N. KAZANTZAKI 92
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1-2-1992
FILMES EM CASA - CRÓNICA DE VÍDEO POR TOMÉ DE BARROS - DE NIKOS KAZANTZAKI PARA MARTIN SCORSESE - A DÚVIDA DA FÉ
Três horas de filme para 624 páginas do livro, na edição portuguesa da Arcádia, com tradução de Jorge Feio: eis o balanço de uma quase obra-prima que é o filme «A Última Tentação de Cristo» («The Last Temptation of Christ»). Era, portanto, para Martin Scorsese, o realizador, uma tarefa complexa, embora atraente, onde o tempo deveria ser densamente preenchido para não resultar vazio. Defrontava-se ainda com o problema de uma história arquiconhecida, mil vezes contada e outras tantas posta em cinema. Os diálogos do escritor Nikos Kazantzaki foram reduzidos ao essencial, na dramatização realizada por Paul Schrader, o que não lhes retira intensidade, antes pelo contrário.
Temos, com uma equipa inteligente de técnicos e artistas competentes, mais uma versão da vida (da lenda) de Cristo, na crueldade de alguns momentos (os da crucificação, obviamente) e na pureza de outros. O simbolismo da serpente, do fogo, da árvore -- quando Cristo jejua no deserto, depois de baptizado por João Baptista --é talvez um dos ingredientes menos conseguidos da película.
Outra questão se pode colocar: haveria necessidade de enfatizar tanto o sangue e a dor, de fazer da crucificação o espectáculo tão medonho e hediondo que de facto ele é? Foi a opção de Scorcese, tem que ver com a sua opção filosófica e não o devemos censurar por isso, já que o filme é também, através de Cristo, um testemunho pessoal das obsessões e paixões do realizador. Em seu abono vem a seriedade com que trata as figuras, a suavidade com que transcreve as vozes, a ousadia com que coloca uma banda musical «folk»(?), ou qualquer coisa como música ritual africana, no cenário ora deserto, ora pacificamente campestre da Palestina.
As três horas de filme foram resolvidas, não por soma das partes mas por um sopro inicial de inspiração que ia falhando a Scorsese, confrontado com ambições à partida quase desmedidas. Explica-se assim o episódio público alegadamente «escandaloso» a que o filme daria lugar, antes de estrear em Nova Iorque.
Bem precisado estava de uma certa propaganda e de algum empolamento, o filme que não foi feito para grandes massas de público mas que, também, na solidão individual do vídeo se vê prejudicado na cor e na luz. Apenas no intervalo de tempo onde o tempo pára -- toda a sequência do anjo da guarda -- a imagem se ilumina naturalmente, para perder o castanho, por vezes empastelado, que predomina no resto do tempo.
Quanto ao escândalo público que o filme originou na estreia em Nova Iorque, é fictício. Muito mais fictício do que a ficção com que Nikos Kazantzaki quis humanizar a figura de Cristo. De heresia é que este Cristo não tem nada, antes pelo contrário: remete à mais pura ortodoxia. É na sequência do anjo da guarda, de facto, toda ela em clima onírico, que está o busílis deste livro espantoso do espantoso místico e escritor que foi Nikos Kazantzaki, falecido em 1957 e de que em Portugal, felizmente, existem bastantes obras publicadas, quase sempre em traduções de grande qualidade.
Mais espectacular e verdadeiramente épico é o seu outro livro «O Cristo Recrucificado», mas Scorsese optou por este e há que respeitar a escolha. E se virmos o filme com o amor que ele merece, de certeza que não foi para explorar o episódio virtualmente escabroso de ver o Cristo divino envolvido nos negócios humanos e nas fraquezas da carne.
As dúvidas que dilaceram o coração de Jesus -- princípio de uma concepção existencial, mais tarde escola filosófica -- já tinham constituído objecto de reflexão filosófica em Kierkegaard, que escolheu antes Abraão para testar as forças de Deus face às do Demónio, para personalizar a grande aposta da esperança, a grande dúvida da Fé. Nesta perspectiva, a figura de Judas é quase tão importante como a de Jesus, para não dizer mais importante. A ele foi distribuída a tarefa mais difícil, comparada à de Cristo que era a de morrer na Cruz. É na figura de Judas que a dúvida da Fé assume, convulsiva, a dimensão de alavanca que Kierkegaard expressou em «Temor e Tremor».
Lembre-se que Nikos Kazantzaki já tivera, há bastantes anos, uma adaptação ao cinema da obra «O Bom Demónio», que poucas recordações deixara, principalmente a do actor, o talentoso mas cabotino Anthony Quinn.
Não nos deixemos ludibriar: «A Última Tentação de Cristo» está tão longe da heresia como o seu contrário. Só a Mediocridade, no fundo, é heresia. Porque o espírito sopra em todas as direcções e o amor é que dita a Jesus a ordem de expulsar do Templo os vendilhões.
-----
Publicado em vídeo pela Edivídeo, o belo filme de Martin Scorsese pode ser visto nos seus 156 minutos de duração e dele damos a ficha compacta: [?]
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1-2-1992
FILMES EM CASA - CRÓNICA DE VÍDEO POR TOMÉ DE BARROS - DE NIKOS KAZANTZAKI PARA MARTIN SCORSESE - A DÚVIDA DA FÉ
Três horas de filme para 624 páginas do livro, na edição portuguesa da Arcádia, com tradução de Jorge Feio: eis o balanço de uma quase obra-prima que é o filme «A Última Tentação de Cristo» («The Last Temptation of Christ»). Era, portanto, para Martin Scorsese, o realizador, uma tarefa complexa, embora atraente, onde o tempo deveria ser densamente preenchido para não resultar vazio. Defrontava-se ainda com o problema de uma história arquiconhecida, mil vezes contada e outras tantas posta em cinema. Os diálogos do escritor Nikos Kazantzaki foram reduzidos ao essencial, na dramatização realizada por Paul Schrader, o que não lhes retira intensidade, antes pelo contrário.
Temos, com uma equipa inteligente de técnicos e artistas competentes, mais uma versão da vida (da lenda) de Cristo, na crueldade de alguns momentos (os da crucificação, obviamente) e na pureza de outros. O simbolismo da serpente, do fogo, da árvore -- quando Cristo jejua no deserto, depois de baptizado por João Baptista --é talvez um dos ingredientes menos conseguidos da película.
Outra questão se pode colocar: haveria necessidade de enfatizar tanto o sangue e a dor, de fazer da crucificação o espectáculo tão medonho e hediondo que de facto ele é? Foi a opção de Scorcese, tem que ver com a sua opção filosófica e não o devemos censurar por isso, já que o filme é também, através de Cristo, um testemunho pessoal das obsessões e paixões do realizador. Em seu abono vem a seriedade com que trata as figuras, a suavidade com que transcreve as vozes, a ousadia com que coloca uma banda musical «folk»(?), ou qualquer coisa como música ritual africana, no cenário ora deserto, ora pacificamente campestre da Palestina.
As três horas de filme foram resolvidas, não por soma das partes mas por um sopro inicial de inspiração que ia falhando a Scorsese, confrontado com ambições à partida quase desmedidas. Explica-se assim o episódio público alegadamente «escandaloso» a que o filme daria lugar, antes de estrear em Nova Iorque.
Bem precisado estava de uma certa propaganda e de algum empolamento, o filme que não foi feito para grandes massas de público mas que, também, na solidão individual do vídeo se vê prejudicado na cor e na luz. Apenas no intervalo de tempo onde o tempo pára -- toda a sequência do anjo da guarda -- a imagem se ilumina naturalmente, para perder o castanho, por vezes empastelado, que predomina no resto do tempo.
Quanto ao escândalo público que o filme originou na estreia em Nova Iorque, é fictício. Muito mais fictício do que a ficção com que Nikos Kazantzaki quis humanizar a figura de Cristo. De heresia é que este Cristo não tem nada, antes pelo contrário: remete à mais pura ortodoxia. É na sequência do anjo da guarda, de facto, toda ela em clima onírico, que está o busílis deste livro espantoso do espantoso místico e escritor que foi Nikos Kazantzaki, falecido em 1957 e de que em Portugal, felizmente, existem bastantes obras publicadas, quase sempre em traduções de grande qualidade.
Mais espectacular e verdadeiramente épico é o seu outro livro «O Cristo Recrucificado», mas Scorsese optou por este e há que respeitar a escolha. E se virmos o filme com o amor que ele merece, de certeza que não foi para explorar o episódio virtualmente escabroso de ver o Cristo divino envolvido nos negócios humanos e nas fraquezas da carne.
As dúvidas que dilaceram o coração de Jesus -- princípio de uma concepção existencial, mais tarde escola filosófica -- já tinham constituído objecto de reflexão filosófica em Kierkegaard, que escolheu antes Abraão para testar as forças de Deus face às do Demónio, para personalizar a grande aposta da esperança, a grande dúvida da Fé. Nesta perspectiva, a figura de Judas é quase tão importante como a de Jesus, para não dizer mais importante. A ele foi distribuída a tarefa mais difícil, comparada à de Cristo que era a de morrer na Cruz. É na figura de Judas que a dúvida da Fé assume, convulsiva, a dimensão de alavanca que Kierkegaard expressou em «Temor e Tremor».
Lembre-se que Nikos Kazantzaki já tivera, há bastantes anos, uma adaptação ao cinema da obra «O Bom Demónio», que poucas recordações deixara, principalmente a do actor, o talentoso mas cabotino Anthony Quinn.
Não nos deixemos ludibriar: «A Última Tentação de Cristo» está tão longe da heresia como o seu contrário. Só a Mediocridade, no fundo, é heresia. Porque o espírito sopra em todas as direcções e o amor é que dita a Jesus a ordem de expulsar do Templo os vendilhões.
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Publicado em vídeo pela Edivídeo, o belo filme de Martin Scorsese pode ser visto nos seus 156 minutos de duração e dele damos a ficha compacta: [?]
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