MELODRAMA 67
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O MELODRAMA NA LITERATURA MÉDICA
5/1/1967 - Na literatura médica, não é raro um tipo de argumentação, entre o aleatório e o sofístico, que coloca sempre no futuro a solução dos problemas imediatos que não se resolvem de imediato.
A medicina alopática é hoje uma ciência do aleatório: manda esperar, na sala do consultório ou no deserto da indecisão. Há uma grande bicha à radiografia: para as análises são dias ou semanas de espera. O que dá tempo da doença progredir.
Logo no diagnóstico, tão bem apetrechado de raios X e de análises clínicas, começam as impraticabilidades. Na teoria, um edifício lindo de possibilidades e promessas. Na prática tudo distante, indiferente, hostil, aleatório; apenas a desgraça de quem cai na doença e, pior ainda, na engrenagem que comanda os destinos do doente.
A ciência médica precisa de se apresentar como um programa linear, como uma corrida olímpica das trevas para a luz, da barbárie para o progresso, do artesanato para a superindústria, corrida que se encetou um dia e que terá no futuro uma meta a atingir, meta que nunca, obviamente, será alcançada.
Entretanto, espera. Entretanto, o desespero.
Para a ciência médica, as aquisições da humanidade não são cíclicas, concêntricas ou em espiral: são lineares, cronométricas, começam num mítico ponto zero e pretendem encaminhar-se para um ponto ainda mais mítico e fantasmagórico - o infinito - ao qual nunca se viu nem se verá jamais o fim.
A medicina chinesa é uma aquisição circular, definitiva. Não se comportando na linha única do progresso considerado clássico, a medicina chinesa não é aquisição integrável que importa. Para a integrar, há que «adaptá-la». E do método de diagnóstico que é, por exemplo, a acupunctura , faz-se uma técnica de anestesia ou, melhor ainda, um ersatz de violência cirúrgica. Assim que ouviram falar de agulhas, os médicos ocidentais de visita à China Popular ficaram excitadíssimos e quiseram logo saber como era.
A própria China actual desvirtua a medicina tradicional chinesa, desligando-a do contexto filosófico e cosmológico onde tem sentido. Isoladamente, aplicada como adjuvante, a acupunctura é uma irrisória caricatura e caricatura é o aproveitamento sintomatológico que dela estão fazendo os esculápios europeus e americanos.
EXEMPLOS DA LITERATURA ALOPÁTICA
A vida de um colonizado, na qualidade de doente ou paciente, não se pode dizer que seja fácil . Rodeado de gente importante e sábia que, tudo sabendo, nada resolve dos nossos problemas de saúde, nem deixa que outros resolvam, que fazer, por onde seguir?
A literatura médica está cheia de textos em que confessa o seu atraso, em que considera a «desconhecida» a causa de muitas doenças . Dir-se-ia que a alopatia nada numa permanente bruma de mistério. Ainda agora, o metafísico realizador de cinema Ingmar Bergman - com uma fita sádica que se propõe mostrar as várias modalidades de sofrimento acumuladas numa só casa - não se dá sequer ao cuidado de rotular a doença que faz gemer a pobre Agnes, paciente mítica de um mítica moléstia.
É o costume os textos contarem comovedores melodramas de doentes incuráveis ou de doenças misteriosas.
Conta, por exemplo, uma dessas histórias comoventes:
«Há 34 semanas que Nigel está num estado de coma de que - asseguram os médicos - não voltará a sair. O seu sofrimento tem como causa o vírus do sarampo, raro, para o qual os cientistas ainda não foram capazes de descobrir a cura.
«Por isso os médicos estão de acordo em que Nigel, cuja figura se reduz ao esqueleto, as funções vitais falham e o cérebro se deteriora, está condenado a morrer. Mas a mãe não se resigna a aceitar tão cruel inevitabilidade.»
*
Outro melodrama é o de Tracy Olcham, «uma rapariguinha de 8 anos, que passou o dia de Natal a gatinhar no chão ou sentada numa cadeira de rodas.»
Tracy - conta o narrador - nasceu com uma deformação na espinal medula que a deixou paralisada da cintura para baixo, apenas com alguma sensibilidade na perna direita e sem nenhuma na esquerda.
«Em Fevereiro de 1972, Tracy foi uma das principais crianças a quem foi adaptado um aparelho revolucionário que ajuda a andar, descoberto pelo cirugião Gordon Rose, do hospital de Shrewsbury, e pelo engenheiro aeronáutico John Henshaw, da Universidade de Salford.
É leve, barato e permite às pessoas paralisadas das pernas e do tronco andarem sem qualquer ajuda. Foi produzido por uma pequena equipa de investigação, com uma bolsa concedida pelo Ministério da saúde Britânico e pode ser produzido em série por cerca de 3.000$. está à disposição nos Serviços Médicos Públicos. Mas a equipa de investigação espera ainda obter facilidades do Ministério da saúde. «se tivéssemos seis experimentadores em vez de dois, podíamos estar a produzir milhares de aparelhos.» - diz o engenheiro Henshaw.
«Antes de usar o novo aparelho, Tracy podia apenas arrastar-se pelo soalho. «Costumávamos afastar todo o mobiliário à volta do quarto e ela passeava então na sua cadeira de rodas - diz a mãe - Com o aparelho pode pôr-se de pé e, pela primeira vez, é mais alta que seus irmãos mais novos.
Isto teve implicações na sua personalidade. Está agora mais desembaraçada e mais alegre.
«Tracy usa o aparelho quatro ou cinco horas por dia e, segundo conta a mãe, suspira por voltar a utilizá-lo.»
HOMENS-COBAIAS:ONDE ESTÁ O NAZISMO?
Em nome da ciência, a Biocracia dos laboratórios é hoje descrita por cronistas solícitos desta maneira entre humorística e trágica:
« Em pessoas normais, os dois hemisférios cerebrais encontram-se ligados entre si por um largo feixe de fibras nervosas denominado corpo caloso. Os primeiros estudos científicos sobre as diferenças entre os hemisférios começaram há cerca de dez anos, usando como objecto de pesquisa pacientes cujo corpo caloso foi cirurgicamente retirado para evitar a epilepsia. Estes pacientes comportam-se de modo perfeitamente normal, excepto num aspecto: as suas mãos esquerdas «não sabem», literalmente, o que fazem as suas mãos direitas. Um exemplo, um homem que se encontrava nestas condições atacou a mulher com a mão esquerda, enquanto simultaneamente tentava protegê-la desse ataque com a mão direita.»
Este uso de «pacientes» a quem extirparam o corpo caloso, a pretexto de evitar a epilepsia, caiu-me aqui ao pé da esferográfica como sopa na merda. Parece-me altamente elucidativo de processos que, sob outros climas históricos os nossos corações antinazis não hesitariam em classificar de concentracionários.
Lamentável que o nosso antinazismo militante - nisto e no resto - só se aplique a uma geografia e a uma cronologia fixas, não querendo ver onde os nazismos se espalham hoje, a pretexto da ciência e da técnica.
«Usar homens como cobaias» - em que história da Gestapo é que a gente já leu isto?
E, no entanto, o que faz a ciência médica, a Biocracia, mais do que diariamente usar homens como cobaias?
PURA ROTINA
São frequentes, nos jornais, as notícias de medicamentos que os laboratórios estão constantemente a «descobrir», na costumada azáfama de servir a humanidade.
«Maravilhas da técnica», «droga miraculosa», não faltam os ditirambos.
Notícia de Chicago, por exemplo, anuncia uma nova droga «miraculosa» que se afirma ser capaz de curar uma doença até agora incurável - a constipação vulgar.»
«Essa droga - acrescenta a notícia - designada por NPT 10, 381, foi descoberta pelo dr. Paul Gordon, da Escola de Medicina de Chicago, o qual apresentou um relatório na conferência anual da Federação de Ciências Médicas e Biologia Experimental.»
De assinalar nesta rotina noticiosa é apenas que :
- a constipação vulgar é doença até agora incurável pela poderosa medicina
- um medicamento será capaz de curar o que até agora não tinha cura
- o descobridor é doutor, sempre eminente, e apresentou relatório (fatal) a uma ilustre academia de doutores igualmente eminentes , foi muito aplaudido pelos ilustres confrades e assim sucessivamente.
O quadro da ciência académica é sempre este.
Rotina, pura rotina.
***
O MELODRAMA NA LITERATURA MÉDICA
5/1/1967 - Na literatura médica, não é raro um tipo de argumentação, entre o aleatório e o sofístico, que coloca sempre no futuro a solução dos problemas imediatos que não se resolvem de imediato.
A medicina alopática é hoje uma ciência do aleatório: manda esperar, na sala do consultório ou no deserto da indecisão. Há uma grande bicha à radiografia: para as análises são dias ou semanas de espera. O que dá tempo da doença progredir.
Logo no diagnóstico, tão bem apetrechado de raios X e de análises clínicas, começam as impraticabilidades. Na teoria, um edifício lindo de possibilidades e promessas. Na prática tudo distante, indiferente, hostil, aleatório; apenas a desgraça de quem cai na doença e, pior ainda, na engrenagem que comanda os destinos do doente.
A ciência médica precisa de se apresentar como um programa linear, como uma corrida olímpica das trevas para a luz, da barbárie para o progresso, do artesanato para a superindústria, corrida que se encetou um dia e que terá no futuro uma meta a atingir, meta que nunca, obviamente, será alcançada.
Entretanto, espera. Entretanto, o desespero.
Para a ciência médica, as aquisições da humanidade não são cíclicas, concêntricas ou em espiral: são lineares, cronométricas, começam num mítico ponto zero e pretendem encaminhar-se para um ponto ainda mais mítico e fantasmagórico - o infinito - ao qual nunca se viu nem se verá jamais o fim.
A medicina chinesa é uma aquisição circular, definitiva. Não se comportando na linha única do progresso considerado clássico, a medicina chinesa não é aquisição integrável que importa. Para a integrar, há que «adaptá-la». E do método de diagnóstico que é, por exemplo, a acupunctura , faz-se uma técnica de anestesia ou, melhor ainda, um ersatz de violência cirúrgica. Assim que ouviram falar de agulhas, os médicos ocidentais de visita à China Popular ficaram excitadíssimos e quiseram logo saber como era.
A própria China actual desvirtua a medicina tradicional chinesa, desligando-a do contexto filosófico e cosmológico onde tem sentido. Isoladamente, aplicada como adjuvante, a acupunctura é uma irrisória caricatura e caricatura é o aproveitamento sintomatológico que dela estão fazendo os esculápios europeus e americanos.
EXEMPLOS DA LITERATURA ALOPÁTICA
A vida de um colonizado, na qualidade de doente ou paciente, não se pode dizer que seja fácil . Rodeado de gente importante e sábia que, tudo sabendo, nada resolve dos nossos problemas de saúde, nem deixa que outros resolvam, que fazer, por onde seguir?
A literatura médica está cheia de textos em que confessa o seu atraso, em que considera a «desconhecida» a causa de muitas doenças . Dir-se-ia que a alopatia nada numa permanente bruma de mistério. Ainda agora, o metafísico realizador de cinema Ingmar Bergman - com uma fita sádica que se propõe mostrar as várias modalidades de sofrimento acumuladas numa só casa - não se dá sequer ao cuidado de rotular a doença que faz gemer a pobre Agnes, paciente mítica de um mítica moléstia.
É o costume os textos contarem comovedores melodramas de doentes incuráveis ou de doenças misteriosas.
Conta, por exemplo, uma dessas histórias comoventes:
«Há 34 semanas que Nigel está num estado de coma de que - asseguram os médicos - não voltará a sair. O seu sofrimento tem como causa o vírus do sarampo, raro, para o qual os cientistas ainda não foram capazes de descobrir a cura.
«Por isso os médicos estão de acordo em que Nigel, cuja figura se reduz ao esqueleto, as funções vitais falham e o cérebro se deteriora, está condenado a morrer. Mas a mãe não se resigna a aceitar tão cruel inevitabilidade.»
*
Outro melodrama é o de Tracy Olcham, «uma rapariguinha de 8 anos, que passou o dia de Natal a gatinhar no chão ou sentada numa cadeira de rodas.»
Tracy - conta o narrador - nasceu com uma deformação na espinal medula que a deixou paralisada da cintura para baixo, apenas com alguma sensibilidade na perna direita e sem nenhuma na esquerda.
«Em Fevereiro de 1972, Tracy foi uma das principais crianças a quem foi adaptado um aparelho revolucionário que ajuda a andar, descoberto pelo cirugião Gordon Rose, do hospital de Shrewsbury, e pelo engenheiro aeronáutico John Henshaw, da Universidade de Salford.
É leve, barato e permite às pessoas paralisadas das pernas e do tronco andarem sem qualquer ajuda. Foi produzido por uma pequena equipa de investigação, com uma bolsa concedida pelo Ministério da saúde Britânico e pode ser produzido em série por cerca de 3.000$. está à disposição nos Serviços Médicos Públicos. Mas a equipa de investigação espera ainda obter facilidades do Ministério da saúde. «se tivéssemos seis experimentadores em vez de dois, podíamos estar a produzir milhares de aparelhos.» - diz o engenheiro Henshaw.
«Antes de usar o novo aparelho, Tracy podia apenas arrastar-se pelo soalho. «Costumávamos afastar todo o mobiliário à volta do quarto e ela passeava então na sua cadeira de rodas - diz a mãe - Com o aparelho pode pôr-se de pé e, pela primeira vez, é mais alta que seus irmãos mais novos.
Isto teve implicações na sua personalidade. Está agora mais desembaraçada e mais alegre.
«Tracy usa o aparelho quatro ou cinco horas por dia e, segundo conta a mãe, suspira por voltar a utilizá-lo.»
HOMENS-COBAIAS:ONDE ESTÁ O NAZISMO?
Em nome da ciência, a Biocracia dos laboratórios é hoje descrita por cronistas solícitos desta maneira entre humorística e trágica:
« Em pessoas normais, os dois hemisférios cerebrais encontram-se ligados entre si por um largo feixe de fibras nervosas denominado corpo caloso. Os primeiros estudos científicos sobre as diferenças entre os hemisférios começaram há cerca de dez anos, usando como objecto de pesquisa pacientes cujo corpo caloso foi cirurgicamente retirado para evitar a epilepsia. Estes pacientes comportam-se de modo perfeitamente normal, excepto num aspecto: as suas mãos esquerdas «não sabem», literalmente, o que fazem as suas mãos direitas. Um exemplo, um homem que se encontrava nestas condições atacou a mulher com a mão esquerda, enquanto simultaneamente tentava protegê-la desse ataque com a mão direita.»
Este uso de «pacientes» a quem extirparam o corpo caloso, a pretexto de evitar a epilepsia, caiu-me aqui ao pé da esferográfica como sopa na merda. Parece-me altamente elucidativo de processos que, sob outros climas históricos os nossos corações antinazis não hesitariam em classificar de concentracionários.
Lamentável que o nosso antinazismo militante - nisto e no resto - só se aplique a uma geografia e a uma cronologia fixas, não querendo ver onde os nazismos se espalham hoje, a pretexto da ciência e da técnica.
«Usar homens como cobaias» - em que história da Gestapo é que a gente já leu isto?
E, no entanto, o que faz a ciência médica, a Biocracia, mais do que diariamente usar homens como cobaias?
PURA ROTINA
São frequentes, nos jornais, as notícias de medicamentos que os laboratórios estão constantemente a «descobrir», na costumada azáfama de servir a humanidade.
«Maravilhas da técnica», «droga miraculosa», não faltam os ditirambos.
Notícia de Chicago, por exemplo, anuncia uma nova droga «miraculosa» que se afirma ser capaz de curar uma doença até agora incurável - a constipação vulgar.»
«Essa droga - acrescenta a notícia - designada por NPT 10, 381, foi descoberta pelo dr. Paul Gordon, da Escola de Medicina de Chicago, o qual apresentou um relatório na conferência anual da Federação de Ciências Médicas e Biologia Experimental.»
De assinalar nesta rotina noticiosa é apenas que :
- a constipação vulgar é doença até agora incurável pela poderosa medicina
- um medicamento será capaz de curar o que até agora não tinha cura
- o descobridor é doutor, sempre eminente, e apresentou relatório (fatal) a uma ilustre academia de doutores igualmente eminentes , foi muito aplaudido pelos ilustres confrades e assim sucessivamente.
O quadro da ciência académica é sempre este.
Rotina, pura rotina.
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