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Wednesday, December 07, 2005

POETAS TANG 1990

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9-12-1990

POETAS CHINESES DA DINASTIA TANG (SÉCULOS VIII-X)INSPIRAM ANTÓNIO MAGALHÃES

«A MINHA PÁTRIA NÃO É A LÍNGUA PORTUGUESA»

O poeta António Magalhães, que publica o segundo livro aos 57 anos, não esconde os segredos da sua arte. Quer nas declarações que prestou a «A Capital», quer no próprio livro, «A Flauta na Falange», que a editorial Caminho acaba de lançar, repleto de epígrafes e citações, ele apresenta múltiplas pistas para ajudar o leitor no percurso de uma obra que, no mínimo, se deverá considerar complexa embora não complicada, tal como o I Ching e o Tao Te King, que o autor tem como referências perenes: « Se há coisas que rejeito na minha poesia - afirma Magalhães - uma delas é o hermetismo.»
De facto, a palavra que ele prefere (e profere várias vezes) é «limpidez», sendo esse um dos objectivos desta sua incessante procura das origens e raízes ideográficas da linguagem. Fala com verdadeira paixão, por exemplo, dos poetas chineses (da dinastia) Tang: «Gostaria que o meu livro fosse considerado como um livro muito antigo, um pouco ao nível espiritual e até estilístico dos poetas Tang, entre os séculos VIII e X, um dos períodos áureos da cultura chinesa e universal».

ASSUMINDO INFLUÊNCIAS

Assumindo sem receio nem vergonha as influências literárias que recebeu, conta-nos rapidamente como chegou aos poetas Tang:«François Chang, de origem chinesa e professor universitário de cultura chinesa em França, foi quem me iniciou, há anos, nesta poesia. Autor de várias obras sobre artes plásticas chinesas, foi o seu livro «L'Écriture poétique Chinoise» aquele que mais me influenciou. A tal ponto que aprendi um pouco de chinês medieval e um pouco de japonês, para poder ler no original, entre outros, alguns dos mais conhecidos desses poetas como Li Po, Wang Wei, Tu Fu, etc.»
Este «contágio» da espiritualidade chinesa, no entanto, não aconteceu por contacto directo, como o próprio António Magalhães explica, evocando os casos de Wenceslau de Moraes e Camilo Pessanha, também apaixonados pela cultura chinesa mas porque viveram lá: «Ao contrário desses nossos orientalistas, nunca vivi em Macau e nunca fui à China nem ao Extremo Oriente» sublinha este médico de profissão que, decididamente, em matéria de cultura poética não parece advogar a via intravenosa.

Pluralidade de sentidos: a supermetáfora

Fazendo justiça a uma boa antologia de poetas Tang, traduzidos e apresentados por Gil de Carvalho, na editora Assírio & Alvim, o autor de «A Flauta na Falange» aponta mais algumas nuances que particularizam o seu caso, sem deixar de assinalar, nos poetas referidos, «a sua rede metafórica tão rica, que em período algum se atingiu tal riqueza.» E acrescenta: « Não me interessa apenas escrever mas também conhecer os mecanismos da escrita, os diversos processos que eles usaram».
Partindo do ideograma, em que se baseia a escrita chinesa, não são os «caligramas» à Apollinaire o que visa António Magalhães, mas a pluralidade de sentidos ligados à «escrita ideográfica», uma espécie de supermetáfora. Também não rejeita o epíteto de «poeta experimental», na medida em que toda a investigação poética o é: « Esta escrita ideográfica permite jogos múltiplos de significações, em que os ideogramas se referem e reflectem uns aos outros de verso para verso ou dentro do mesmo verso. Com uma extraordinária economia de meios - muitos poemas são de quatro versos, cada verso constituído por cinco sílabas ou ideogramas -, eles tinham uma pluralidade de significados, o que dá uma grande densidade de conotações ao discurso. Os poetas Tang são importantes, na medida em que souberam aproveitar, de maneira suprema, as possibilidades que lhe dava esta escrita. Permitiram-se as maiores ousadias sintácticas, inultrapassáveis por todas as vanguardas..»
Resta dizer que António Magalhães procura, neste seu livro, não uma «paráfrase» dos Tang mas recriar para a nossa língua os próprios processos estilísticos e mentais que estiveram na base dessa poesia: «É um retomar - explica - desses processos para a nossa língua, procurando a mesma fluidez e limpidez, a mesma liberdade que eles usaram e, aproveitando os significantes da língua portuguesa, tentar apropriar-me da sua incomensurável riqueza.»
E definindo, exclama: «Poesia é isso mesmo: uma das suas funções é uma apropriação da língua. Descendo ao fundo do nosso idioma, descemos ao fundo de nós mesmos mesmos.»

HERANÇAS DIVERSAS

Perante um livro que se reclama de heranças tão diversas e tão «exógenas», a crítica irá ficar, desta vez, não só perplexa e desnorteada mas, atendendo à predominância de fontes orientais, com os olhos em bico. Literalmente falando.
Além dos poetas Tang, a dedicatória inicial do livro «A Flauta na Falange» inclui, de forma algo provocatória porque heterogénea, o poeta Paul Celan, judeu romeno emigrado em França e que viu morrer os pais nos crematórios nazis, Robert Walser, Ozu Yasujiro, Andrei Tarkovski, António Fragoso, Tito Schipa, Krishnamurti, Vergílio Ferreira, António Ramos Rosa, Paulo Teixeira.
Perante a avalanche de dedicatórias e epígrafes justificativas desta sua aventura aos confins da linguagem humana, António Magalhães dá uma última explicação: « A minha pátria não é, como dizia Fernando Pessoa, a língua portuguesa mas a poesia universal de todos os tempos. Daí o meu interesse por múltiplas leituras.» Isto, segundo nos diz, não está em contradição com o propósito de fundo, que é «tentar aprofundar as virtualidades da nossa língua do ponto de vista sintáctico e fonético.» O que explica, em resumo, «os abundantes neologismos que aparecem no livro, que procura essa apropriação das potencialidades da nossa língua.»
Rejeitando o «experimental pelo experimental», António Magalhães reconhece que o «poeta tem que fazer experiências, inventar uma linguagem própria, individualizada.» Curiosamente, o único poeta ocidental - Ezra Pound - onde poderíamos ir encontrar um tipo de preocupações e desafios idênticos aos de Magalhães, é o que não aparece explícito no livro, nem constitui matéria de citação ou epígrafe. Mais um enigma a juntar aos muitos que esta estranha poesia, de extrema (e)oriental limpidez, suscita.
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