OVÍDIO 1991
ovídio-1> nw - [ 4226 caracteres - solta para «largo»? - ou secção «releituras»? -visionários e/ou parentes do surrealismo - notas de leitura - exercícios dialécticos - as correspondências imaginárias
A PROPÓSITO DE OVÍDIO(*)
24/7/1991 - Saber se, vinte e dois anos depois, David Mourão Ferreira ainda perfilha a tese hedonista deste ensaio que escreveu, em 1969, para prefaciar a tradução portuguesa de Ovídio, é uma das questões interessantes colocadas pela reedição da «Arte de Amar», um clássico do erotismo soft, que continua a encantar gerações.
A nova edição da Vega apresenta-se com desenhos de Luís Alves da Costa, suficientemente sugestivos para fazerem supor mais do que o próprio texto contém. Na tradução intervieram Natália Correia e David Mourão Ferreira, sem que, no entanto, haja qualquer indicação da parte que coube a um e a outro poeta na versão agora republicada. Note-se que também existe uma versão do mesmo texto realizada por António Borges Coelho para a editora Presença. Estamos perante um dos clássicos que mais atenção têm suscitado por parte dos nossos intelectuais e directores de edição.
Há também quem veja na obra o exemplo acabado de uma determinada mentalidade e filosofia da vida, sobre a qual poderiam recair rótulos como «hedonismo», «paganismo» ou, em culinária portuguesa, «marialvismo alfacinha». A «arte de amar» deveria assim ser entendida como «arte de gozar». E aí é que talvez eles todos se enganem, mesmo quando David Mourão Ferreira, com certa prudência, adverte para aquela imagem de «machine à plaisir» que o poema de Ovídio consagrou da mulher, ainda as feministas não tinham tomado o poder...
Interessante será também saber até que ponto essa corrente subversiva considera a «arte de amar» um insulto ou um elogio à mulher. Uma coisa é certa: este senhor romano, nascido no ano 43 antes de Cristo, incluía o «amor» entre as artes venatórias, pressupondo que a presa, a caça, a espingarda e o ataque mais ou menos bem sucedido, faziam parte do acto em que o homem deverá sempre sair vencedor.
DAS ANTINOMIAS ANACRÓNICAS
A consulta dos clássicos pode, assim, ser útil, se vier repor questões actuais. A «Arte de Amar» indica-nos, por exemplo, que o marialvismo não é exclusivo da tradição portuguesa e que pode radicar-se já nesse paganismo de um autor que nasce 43 anos antes de Cristo e morre 17 anos depois. Estabeleceu-se então uma antinomia que ainda hoje vigora: ao paganismo romano, ao marialvismo «avant la lettre» de que Ovidío é alegre representante entre as cortesãs da época, ter-se-ia contraposto, com o advento do cristianismo e sua moral «espartana» sobre sexo, uma concepção idealista, monástica, moralista e puritana do amor. Sempre que se reagia contra esta concepção, era em nome do paganismo e do neo-paganismo. Ainda hoje as discussões sobre «os sentidos do império» parecem não conhecer outra dicotomia: ou tudo ou nada, mulher do diabo. Mesmo Sade, mesmo os libertinos do século XIX, mesmo os marialvistas portugueses até ao século vinte (Eça pode paradigmatizá-los, mas não faltam na nossa literatura os Teixeira Gomes de várias épocas e extracções) é sempre de um neo-paganismo que se dizem e fazem paladinos.
Ora como demonstram alguns poetas contemporâneos do futuro, que deram cartas em matéria tão delicada - Henry Miller, D.H. Lawrence, Walt Whitman, Paul Éluard, Prévert, Cassiano Ricardo, Drummond de Andrade - essa antinomia deixou de ser definitiva. A arte da dialéctica consiste precisamente em ultrapassar antinomias ultrapassadas. Nem paganismo nem cristianismo, ou paganismo e cristianismo, algo em que só os poetas e visionários estão trabalhando desde ontem para que nasça amanhã: uma nova axiologia a que alguns já começaram a chamar um novo paradigma.
É esse o trabalho do poeta, mesmo que não escreva versos. Modernidade, neste contexto e neste sentido, é sinónimo de mutação para o terceiro termo da alternativa, nem sim, nem sopas. Quem observe ainda hoje as manifestações muito portuguesas de marialvismo na literatura e na vida quotidiana - algumas sob a forma de antimarialvismo - , não deve pensar que fazer-lhe uma crítica pertinente corresponde a uma adopção de esquemas idealistas e românticos: as antinomias passadas só interessam se forem (dialecticamente) ultrapassadas. Escrever e pensar significa escrever e pensar a síntese que natural e inevitavelmente se segue à tese versus antítese.
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(*) Este texto, pelo menos parcialmente, foi publicado no semanário «Notícias da Amadora», em data (até agora) inlocalizada
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A PROPÓSITO DE OVÍDIO(*)
24/7/1991 - Saber se, vinte e dois anos depois, David Mourão Ferreira ainda perfilha a tese hedonista deste ensaio que escreveu, em 1969, para prefaciar a tradução portuguesa de Ovídio, é uma das questões interessantes colocadas pela reedição da «Arte de Amar», um clássico do erotismo soft, que continua a encantar gerações.
A nova edição da Vega apresenta-se com desenhos de Luís Alves da Costa, suficientemente sugestivos para fazerem supor mais do que o próprio texto contém. Na tradução intervieram Natália Correia e David Mourão Ferreira, sem que, no entanto, haja qualquer indicação da parte que coube a um e a outro poeta na versão agora republicada. Note-se que também existe uma versão do mesmo texto realizada por António Borges Coelho para a editora Presença. Estamos perante um dos clássicos que mais atenção têm suscitado por parte dos nossos intelectuais e directores de edição.
Há também quem veja na obra o exemplo acabado de uma determinada mentalidade e filosofia da vida, sobre a qual poderiam recair rótulos como «hedonismo», «paganismo» ou, em culinária portuguesa, «marialvismo alfacinha». A «arte de amar» deveria assim ser entendida como «arte de gozar». E aí é que talvez eles todos se enganem, mesmo quando David Mourão Ferreira, com certa prudência, adverte para aquela imagem de «machine à plaisir» que o poema de Ovídio consagrou da mulher, ainda as feministas não tinham tomado o poder...
Interessante será também saber até que ponto essa corrente subversiva considera a «arte de amar» um insulto ou um elogio à mulher. Uma coisa é certa: este senhor romano, nascido no ano 43 antes de Cristo, incluía o «amor» entre as artes venatórias, pressupondo que a presa, a caça, a espingarda e o ataque mais ou menos bem sucedido, faziam parte do acto em que o homem deverá sempre sair vencedor.
DAS ANTINOMIAS ANACRÓNICAS
A consulta dos clássicos pode, assim, ser útil, se vier repor questões actuais. A «Arte de Amar» indica-nos, por exemplo, que o marialvismo não é exclusivo da tradição portuguesa e que pode radicar-se já nesse paganismo de um autor que nasce 43 anos antes de Cristo e morre 17 anos depois. Estabeleceu-se então uma antinomia que ainda hoje vigora: ao paganismo romano, ao marialvismo «avant la lettre» de que Ovidío é alegre representante entre as cortesãs da época, ter-se-ia contraposto, com o advento do cristianismo e sua moral «espartana» sobre sexo, uma concepção idealista, monástica, moralista e puritana do amor. Sempre que se reagia contra esta concepção, era em nome do paganismo e do neo-paganismo. Ainda hoje as discussões sobre «os sentidos do império» parecem não conhecer outra dicotomia: ou tudo ou nada, mulher do diabo. Mesmo Sade, mesmo os libertinos do século XIX, mesmo os marialvistas portugueses até ao século vinte (Eça pode paradigmatizá-los, mas não faltam na nossa literatura os Teixeira Gomes de várias épocas e extracções) é sempre de um neo-paganismo que se dizem e fazem paladinos.
Ora como demonstram alguns poetas contemporâneos do futuro, que deram cartas em matéria tão delicada - Henry Miller, D.H. Lawrence, Walt Whitman, Paul Éluard, Prévert, Cassiano Ricardo, Drummond de Andrade - essa antinomia deixou de ser definitiva. A arte da dialéctica consiste precisamente em ultrapassar antinomias ultrapassadas. Nem paganismo nem cristianismo, ou paganismo e cristianismo, algo em que só os poetas e visionários estão trabalhando desde ontem para que nasça amanhã: uma nova axiologia a que alguns já começaram a chamar um novo paradigma.
É esse o trabalho do poeta, mesmo que não escreva versos. Modernidade, neste contexto e neste sentido, é sinónimo de mutação para o terceiro termo da alternativa, nem sim, nem sopas. Quem observe ainda hoje as manifestações muito portuguesas de marialvismo na literatura e na vida quotidiana - algumas sob a forma de antimarialvismo - , não deve pensar que fazer-lhe uma crítica pertinente corresponde a uma adopção de esquemas idealistas e românticos: as antinomias passadas só interessam se forem (dialecticamente) ultrapassadas. Escrever e pensar significa escrever e pensar a síntese que natural e inevitavelmente se segue à tese versus antítese.
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(*) Este texto, pelo menos parcialmente, foi publicado no semanário «Notícias da Amadora», em data (até agora) inlocalizada
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