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Wednesday, June 14, 2006

O.LEWIS 1970

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DEPOIS DO MAGNETOFONE - LITERATURA DESCOLONIZADA OU À (RE) DESCOBERTA DO QUOTIDIANO -
QUESTÃO DE PRIORIDADES

14-Junho-1970 - Escreve Oscar Lewis, antropologista americano que se tornou mundialmente famoso com a publicação, há quase dez anos, de uma obra hoje célebre também entre nós: «Os Filhos de Sanchez»:
"O magnetofone utilizado para registar as narrativas deste livro, tornou possível o advento de um novo género de realismo social em literatura. "
Perdoa-se o chauvinismo da afirmação mas, salvo o devido respeito ao ilustre antropologista, e o que pode sempre haver de bizantino, de questionável ou de melindroso nestas questões de prioridades ( qual nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?), outros exemplos se conhecem para reprodução ipsis verbis da realidade.
Não falando de um precursor que todos conhecem e que foi best-seller na sua época - Emile Zola, claro, e porque não? - ocorrem-nos, para já e pelo menos, os casos de Carlo Coccioli, onde a ficção (O Céu e a Terra por exemplo, seguido de O Seixo Branco) se fundamenta numa realidade existente e em que a construção do livro obedece mesmo aos rigores do inquérito, da investigação, da reportagem directa, in loco, e ao propósito de documentar essa realidade, de forma a descobri-la.

LUMPEN-PROTELARIAT E LITERATURA DE MARGINADOS

O lumpen-proletariat assume personalidade quando se confessa e confessa-se para assumir personalidade(única possibilidade ou oportunidade para ele de emancipação). Especialmente se na prisão, onde já o marquês de Sade encontrara não digo o melhor ambiente mas tempo para escrever e folgas para meditar.
Neste capítulo de literatura marginal apetece então citar aqueles que nem magnetofone tiveram a quem confiara a voz. E por isso a confiaram ao papel (mais barato) e à esferográfica (mais à mão de semear).
Condenado à cadeira eléctrica e vivendo o "suspense" arquetípico da nossa época de assassinos (''Voici les assassins", visionara Rimbaud ), Caryl Chessmann escreveu 2455, Cela da Morte, Condenado em Nome da Lei, A Face da Lei, O Garoto era um Assassino e mais escrevera se a corrente eléctrica o não guilhotinara. E foi best-seller, um dos mais espantosos best-seller de todos os tempos.
Só com uma perna mexível, humilhada pela dor física e alucinada pelos pseudo-calmantes químicos, Albertine Sarrazin tem tempo, antes de uma morte serena, merecida e tão longamente esperada, de escrever L’ Astragale.

Violette Leduc vinga-se da fealdade com que um "destino cruel" a marcou - condição ou alienação inelutável ao lado de tantas outras - e escreve um dos maiores romances (romance?) da literatura contemporânea (literatura?): A Bastarda.
Também Danilo Dolci, no seu Inquérito em Palermo, realizara uma "enquête" social que parece de tão largo alcance como o livro de Oscar Lewis.

A ARCAICA TEORIA DOS GÉNEROS LITERÁRIOS

Abandonando, de momento, a bizantina questão de quem saiu ou descobriu primeiro este "novo género literário" (mas será género? Mas será literário? Ou estamos perante o advento do anti-género e do anti-literário?) - e à parte aquilo em que a personalidade de cada um pode ter diferenciado as diversas obras, não estaremos, afinal, perante o fenómeno muito mais lato - e desta vez à escala planetária - da "literatura descolonizada"?
Dar voz aos que até agora a não tiveram, será descoberta recente e exclusiva de Oscar Leis, só porque usou o magnetofone?
Creio que essa experiência, para bem se entender, deverá enquadrar-se no fenómeno muito mais vasto (universal) de emancipação que o terceiro mundo conhece, com raiz e ponto de arranque na literatura.
Literatura aparece então assim e como queriam os surrealistas, com a função de arma. Literatura é assim acção. Contra a literatura dividida em ridículos géneros literários, tão queridos aos académicos e academicistas de todos os matizes (tão virulentos, ainda, por aí, nesta época de modernidades), eis a literatura como acto absoluto e, enquanto tal, como pura subversão.

DOCUMENTO NO MAIS LATO E RIGOROSO SENTIDO

Quando a "nova vaga" francesa descobriu o cinema-verdade, já a reportag semi-confessional fora o caminho de Louis Ferdinand Céline, André Gide, Jean Genet, James Baldwin, - nomes estes colhidos completamente ao acaso da memória mas a que se poderiam acrescentar, em consciência, muitos outros cuidadosamente elegidos.
Mesmo na literatura norte-americana não faltam exemplos de pioneiros, que são bem mais do que precursores, da literatura anti-literária e descolonizada que é a de Oscar Lewis: "Moby Dick”, de Herman Melville, “O Mundo Que eu Não Fiz”, de James Farrell - será abusivo considerá-los exemplares fidedignos de literatura documental, casos em que a Sociologia (ou qualquer outra coisa) transparece da literatura e reciprocamente? Casos em que a literatura parece negar-se exactamente quando e porque se renova, se revoluciona, se metamorfoseia?
Mas - ousando generalizar um pouco mais - Henry Miller não teria nascido escritor, aos 40 anos e sem magnetofone, quando decidiu exorcismar, através da "literatura", os demónios da sua angústia ?
Para um americano talvez seja inédito o processo de Oscar Lewis em Os Filhos de Sanchez ou de Truman Capote em «A Sangue Frio». Mas um europeu relativamente informado sabe que a literatura não foi (voluntária e conscientemente, a partir de certa data, digamos há quarenta e tal anos com os manifestos do surrealismo) mais do que uma anti-literatura e, nos seus momentos anti-académicos, não uma deliberada ficção ou fantasia mas um rigoroso documento sociológico: social no contexto, individual na expressão.

INTEGRAR PARA COMPREENDER

Extrapolando um pouco mais, e tentando não forçar muito a nota, cite-se um best-seller do mercado português do livro e, tentando ainda não ir além do verosímil, veja-se em que consiste: A Criança e A Vida textos de crianças sem magnetofone recolhidos por Maria Rosa Colaço.
Trata-se também de dar voz a um colonizado: a criança. E a injusta, malévola, despeitada suspeita que muitos fizeram recair sobre o livro - de "inautenticidade” se falou e até de "textos forjados" - demonstra ainda quão longe estamos do que o futuro conterá como certezas. Só perfilha tais suspeitas, quem não esteja acostumado a visionar os fenómenos na sua totalidade e no seu constante intercâmbio. Só quem não esteja habituado a pensar. Só quem não esteja habituado a compreender.
Tudo se liga a tudo: se soubéssemos isso, veríamos A Criança e A Vida com os mesmos olhos e dentro do mesmo processo universal que assegura direitos de cidade a Os Filhos de Sanchez, A Sangue Frio, Inquérito em Palermo.

O “CALÃO'' - SINAL INDICATIVO

Os filões de cassiterite podem ser relativamente fáceis de localizar se as populações da zona estiverem educadas para não destruir os sinais do minério que à superfície se encontram, indicativos do filão que existe em profundidade. Um pouco a mesma história do iceberg.
O calão funciona, em literatura, como os indícios de cassiterite e a parte emersa do iceberg. Em relação à literatura que se chamará documental, na fronteira da sociologia.
Do calão, são exemplos James Farrell, Henry Miller, Jean Genet, Céline, expoentes do que já alguém considerou os anti-escritores. Com o calão, e conforme assinala Jean Le Marchand para Oscar Lewis, a linguagem reencontra a sua soberania, o seu uso primordial. Também com o discurso automático, faltaria acrescentar.
Isto já se sabia e largamente praticava antes de Oscar Lewis.
A questão estará em que especialista muito melhor apetrechado de erudição e aparelho crítico queira empreender o que aqui apenas deixamos, em jeito mais do que ensaístico, à guisa de sugestões, como hipóteses de trabalho para a investigação que se impõe.
Ao que sabemos, e tivemos ocasião de confirmar através da informação ultimamente divulgada na imprensa portuguesa sobre romance latino-americano, o "terceiro mundo" da literatura começa a ter aí o seu universo e até a sua fábrica de génios. E nós, como Colombos que nos prezamos de ser, já devemos chegar depois das chuvas. É natural, entre quem receia acima de tudo ficar “contemporâneo do futuro". Preferimos a tranquilidade cómoda do presente unanimemente aceite e reconhecido.
Lenta como todas as descolonizações, seria curioso (e ecuménico, muito ecuménico) não se limitar cada investigador ao seu campo restrito de observação, a tentar alguém a visão de conjunto, corrigida, de todas as partes convergentes interessadas.
Emancipar as “vozes dos sem voz” pode ser um programa aliciante, mas sem restrições racistas. Não interessa repetir vícios, mas evitá-los.

SURREALISMO OU REALISMO DE SINAL MAIS

Mário Cesariny escreveu em A Capital (????), a propósito de Buñuel um artigo particularmente elucidativo sobre a suposta incompatibilidade entre surrealismo (fantasista, quimérico, romântico, irreal, etc etc ) e realismo. Le Chien Andaluz e Les Hurdes seriam, na óptica (míope) de alguns, coisas impossíveis de conviver no mesmo espaço e até no mesmo autor.
Mário Cesariny demonstra que partem da mesma raiz. Real e surreal só não significam o mesmo quando àquele se sonega algo (muito, quase sempre) ou a este se acrescenta o que lhe não respeita. Só os observadores míopes teimam em ver aí um dualismo (mais um dualismo) que, na verdade, não existe.
O "quotidiano reabilitado" pode sê-lo por duas vias convergentes: realismo e surrealismo.
É ainda na literatura do terceiro mundo que iremos encontrar a grande síntese: Miguel Angel Asturias e seu "realismo fantástico" , Jorge Luís Borges e Gabriel Garcia Marquez, autor este também da simbiose: magia e realidade, passado e futuro, quotidiano e maravilhoso, morte e vida.

HIPÓTESES OU "BOUTADES"?

Extrapolando ainda mais, deixamos ao investigador apetrechado e competente, mais esta "louca" hipótese de trabalho e aproximação: saber se El Platero y Yo , de Juan Ramón Jiménez ou o Maránus, de Teixeira de Pascoaes, sendo tentativas de dar voz a vozes que a não têm (na emergência, um burrico e uma montanha...) poderão enquadrar-se no conceito de literatura descolonizada.
"Boutade" que se considere, pode ser que venha a servir, quando o tempo iluminar certas coisas ainda no limbo, por enquanto só entrevistas ou pressentidas. Porque ainda muito no futuro.
A recolha não folclórica efectuada por Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti, de canções "populares", pode ser mais uma curiosa peça a juntar ao processo em vias de estudo e revisão criadora.

INVESTIGAR = INVENTAR A REALIDADE

Todos os esforços, incluindo os da acção, e principalmente os da acção revolucionária, procuram a unidade: são operações de síntese, no sentido de que o homem seja outra vez o que é.
Vemos como Truman Capote, para rejuvenscer a literatura, elabora um estudo sociológico (A Sangue Frio) e parece revivificar a sociologia escrevendo um romance.
Le Nouveau Planète Nº 2 dedica ao assunto um curioso artigo de Jean Le Marchand, em que cita os exemplos de Oscar Lewis, Edgar Morin e Jean Duvignaud, concluindo que a Sociologia pode rivalizar com a Literatura e reciprocamente. Onde acaba uma e começa outra?
Ainda bem que as fronteiras se esbatem. Sempre que as fronteiras se esbatem, o homem progride. Ganha-se um bocado a si próprio. Conquista terreno sobre a angústia da divisão.
Um romance que não é romance e um ensaio que não é ensaio? Ainda bem.
Só o zoologista da literatura fica aterrado por os géneros se fundirem e confundirem. Quando os géneros se entrecruzam, é sinal de que os especialistas deste e daquele território cultural deixam de o ser, para comparticiparem de vários ao mesmo tempo (simultaneidade é uma noção tão importante, em prospectiva, como as de síntese, identidade, alienação e aceleração histórica).
Os "escritores de fronteira" que os críticos de catálogo não sabem onde incluir, são os que abrem vias novas à literatura porque vias novas à investigação, à. invenção da realidade: entre a poesia e a filosofia, entre romance e sociologia, entre novela e ensaio, quando o humano se está enriquecendo, difícil será atribuir exclusividades de campo. Todas as classificações (paragens no movimento perpétuo de tudo) se pulverizam e todas as fronteiras se esbatem. Caminho de liberdade = caminho de heresia = caminho da imaginação.