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Wednesday, July 19, 2006

TESTAMENTO PÓSTUMO AC EM 1992

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TESTAMENTO LITERÁRIO-I

20/7/1992 - Se nunca tive paciência para construir um romance, se contos - com princípio, meio e fim - escrevi tantos como os dedos de uma só mão, se versos deixei de os produzir quando entrei para as galés (jornais), por incompatibilidade de registos e feitios entre poesia e quotidiano das notícias, se teatro nem lê-lo quanto mais fazê-lo, se qualquer coisa que se pareça com um poema épico só de pensar nisso me dá agonia, pergunto: como quero eu que perdurem os milhares de páginas que deixei escritas e que, em conjunto, pouco mais são do que diários e cartas, cartas e diários? Fui um escriba (acocorado) de cartas, apontamentos, ideias soltas (contam-se pelas duas dezenas os ensaios longos que me saíram da curta inspiração). Como posso eu aspirar a sobreviver para lá do momento, para lá do efémero? Como posso eu querer a imortalidade e que me editem?
No entanto, alguns casos há de infelizes sem talento como eu que me dão uma certa esperança. Eu gostaria que me publicassem, nem que fosse quando estivesse já a fazer tijolo. Tento comparar-me a esses eternamente póstumos que foram desenterrados muitos anos depois de mortos e fico mais animado: quando tempo terei eu, Oh! Cristo, de esperar debaixo da lousa para ressuscitar? Ajuda-me, Cristo, que sabes destas coisas. Se o Fernando Pessoa só publicou em vida a «Mensagem» e mesmo essa o júri de um prémio lha rejeitou. Se o Kafka lá em Praga só começou a ser digerido postumamente e o seu diário hoje, apesar de babujado pelo seu amigo Max Brod, é tão apresentável como as suas novelas de pesadelo. Se o Ivan Illich, embora subvertendo o sistema, acabou por ser tolerado e vem na Fontana Books, porque não hei-de eu, 30 vezes mais subversivo do que Illich, acabar por ser tolerado também na Enciclopédia do Círculo de Leitores?
Se o Jean Baudrillard tentou apanhar, como eu, o «movimento da abjecção» e a abjecção em movimento, mas não deixou de se ver em livro das edições pirata Galillée, porque não hei-de eu ter esperança ainda que remota de me lerem os ensaios sobre a Abjecção?
Se o Stanislaw Lem, depois de tantos romances canónicos conforme as regras, com princípio, meio e fim, ignorou os diálogos e escreve o anticanónico por excelência que é a «Biblioteca do século XXI», que nem um diálogo tem para amostra, e só pra chatiar, porque não hão-de os meus discursos sem diálogos, os meus cadáveres esquisitos e de non sense ser peças literárias antiliterárias apreciáveis?
Se a maior parte dos livros que Étienne Guillé cita na bibliografia estavam na minha biblioteca e se as intuições que eu alimentei a biberon baseadas nesses livros mostram afinal não ser fantasmas puros, porque não hão-de as centenas de páginas com as minhas malditas intuições ser comercializáveis, nem que seja na feira da Ladra?
Se postmortem o Antonin Artaud já vai em 20 volumes de obra completa, ele que nunca escreveu nada articulado nem uma linha sequer completa, e cuja prosa é - como a minha vida - um vómito, um desastre, um caos, porque não hei-de eu, embora esteja em Portugal e não haja cá nenhuma sucursal da Gallimard, vir a ter também direito a OK (Obras Kompletas) de 20 volumes fora os trocos na casa Hachette de Lisboa?
Se o Fialho de Almeida, sendo a vergonha da minha família como eu, seu primo irmão de Vila de Frades, conseguiu encher 6 volumes com prosas jornalísticas (e o Ramalho 14) porque raio as minhas prosas jornalísticas, reportagens de ficção, críticas, crónicas, não hão-de dar direito também a uns volumes airosos na Clássica?
Se vejo agora em «A Conspiração Aquariana», de Marilyn Ferguson, que há 40 anos tenho razão, fora os trocos, porque não hei-de já agora continuar a ter razão por mais 40 e a ser lido quando as minhas teses agora malditas entrarem nas escolas primárias e quiçá nas secundárias, ou puderem editar-se em histórias aos quadradinhos? O Estado, hoje, em que isto se encontra, não perdoa a quem pensa, mas pode tolerar amanhã, morto, quem o dispensou toda a vida.
Se o Urbano Tavares Rodrigues, o David Mourão, o Vasco PVC, o MEC da Silva, o Nuno Brederode Santos, o António Mega Ferreira, mal aprontam uma crónica em semanário já a dão à estampa em livro, mal saem no hebdomadário logo se vêm em livro, porque diabo não hei-de, daqui a doze anos, ver meus doze anos de semanal Crónica do Planeta Terra (as célebres CPT que me puseram em várias listas Negras do Poder) ver um dia em livro?
12 anos todas as semanas, é suficientemente sado-masoquista para um editor se tentar: 12 x 52 dá 624 prefixas, o que é uma soma aterradora. Mas mesmo assim não foi o Ramon Lull (que descobri aos 57 anos) acusado de escrever mais de quatrocentas obras e empalado por isso? Serei eu menos do que ele? E em matéria de êxtase místico não podem as minhas cartas de amor pedir meças ao «Livro do Amigo e do Amado»? O próprio Camilo, não acabou por publicar os restos da novelística, apontamentos, aforismos, cartas, notas soltas, bilhetes de eléctrico, esse estendal verdadeiramente obsceno de prosa pura genial sem géneros nem cânones?
É certo - reconheço tímido - que diários e cartas só merecem o custo de um livro quando os autores mataram alguém ou mostraram ter outros talentos igualmente canónicos: ou porque lhes saiu uma peça teatral de preferência em 3 actos, ou porque o romance obedecia às sete regras recomendadas pela OMS e obrigatórias, ou pelo manual de estilo do David Mourão Ferreira, ou porque o conto gozava de um desfecho feliz e todos os críticos, sim senhor, disseram muito bem, que aquilo tinha talento.
Mas não poderei eu, depois de morto, conseguir apanhar esses críticos da literatura distraídos e impingir às massas críticas, diários, cartas e reportagens que produzi em abundância?
É claro que há exemplos aterradores. O José Bacelar, por exemplo, autor de uma obra prima - «Razão e Absoluto» - caiu de tal modo no poço do esquecimento que mais ninguém se lembrou de que foi o editorialista seareiro da resistência anti-ditadura. Mas já o Miguel Unamuno, com esse ensaio elegíaco que se chama «El sentimiento trágico de la vida», tão ao gosto elegíaco dos meus ensaios elegíacos, teve outra sorte e dá-me uma certa esperança de vir, ainda que existencialista, a ser tragável no século XXI.
Manuel Laranjeira é o paradigma que eu mais invejo: quando os direitos caíram no domínio público (eufemismo que quer dizer, no domínio dos editores), os editores pareciam Abutres a reeditar-lhe prosas, cartas, diários e até as listas para a lavandaria lhe publicaram. Haja deus, que listas de lavandaria também eu tenho, das melhores e não é pra me gabar. E sou quase tão pessimista como o Laranjeira e tenho uns focinhos quase tão feios como os dele. E graças a deus escrevo quase tão mal como ele.
E essa miserável coitada da Irene Lisboa, minha irmã de infortúnio? Então não é que a Paula Morão acaba por receber o prémio que nunca deram à Irene com o livro que escreveu sobre os livros que apesar de tudo isso Irene ainda publicou com o único prémio da sua consciência?... Tomara eu: esta capa laranja com a 1ª edição das «Crónicas da Serra, esta reedição dos contarelos, este folheto da Seara sobre «educação» que me comove até às lágrimas. Irene Lisboa: se eu fosse o Soares de Passos ou um poeta lírico que sofresse dos intestinos, diria que vou, com flores, depositar as minhas lágrimas na tua campa.
Se eu viesse a ser condenado à morte, mais do que já estou , teria fortes probabilidades de imitar o Caryl Chessman e de ter cá fora, cartonados, quatro livros filmantes com as minhas desastradas confissões , quatro que bem podiam ser dezenas pois material de queixa e protesto não me falta . E eis a Europa América a publicar-me, com a lombada mal colada, «O Rapaz da Lanterna Amarela», a «Cela 545», a «Camorra de Vida», «Os «Quatrocentos Passos para a Guilhotina».
Não conseguiu o Faustino Cavaco, assassino dos nossos jornais, ver-se publicado pelo Rogério Rodrigues? E escreve bem o Faustino. Quase tão bem como eu. Mas que diabo! Nossa senhora! - não poderei eu ter algumas páginas também como as dele, sentidas, a contar como gostava de ficar no regaço morno da Mãe?
Mas quem diz Faustino Cavaco, de quem eu tenho uma inveja louca, diz Thomas Bernhard, mesmo ao meu gosto. Farto de diálogos, por causa do teatro que o obrigaram a escrever, vingou-se e nem um único discurso directo para a amostra em «Betão» e «O Náufrago». Se tudo aquilo tresanda a autobiográfico, porque não havia também a minha interminável autobiografia, devidamente transliterada, passar por boa iludindo os polícias da alfândega literária (críticos e críticos ou vice-versa).
E esse escandaloso caso de popularidade e mundanismo que foi o meu co-irmão Albino Forjaz de Sampaio, cronista que de cronista nunca passou? Mas ele e Brito Camacho e Fialho e Ortigão de cronistas não passaram: vieram, pelos vistos, em época mais propícia: a ditadura do romance era ainda uma democracia musculada e ainda não vigorava como vigoram hoje em dia, tentando competir com as fábricas de romanesco que são as telenovelas, o filme, o serial e o vídeo.
E Salazar? Não se viu ele publicado quase na íntegra em vida? E não lhe foram exumar as cartas íntimas que escreveu à governanta? E não descobriu um historiador Rosas que ele posava no diário para a posteridade como se já adivinhasse que iria ficar célebre e figurar na galeria histórica dos Grandes Figurões? Piscadelas de olho à posteridade, lá isso não falta nos meus manuscritos escritos à máquina, nas minhas dactilografias escritas à mão.
E o malcriado Férdinand Céline, não consegue ele com essa pura autobiografia que é «Morte a Crédito» fingir que escreve romance? Porque não hei-de eu, fingir também? E ver-me publicado em livro que é o meu sonho de impoluto republicano e democrata? Mas reconheça-se que bem me tenho esforçado e em má criação, em linguagem de carroceiro e de caserna, de certeza que sou bem melhor do que o MEC, e posso ombrear se é que não sou mil vezes melhor, que os carroceiros todas da nossa praça literária? E essas crianças antologiadas pela minha querida Maria Rosa Colaço em «Nós, Irmãos»? Não sou eu tal qual elas?
Não roo eu a ponta da caneta e mudo o aparo já com ele rombo? Que terá uma redacção da terceira classe a mais que eu não tenha? Quantas redacções da terceira classe não escrevi eu? Mas quantas centenas não me deixaram escrever?
Falando de manifestos polémicos - meu forte de fraco - irrita-me ver o Theodore Roszak, que só escreve manifestos, a passar por ensaísta, incensado pelos «hippies» e eu, que incensei os hippies, fiquei reduzido ao estúpido anonimato. Mais: cheguei a escrever cartas sobre cartas à nova geração a que chamei cartas para o apocalipse. Pronto, foi quanto bastou, com um título desses, para ir parar ao tacho do mais ignominioso silêncio. E os 5 volumes da «Conta-Corrente» do Dr. Virgílio Ferreira? Onde é que ele é melhor anticomunista do que eu? O meu diário tem dez vezes mais denúncias do Cancro Totalitário, com os nomes todos escarrapachados. Porque conquistou ele a Glória e eu gemo nas masmorras de todas as listas negras? Que raio de azar o meu.
Deste Raul que se chama Brandão há que dizer rapidamente o complexo de amor-ódio que me liga a ele. Memoriou como eu memoriaria, quando recolheu à reforma e não tenho dúvidas que o terei por amparo de cabeceira. Mas chateia-me o estilo barroco (eu que sou barroco) com que falou dos pescadores como um pintor e aí acho que não faz o meu estilo, que fui sempre, como pintor, uma nódoa negra. Acho que a falar de gente boa podia fazer melhor figura do que ele. Sem ofensa. O Gebo, esse Gebo que o assombrou, é que me fica inveja de não fazer igual ou parecido. Até porque tem no meu pai o modelo real desse personagem. Era esse gebo, meu Raul e meu Brandão, a exacta figura do meu velho, eterno calado, eterno sofredor no seu degredo humano que nunca entendeu, eterno preterido das bodas de Canã, eterno ser pedindo eternamente desculpa de existir. Foi essa imagem submissa do meu pai que sempre me revoltou e que Brandão deixou no Gebo, honesto até ao fim, ingénuo até ao fim e quando honesto, em todo o Universo, já era só ele. Esta teimosia na Ombridade em homem anticlerical, republicano, com um ódiozinho muito saudável aos padrecas (ele que tinha a figura do Padre Cruz em cima da secretária). O democrata sem alardes que era meu pai, é o gebo do Raul Brandão. E só por isso. Mas pelas memórias também, e pelo diário - eu acho que gostaria de ver o meu livro ilustrado com esta capa de «Os Pobres», Livrarias Aillaud e Bertrand, de 1925.
Preparo o salto e meço forças com essa obra-prima da simplicidade, os textos de crianças até aos 10 anos escolhidos por Maria Rosa Colaço. À parte as dezenas de versos barrocos que tive a infelicidade de escrever - se não morria de indigestão - não seria eu capaz de restaurar o sublime da simplicidade em 10 ou 20 apontamentos poéticos da minha vida sem poesia? Porque hei-de desesperar? Recriar os dez anos de idade é tarefa ciclópica mas até aos noventa tenho esperança de o conseguir.
«De profundis», escrito por Oscar Wilde com excrementos feitos na prisão e algum sangue, mas no essencial com muitas lágrimas, sobrevive porque Wilde escreveu peças de teatro, contos e um romance? Ou sobreviveria se tivesse sido a obra única - prima - que é? Se o Lorde não o tivesse queimado, escreveria ele o que escreveu e como escreveu? Não é bem o meu caso, até porque aqui não há lordes, mas os sapos vivos que me fizeram comer, laranjas e alfacinhas, no Poço e no Cabo, não serão afinal matéria de testemunho tão interessante que me dê o direito ao meu «De profundis»? revisto e aumentado para as escolas? Excrementos, sangue e (algumas) lágrimas, não faltam nas minhas prosas e se duvidam posso apresentar análise clínica. Lá isso pode a D. Ramira estar certa. Há escritores que me seduziram, mas aos quais eu sei que nunca chegaria, nem sequer aos calcanhares. Falo dos romancistas congénitos que admiro mas que, simultaneamente, e exactamente por isso, invejo de uma inveja incurável. Como eles tinham paciência para escrever romances de 500 páginas! Chiça. E cito logo o D.H. Lawrence, onde soa e ressoa o génio infindável herdado dos deuses. Depois o Nikos Kazantzaki, o Carlo Coccioli: mas no Carlo Coccioli, uma obra não hesitaria em imitar e duvido que mal, não falo do «Fabrízio» mas de o «Journal».
O Panait Istrati, o Lawrence Durrell, o Dostoiewsky, o Tolstoi, o Guimarães Rosa. Graças a deus, deixei muitos escritores de romance longo na prateleira, pois a inflação romanesca da ficção e a inflação da ficção na literatura é o fenómeno entrópico que não cessa de me asfixiar.
Acho também que saberia ter sido o Strindberg de Paço de Arcos, se não fosse já haver aqui vários e se não fosse o talento trágico do animal para as peças (de teatro) geniais. Ah! Que inveja! Como é que um vulgar como eu - ou ainda melhor - consegue estruturar peças tão sublimes? E o Ibsen? E o Herman Hess ? que à primeira vista é fácil de imitar mas que depois desnorteia com essa filigrana de paciência evangélica que é o místico «Colar das Contas de Vidro»? Inatingível, sempre, foi e será Dostoiewsky, arquitecto de uma humanidade disforme em estado real de alucinação como a que eu sinto mexer-me na barriga. Mas a sua «Voz Subterrânea» - além do seu «O Grande Inquisidor» - (desculpa lá, Fiodor) fui eu que os escrevi quando ele estava distraído e que depois plagiei de mim próprio, em 2ª via, através de Chestov, nesse livro que me saiu do peito ou da barriga (desculpa, leão) que é «Revelações da Morte», indecentemente babujado na edição da Moraes pelo Jorge de Sena. Eu renego tudo o que for preciso. Mas das «Revelações da Morte» não abro mão: Chestov copiou-me indecentemente. Se ele conseguiu chegar à Europa escrevendo em uma língua bárbara como é a eslava, porque não hei-de eu chegar à Europa escrevendo na língua bárbara mas tão folclórica que é o português acordado no Acordo com o homem dos computadores brasileiro.
A propósito de plágios: passava eu as minhas noites e os meus dias com o Ramon Lull, quando a Luísa Costa Gomes, sorrateira, senhora de uma bolsa marsupial do falecido Instituto do Livro, o foi visitar em Maiorca. Nunca mais tive sossego. Uma das minhas únicas chances de vir a ser conhecido - como descobridor do Ramón - perdia-a no momento em que a Luísa se me antecipou. De qualquer modo, já o disse neste testamento mas volto a dizer: «O Livro do Amigo e do Amado» fui eu que o escrevi a mando da mulher e é muito meu e não há luísas, nem costas, nem gomes que mo roubem.
E muito menos um Abel Barros Queirós Baptista que acorda sempre mal disposto e escreve no «Público».Eu não escrevo no «Público» mas também não acordo mal disposto. Publicista na gíria do Prof Coelho seria o Roger Garaudy. A verdade é que filosofar assim à vista de toda a gente, sem ter que ir fazer exame ao Prof Coelho, também eu fazia. E não me parece que defendeu pior o Teilhard de Chardin do que eu o defenderia.
«Diário de um Ladrão», eu? Não sei porquê, embora imaginar-me nessa pele me seja um pouco difícil, mas o que custa é que deus agradece e talvez, quem sabe, arranjasse editor. Fiz por isso o Diário de um proscrito, bastante mal escrito graças a Deus, o que não é menos obsceno e meritório, no sentido em que Henry Miller, copiando-me, o desenvolveu. Aliás, se há sofrimentos cuja beleza não me importava de imitar, o de Jean Genet é um deles. Daria cabo do Sartre era se ele me tivesse chamado «comediante e mártir». Comediante seria a tia dele . Nem mártir nem comediante, teria respondido ele ao Sartre. E ficou-se por aí.
Se Willhem Reich conseguiu fazer esquecer a estopada das obras científicas e o Órgone com esse «Escuta Zé Ninguém», porque não hei-de eu, Zé Ninguém que não escuta ninguém, que escrevi vários zé ninguéns, que inflaccionei o mercado de zés ninguéns, e ainda por cima não escrevi maçadoras obras filosóficas ou científicas, ter um lugarzinho no podium estrelado da posteridade? No mínimo exijo que tratem da minha obra com o respeito que merece um Zé Ninguém. Por exemplo:«O Barredo», escrito pelo meu irmão de armas e de berço Padre Américo. E os restantes capítulos de «O Barredo», todos igualmente fanáticos de deus, se quiserem saber a diferença: só nunca consegui imitar desse gajo a frase curta que invejei sempre tanto como invejo a de Marguerita Duras. Só que o Américo fala de gente minha, de gente miúda, dos trocos, os pobres meus avatares, reincarnações futuras de budas passados, do meu espírito Santo, dos Meus Pobres. O que é uma chatice, convenho. Nem sei onde é. Ao lado do Américo, as fioretti de Francisco, aguardam o momento em que eu as possa roubar sem que o Prof Coelho dê por isso, para isso ele é fiscal de costumes.
Como te amei sempre! Só por medo e vergonha não pedi para entrar na tua Ordem mas quando o Padre Armindo Pereira me convidou para escrever sobre ti no livro in memorian sobre Francisco, foi um dos dias mais gloriosos da minha vida gloriosa. Desculpa, denunciei-te e denunciei o teu truque. Mas deixa lá: pouca gente ou ninguém leu esse livro editado pela Imprensa Nacional quando o Vasco da Graça Moura estava a dormir a sesta ou distraído a escrever a peregrinação do fernão mendes pinto . Ou a preparar-se para a expo98. E sendo assim, eu serei lembrado, pelo menos, por ter escrito sobre a tua alma de Luz, querido, amado Francisco, natural de Assis. Com o Walt, Whitman de apelido, a coisa muda um tanto de figura. Toda a vida a imitá-lo, em vão, e só consegui uma rude «paráfrase de Walt Whitman». Mas se tu vingaste o grande umbral e ainda és lido, com esse cadáver esquisito que são as fioretti, descendente dos surrealistas ortodoxos, porque não hei-de eu, aderente ao pânico do Arrabal e metido no país português, ter ao menos uma chance?
Quanto ao Gauguin temos falado: pedra angular da «antologia da ambiguidade» que nunca me convidaram para fazer, o texto «Noa Noa» deu-me cabo de mais esse projecto. É todo ele antológico e Ambíguo. Aníbal Fernandes traduziu. O Aníbal aliás é, no meu entender, a voz dos deuses e tenho por ele a ternura que se tem pelo contra regra que comanda todo o espectáculo sem nunca ninguém o ver, que se tem por mim próprio e a que se tem pelos eternos apagados atrás dos holofotes dos eternos iluminados.
Eu estive mais vezes em mais listas negras do que ele. Mas também é verdade que nunca traduzi com a genialidade com que ele traduziu. Gauguin seria ultrapassado em velocidade, não em beleza, pelo terremoto pós sida que é Tobias Schneebaum (Antígona editora), o nome mais esquisito de escrever.

A.C. ***

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