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Wednesday, January 04, 2006

M.R.COLAÇO 71

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QUANDO A VERDADE É «BEST-SELLER»-«A CRIANÇA E A VIDA» AGORA A CAMINHO DO MERCADO INTERNACIONAL(*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «Notícias da Amadora», em 9/1/1971]

Acaba de sair em Espanha, através da Editorial Kairós, de Barcelona, o livro de Maria Rosa Colaço que tem sido um dos maiores «best-sellers» portugueses dos últimos anos. A Criança e a Vida, como sabem quase todos, é uma colectânea de textos e desenhos que as crianças de uma escola de Almada realizaram e que a sua professora cuidadosamente reuniu em livro, depois publicado.
Com a publicação em Espanha, através de uma das editoras de maior prestígio, começa agora a sua carreira internacional o que era, há já algum tempo, um dos fenómenos editoriais e literários mais espantosos verificados entre nós. Poderá haver motivos extrínsecos para explicar semelhante êxito, mas não é difícil descobrir também as razões de fundo que tornaram possível essa absoluta sintonização entre um livro e os seus já hoje (a avaliar pela tiragem portuguesa que atingiu os 22 000 exemplares em Maio de 1970) para cima de 30 mil leitores.
Na sua simplicidade, A Criança e a Vida sintetiza várias coordenadas de um novo espírito que, pertencendo a um mundo em vias de nascer, mas ainda por construir, é desde já um dos seus inspiradores e um dos seus obreiros.
A que espírito novo me refiro?
Obrigado a defini-lo em poucas palavras, diria apenas que é a «redescoberta da simplicidade», ou seja, uma das formas possíveis de atingir o Ponto Central de que todos os iniciados falaram, antes e depois do surrealismo reabilitar a palavra.
Ao ler os textos compilados no livro de Maria Rosa Colaço, logo nos apercebemos de que a ele preside uma pedagogia muito pouco ortodoxa.
Ao culto e cultivo da memória, sobrepõe-se aqui o espírito poético, a livre imaginação criadora, a espontaneidade expressiva.
Ao mito da produtividade e do rendimento (mito imposto por uma sociedade concorrencial que faz da escola um treino contabilístico), substituem-se aqui os mitos simples da alegria, da satisfação que dá a uma criança desenvolver as suas capacidades emotivas e artísticas.
O papão dos exames - através do qual se efectua a «selecção da espécie», bons para a frente, maus para trás e para o lixo - é aqui temporariamente esquecido, para se dar o primado a uma fraternal igualdade entre todas as crianças, pois ao nível da expressão criadora todas são iguais, todas têm iguais possibilidades de se manifestarem e de manifestarem o seu valor.
Em vez do classismo inerente à escola velha e seus processos sabatínicos de ma-ratona mnemónica (melhor aluno é o que decora mais e debita mais rapidamente o texto deglutido), temos aqui uma real e democrática faina de equipa, tendo to-dos acesso ao mesmo ideal, mediante as possibilidades de cada um: quando for possível pôr em prática a nova pedagogia de que este livro é sinal e manifesto, não haverá uns melhores do que outros, não haverá classes dentro da escola com vista às classes fora da escola, haverá apenas indivíduos «diferentes», diversas personalidades, maneiras diversificadas de reflectir, abordar e conquistar o mundo.
Mais importante do que decorar um compêndio de História pátria para ir devolvê-lo a exame, é escrever, com um cunho pessoal e próprio, o testemunho pessoal sobre determinado episódio.
O conceito utilitarista e pragmático de Educação é aqui substituído por um conceito criador, útil mas não utilitarista, humanista no sentido em que sobrepõe a todos os interesses materiais a humana valorização da personalidade.
«Não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões-de-coisas... essenciais ao dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio.
«Alimentavam-se de um bocadinho de pão, de um peixe assado e às vezes de água. Apenas.»
Assim descreve Maria Rosa Colaço os 45 alunos com os quais iria acontecer aquilo a que alguns podem chamar «milagre» mas que nada tem de miraculoso para os que acreditam no «homem, esse infinito».
Para que o «homem, esse Infinito» se manifestasse, neste caso concreto, foi ape-nas necessário que coincidissem dois factores. A disponibilidade (digamos mesmo, virgindade) de espírito que aquelas crianças ainda possuíam porque uma escola atrofiante ainda as não liquidara, foi ao encontro de uma idêntica disponibilidade por parte da professora a quem uma escola velha ainda não tivera tempo de desiludir e desmoralizar. E o «milagre» deu-se. Mas quantos milagres mais se podiam dar, se a Escola fosse o que não é?
Embora correndo o risco de que todos os doutores e gente sensata, gente bem, gente instruída e diplomada deste mundo considerasse burla essa compilação de trabalhos infantis (os adultos não acreditam nas crianças, os doutores não suportam os auto-didactas, a ciência ou sapiência não consente a sabedoria da inocência, enfim, o homem não acredita no homem e continua, através de uma pedagogia criminosa, mutilando, desperdiçando, degradando o que nele há de melhor), Maria Rosa Colaço resolveu editar o que já em 1960 fizera sob a forma de exposição ao público.
«Quando eles apareciam, desgrenhados e sujos - a hilariedade era quase completa. Saí de lá muitas vezes a apetecer-me rebentar a cara das pessoas, como o Mário e o Zé rebentaram os vidros da casa de uma senhora que duvidara da autenticidade do que estava exposto. E eram eles que me confortavam, soberanos: «Senhora! Deixe lá. Têm a cabeça cheia de vento. Não percebem nada.»

Sem me parecer que exagero, lembro-me de Galileo. Lembro-me aqui de todos os que tiveram de suportar o zorrague em fogo da troça, o apupo do senso comum, a risada do senhor doutor que sabe tudo e pode tudo, dos que tiveram de lutar entre gramáticos e arqueólogos, contra universidades e universitários, académicos e academias, contra doutores e doutorices, dos que tentaram fazer ver e saber as suas intuições que, pertencendo ao futuro, fatalmente não podiam ser ouvidas e entendidas pelos que servem o presente e dele recebem seus bons ordenados. Penso no auto-didacta, no criador, no contemporâneo do futuro, naquele a quem cabe a designação filosófica de obsceno, de iniciado ou de herético, no que anonimamente leva uma vida a falar do que vai acontecer às pessoas e onde as pessoas depois vão marrar, cegas, sem nunca terem ouvido nem percebido patavina. Penso no que leva a vida fechando na gaveta a luz que só nela pode guardar - porque os guardiões de todos os templos os têm bem blindados.
Lembro, ao nível português, Irene Lisboa e o ghetto em que as escolásticas literárias, os grupos fechados, as revistas bem-pensantes, os órgãos da intelligenzia progressista e etc a colocaram, penso no profundo significado da sua obra e do seu exemplo, penso em como os seus contarelos serão amanhã a genial redescoberta da simplicidade que Maria Rosa Colaço também se limitou a fazer em A Criança e a Vida; ou Miguel Serrano, no livro de 300 exemplares que se chama O Sinal.
Penso nos recusados de hoje, sobre os quais as Universidades desabarão amanhã para as suas teses e doutoramentos.
Penso em todos os esquecidos, muito justamente aliás num mundo e numa sociedade onde a verdade terá que ser, por definição, sempre e fundamentalmente esquecida.
Penso no Amadeo de Sousa Cardoso, no Fernando Pessoa e no D’Assumpção, mas penso nas lágrimas de crocodilo que a crítica (impressionista ontem, científica hoje) já verteu, irá verter sobre outros Amadeo, sobre outros Pessoa, sobre outros D’Assumpção em que hoje escarra ou faz chichi.
Penso em todos os recursos humanos por explorar, porque uma sociedade errada e a crítica sua lacaia, os delapida e frustra e liquida. Penso nos valores que se exportam, porque ninguém quer saber deles, e depois se importam, às gotas, culminados de celebridade. Penso nos que emigram, abalando, e nos que emigram, ficando, nos que a mediocridade coligada, através dos suplementos literários adstritos, expulsa apenas porque lhes fazem sombra.
Penso em tudo isso que excede o pequeno livro A Criança e a Vida, mas suponho que não exagero. Tudo está em tudo, tudo está nesse livro tão simples como só o sabem ser as crianças, os génios e os loucos, os grandes inovadores e iconoclastas que redescobrem as grandes evidências, os heréticos e os out-siders.
Redescobrir a simplicidade é todo um programa (uma antropologia, porque não?) e toda uma pedagogia.
Algumas vezes isto foi dito, mas não ouvido. Galileo é hoje objecto de filmes de pechisbeque por parte daqueles mesmos que hoje o jogariam ao fogo ou mandariam jogar.
O poeta que o é, sabe isto. Maria Rosa Colaço sabe, agiu de acordo e correu os riscos inerentes. Felizmente para nós todos e para os que estão deste lado, venceu. A sua heresia transformou-se num sucesso editorial. Talvez porque as massas comecem a farejar o espírito novo da terra, antes mesmo que as elites da intelligenzia, antes mesmo que os filisteus e académicos de todos os quadrantes.
Arte e poesia - tal como o surrealismo descobriu, após séculos de obscurantismo racionalista - não eram, não têm sido, não poderão ser outra coisa do que o Ponto Central reencontrado.
Só que, após a ofensiva surrealista, se seguiu a interminável Reacção que ainda hoje vigora, em plena força, reclamando-se ainda por cima, para maior confusão, da modernidade, da crítica científica e até do surrealismo (!!!!) mesmo.
A Criança e a Vida contém, implícito, tudo isso: uma revolução literária que é simultaneamente uma revolução pedagógica. À vaga de neo-academismo que empolga hoje a maior parte do publicismo crítico da Imprensa Literária, respondem vozes isoladas, tímidas como as que A Criança e a Vida contém e de que é eco. Vozes que, quase sempre, permanecem no anonimato da gaveta ou no anonimato dos 1000 exemplares de tiragem. A obra literária de Maria Rosa Colaço podia iniciar a lista de exemplos.
Desta vez o vento soprou a favor da verdade.
Mas a luta é de morte e não se julgue que um «best-seller» faça o «milagre» de acordar cadáveres. A Reacção enraíza muito mais fundo do que se supõe. E apresenta caras por vezes desnorteantes.
O jornal A Planície, de que Maria Rosa Colaço foi colaboradora habitual, publicou quinzenalmente, nos anos de 1956 e 1957, uma página - Nós, as Crianças - onde a professora Maria Aldonsa Rosado compilava trabalhos infantis e onde ficou igualmente demonstrado o espírito de uma nova pedagogia para os novos tempos. Por causa disso e de outros issos, travaram-se algumas polémicas, que ainda continuam vigentes e que às vezes se reacendem, com outros protagonistas mas exactamente na mesma linha: aquela que podíamos sintetizar no esquema abreviado «doutor-contra-autodidacta».
Como demonstra A Criança e a Vida, a verdade precisa de ajudas extrínsecas, precisa de factores que a canalizem. Precisa do acaso e da sorte, para vingar. Mas quando, em mil, sai vitoriosa uma vez, falemos disso. Falemos todos disso, muito, e tiremos as conclusões que se impõem. Até por legítima defesa. Quando a verdade chega ao sucesso público, seja ela A Criança e a Vida, seja ela os Cantares do Andarilho, sentimo-nos compensados de uma vida inteira pregando e defendendo, de uma vida inteira a falar para o boneco. A verdade de que, de repente e talvez por via do marketing, milhares de consumidores se apercebem quase simultaneamente.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «Notícias da Amadora», em 9/1/1971
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