ano, verificando que a higiene é apenas um capítulo (morto) de certas disciplinas e manuais escolares e de que, na prática, os prejuízos se acumulam nas crises, deixando declarar-se (a gripe) o que podia e devia simplesmente evitar-se. Tal como as cheias no Ribatejo, ano após ano, os incidentes na linha do Estoril, os naufrágios na costa, os acidentes de viação, etc, etc. Continua a verificar-se o que podia pura e simplesmente evitar-se.
Digamos que o conceito de Higiene é um dos tais (muitos) a restabelecer em termos prospectivos, pois é bastante retrospectivo o que por enquanto permanece, nas referidas escolas e nos referidos manuais. Correspondendo ele - conceito de Higiene - a toda uma teoria geral da saúde, que por sua vez é consequência de toda uma teoria geral do mundo e da vida, se entendermos a teoria microbiana como relevante, é óbvio que os cuidados higiénicos continuarão a orientar-se exclusivamente no sentido de combater o vírus (ou a bactéria), relegando o resto para o secundário.
Um exemplo retirado ao quotidiano de todos os portugueses: mesmo a legislação em vigor impõe certos cuidados de "higiene" no fabrico do pão. O próprio público, insensivelmente "educado" pelos hábitos que lhe impõem, é levado a exigir um mínimo de limpeza, um pouco por intuição, um pouco por lenta subconsciencialização dessa necessidade. No entanto, o critério de Higiene a que me referia é bastante mais profundo e exigente. Mais lato. Se os cuidados de limpeza são óbvios, necessários, convenientes e desejáveis, muito mais importante para a Higiene como alguns outros (mais exigentes) hoje a entendem é, no que ao pão se refere, todo o processo de fabrico desde o teor da farinha (se de cereal biológico, se de cereal quimificado, se integral, se refinada) até ao (não ou sim) uso de fermentos industriais, grau de cosedura, misturas, etc.
Quer dizer: o conceito de higiene deixou de ser quantitativo para ser essencialmente qualitativo. Dependendo esse conceito de uma filosofia dietética mais geral e, por sua vez, de uma filosofia terapêutica: se causal como a naturopática, estará a higiene muito mais interessada no teor das farinhas do que na limpeza das padarias; se sintomática, muito mais interessada no micróbio do que nas causas profundas que determinam, através da alimentação, toda uma resistência orgânica das populações às endemias como a gripe e etc.
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