FILMES 1967
1-3 - 67-05-12-LS> leituras selectas do ac – inédito dos meus 34 anos
A CRÍTICA DE FILMES
12 MAIO 1967
Por vontade dos empresários, de cinema ou teatro, o crítico que escreve nos jornais, com a obrigação de esclarecer o público e de falar verdade, deveria usar sobre fitas e peças os mesmos termos que usam os agentes de publicidade.
Quando falasse de um encenador - que ele fosse, sempre e sem vírgulas, "esclarecido" além de "inteligente"; quando de actor se tratasse - nem hesitar - "um dos grandes e positivos valores da cena portuguesa"; quanto à peça - pois claro, a "obra-prima do século"; e por ali adiante, deviam chover, em cornucópia, as adjectivações sumptuosas, as "notáveis criações", o "excelente actor dramático", a "excepcional interpretação", o "criterioso cenário", a "retumbante" marcação, a imarcescível" cenografia, o "dulcíssimo" bocejo da actriz, o "nobre" bigode do gala, o "frondoso" caramanchão da esquerda, a "portentosa" poltrona do meio.
Quanto a revistas, a produção deveria ser uma "sensacional e única obra-prima", uma "caríssima" montagem, um íssimo êxito e etc.
Quanto a autores de versos e "melodias", mestres talentosos, altos catedráticos, maviosos compositores. E o corpo de baile, sempre, sem pestanejar, um "gracioso friso de esculturais "girls".
Por gosto e vontade de quantos têm entre nós o negócio dos espectáculos, o crítico deveria, nem mais nem menos, obedecer a esta tabela de adjectivações e renegar tudo quanto seja o substantivo seco e peco, as sérias reservas, o pensamento, o raciocínio, enfim: a crítica. Mas esquecem que em tal caso renegariam também as boas ocasiões de entusiasmo, aquelas raras mas compensadoras oportunidades de aplaudir, de salientar o bom do mau e até o óptimo do bom.
Nivelando pelos termos publicitários a sua independência e o seu critério, o observador não poderia, quando chega a altura, louvar com as justas palavras o justo êxito e merecimento.
Não me parece, no fim, que os espectáculos ganhem nada com a lisonja tola e sistemática, com as chapas gastas dos anúncios, com o turbilhonante dispêndio de "sensacionais" e "sumptuosos". Nada ganham os espectáculos, nem actores nem actrizes, nem (evidentemente), o público, a "vida artística" -rubrica- em que pomposamente alguns jornais incluem os espectáculos ca e a vida cultural portuguesa, com a ausência de critica e de critério, com a demissão do jornalista da sua função e do seu posto.
Na exibição cinematográfica faz lei a mesma equivoca base de equívocos. Afinal, para o próprio filme e para a própria casa, vale mais uma opinião independente e assinada - ou um chavão anónimo, um lugar comum publicitário, um adjectivo balofo? Muito mau juízo se terá que fazer do público e da mentalidade média, para aceitar que ele já não distingue a crítica da lisonja encomendada.
E muito pouco lisonjeiro para o seu leitor, é o jornalista que lhe dá, sistematicamente, gato por lebre, que o não informe honestamente. Porque o problema não consiste até em ter absoluta infalibilidade nos juízos, em acertar sempre, em não acusar limitações na capacidade de apreciar e admirar. Limitações toda a crítica as tem e ninguém pode evitá-las. Mas dentro dessas limitações, e contando com elas ( para as descontar) o leitor aprende a confiar no seu jornal e no seu crítico. Missão estupidamente escravizante é essa de ver, por profissão, espectáculo sobre espectáculo, sempre com a preocupação de ser justo e transmitir uma opinião clara, sucinta, que oriente e sirva de guia, missão que por isso os senhores empresários deviam olhar com menos acinte e mais compreensão.
Alguns vão ao ponto de afirmar que a crítica "derruba " um filme, mas nunca dirão que o êxito de outros se deve à crítica... Estranho raciocínio este, segundo o qual a crítica para nada serve e nada pode mas pode e serve afinal para influir assim tanto na opinião pública.
É mais que tempo de as excelentíssimas empresas reconhecerem na crítica e nos críticos uma função pública indispensável, com seus direitos e deveres, sua autonomia e sua dignidade, nem sempre em oposição aos sagrados interesses das bilheteiras mas algumas vezes necessariamente em desacordo com as xaropadas que nos impingem e as necedades que nos obrigam a ver. É tempo de verem que dos críticos - destinados a informar e a esclarecer - só podem advir benefícios, na medida em que eles cumpram com absoluta isenção profissional, com exigência para si próprios e para os espectáculos que apreciam, sem degradarem nem alienarem as responsabilidades de que, em princípio, se devem considerar investidos.
Felizmente nem tudo é a arrasadora regra da mediocridade e há excepções, a provarem a razão que assiste à obscura e maltratada missão do crítico. E é bonito de ver quando os factos vêm provar-nos que o melhor caminho do êxito comercial ainda é, muitas vezes, o da qualidade artística.
Quero dizer, quando o filme de qualidade, contra o qual se levantam os preconceitos de espectadores e exibidores, acaba por ser mais comercial do que a produção assim taxativamente designada.
De tal modo o público anda saturado de infra-espionagens, de joselitos, de mistérios até ao fim, de "westerns" alemães, ianques, ítalos, hispânicos ou que tantos, de tal forma o mercado está saturado de películas igualmente "sensacionais" e igualmente parvas ou sensaboronas, que o filme de qualidade acaba por vingar, chegando como refrescante limonada ao nosso deserto... Claro é que, em tal caso, indispensável se torna a valorização, entre tantas insignificâncias, daquilo que merece ser visto e distinguido: não do ângulo rotineiro em que toda a subprodução serve para recensãozinha incensatória mas de um angulo artístico e crítico, portanto.
Quer os exibidores e muitos espectadores queiram ou não queiram, um pouco de ideias, além de não prejudicar assim tanto o negócio como julgam, está a fazer muita falta no triste panorama da programação vista entre nós; falta até, repito, para as caixas fortes dos empresários.
De ano para ano a qualidade da exibição baixa, e já não sabemos que mais apreciar: se o desinteresse com que o espectador "aguenta" as fitas, se as dificuldades titânicas com que as películas se aguentam... em cartaz.
Depois, claro, fala-se de crise e há queixas, e há falências, e as bilheteiras a verem as moscas passar. É altura de choros mas não deixa também de ser "bem feito". Centenas de filmes não chegam aqui certamente porque o preconceito dos importadores as não considera suficientemente "comerciais" Mas saber-se-á, porventura, antes de se saber, o que é e não é comercial?
Quem com tanto tino se julga para o negócio, terá mesmo assim tanto tino e acerto?
Repito a pergunta: um bom filme de qualidade não será, as vezes ou muitas vezes, por acaso e distracção do público, por feliz conjugação dos astros, um filme também que deixe as caixas satisfeitas?
***
A CRÍTICA DE FILMES
12 MAIO 1967
Por vontade dos empresários, de cinema ou teatro, o crítico que escreve nos jornais, com a obrigação de esclarecer o público e de falar verdade, deveria usar sobre fitas e peças os mesmos termos que usam os agentes de publicidade.
Quando falasse de um encenador - que ele fosse, sempre e sem vírgulas, "esclarecido" além de "inteligente"; quando de actor se tratasse - nem hesitar - "um dos grandes e positivos valores da cena portuguesa"; quanto à peça - pois claro, a "obra-prima do século"; e por ali adiante, deviam chover, em cornucópia, as adjectivações sumptuosas, as "notáveis criações", o "excelente actor dramático", a "excepcional interpretação", o "criterioso cenário", a "retumbante" marcação, a imarcescível" cenografia, o "dulcíssimo" bocejo da actriz, o "nobre" bigode do gala, o "frondoso" caramanchão da esquerda, a "portentosa" poltrona do meio.
Quanto a revistas, a produção deveria ser uma "sensacional e única obra-prima", uma "caríssima" montagem, um íssimo êxito e etc.
Quanto a autores de versos e "melodias", mestres talentosos, altos catedráticos, maviosos compositores. E o corpo de baile, sempre, sem pestanejar, um "gracioso friso de esculturais "girls".
Por gosto e vontade de quantos têm entre nós o negócio dos espectáculos, o crítico deveria, nem mais nem menos, obedecer a esta tabela de adjectivações e renegar tudo quanto seja o substantivo seco e peco, as sérias reservas, o pensamento, o raciocínio, enfim: a crítica. Mas esquecem que em tal caso renegariam também as boas ocasiões de entusiasmo, aquelas raras mas compensadoras oportunidades de aplaudir, de salientar o bom do mau e até o óptimo do bom.
Nivelando pelos termos publicitários a sua independência e o seu critério, o observador não poderia, quando chega a altura, louvar com as justas palavras o justo êxito e merecimento.
Não me parece, no fim, que os espectáculos ganhem nada com a lisonja tola e sistemática, com as chapas gastas dos anúncios, com o turbilhonante dispêndio de "sensacionais" e "sumptuosos". Nada ganham os espectáculos, nem actores nem actrizes, nem (evidentemente), o público, a "vida artística" -rubrica- em que pomposamente alguns jornais incluem os espectáculos ca e a vida cultural portuguesa, com a ausência de critica e de critério, com a demissão do jornalista da sua função e do seu posto.
Na exibição cinematográfica faz lei a mesma equivoca base de equívocos. Afinal, para o próprio filme e para a própria casa, vale mais uma opinião independente e assinada - ou um chavão anónimo, um lugar comum publicitário, um adjectivo balofo? Muito mau juízo se terá que fazer do público e da mentalidade média, para aceitar que ele já não distingue a crítica da lisonja encomendada.
E muito pouco lisonjeiro para o seu leitor, é o jornalista que lhe dá, sistematicamente, gato por lebre, que o não informe honestamente. Porque o problema não consiste até em ter absoluta infalibilidade nos juízos, em acertar sempre, em não acusar limitações na capacidade de apreciar e admirar. Limitações toda a crítica as tem e ninguém pode evitá-las. Mas dentro dessas limitações, e contando com elas ( para as descontar) o leitor aprende a confiar no seu jornal e no seu crítico. Missão estupidamente escravizante é essa de ver, por profissão, espectáculo sobre espectáculo, sempre com a preocupação de ser justo e transmitir uma opinião clara, sucinta, que oriente e sirva de guia, missão que por isso os senhores empresários deviam olhar com menos acinte e mais compreensão.
Alguns vão ao ponto de afirmar que a crítica "derruba " um filme, mas nunca dirão que o êxito de outros se deve à crítica... Estranho raciocínio este, segundo o qual a crítica para nada serve e nada pode mas pode e serve afinal para influir assim tanto na opinião pública.
É mais que tempo de as excelentíssimas empresas reconhecerem na crítica e nos críticos uma função pública indispensável, com seus direitos e deveres, sua autonomia e sua dignidade, nem sempre em oposição aos sagrados interesses das bilheteiras mas algumas vezes necessariamente em desacordo com as xaropadas que nos impingem e as necedades que nos obrigam a ver. É tempo de verem que dos críticos - destinados a informar e a esclarecer - só podem advir benefícios, na medida em que eles cumpram com absoluta isenção profissional, com exigência para si próprios e para os espectáculos que apreciam, sem degradarem nem alienarem as responsabilidades de que, em princípio, se devem considerar investidos.
Felizmente nem tudo é a arrasadora regra da mediocridade e há excepções, a provarem a razão que assiste à obscura e maltratada missão do crítico. E é bonito de ver quando os factos vêm provar-nos que o melhor caminho do êxito comercial ainda é, muitas vezes, o da qualidade artística.
Quero dizer, quando o filme de qualidade, contra o qual se levantam os preconceitos de espectadores e exibidores, acaba por ser mais comercial do que a produção assim taxativamente designada.
De tal modo o público anda saturado de infra-espionagens, de joselitos, de mistérios até ao fim, de "westerns" alemães, ianques, ítalos, hispânicos ou que tantos, de tal forma o mercado está saturado de películas igualmente "sensacionais" e igualmente parvas ou sensaboronas, que o filme de qualidade acaba por vingar, chegando como refrescante limonada ao nosso deserto... Claro é que, em tal caso, indispensável se torna a valorização, entre tantas insignificâncias, daquilo que merece ser visto e distinguido: não do ângulo rotineiro em que toda a subprodução serve para recensãozinha incensatória mas de um angulo artístico e crítico, portanto.
Quer os exibidores e muitos espectadores queiram ou não queiram, um pouco de ideias, além de não prejudicar assim tanto o negócio como julgam, está a fazer muita falta no triste panorama da programação vista entre nós; falta até, repito, para as caixas fortes dos empresários.
De ano para ano a qualidade da exibição baixa, e já não sabemos que mais apreciar: se o desinteresse com que o espectador "aguenta" as fitas, se as dificuldades titânicas com que as películas se aguentam... em cartaz.
Depois, claro, fala-se de crise e há queixas, e há falências, e as bilheteiras a verem as moscas passar. É altura de choros mas não deixa também de ser "bem feito". Centenas de filmes não chegam aqui certamente porque o preconceito dos importadores as não considera suficientemente "comerciais" Mas saber-se-á, porventura, antes de se saber, o que é e não é comercial?
Quem com tanto tino se julga para o negócio, terá mesmo assim tanto tino e acerto?
Repito a pergunta: um bom filme de qualidade não será, as vezes ou muitas vezes, por acaso e distracção do público, por feliz conjugação dos astros, um filme também que deixe as caixas satisfeitas?
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