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Saturday, June 17, 2006

V. DE GOUVEIA 1959

1-7 -segunda-feira, 14 de Outubro de 2002-prontíssimo para edição on line sem medo- na fase literária – escritos da juventude – não esquecendo associar ao meu ensaio sobre o livro sobre fernando pessoa - 19.937 caracteres Revisão: Domingo, 23 de Agosto de 1998

sábado, 17 de Junho de 2006-> inédito ou não, o que eu já sabia (e já esqueci) nos meus verdes 26 anos!

1959

ARTE E PATOLOGIA

[ensaio apócrifo de Eduardo Lourenço, no tempo - 1959 - em que ele, heterodoxamente falando, ainda escrevia coisas que se percebiam...]
# Sobre alguns cadáveres (esquisitos) locais
# Ensaios sobre o Obsceno
# A minha experiência surrealista
# Inéditos eternos censurados pelo estalinismo
# Memórias do Gulag literário
# Manifesto literário pela PERSPECTIVA DE ESCALA (essência da Modernidade)
# [Intuições de 1959 - há 33 anos! - premonitórias do ADN-Guillé: não hei-de eu sentir-me inchado e orgulhoso!!!]

+ 4 PONTOS

Porto, 18/7/1959 - O facto de se discutirem as relações entre «arte e patologia» prova de que algum motivo existe para considerar o problema, a importância do problema. O presente artigo, não querendo assumir uma posição polémica sobre o opúsculo do Dr. Viriato de Gouveia - «Arte e Patologia», separata dos «Anais do Clube Militar Naval» - é apenas uma análise tanto quanto possível crítica pressupondo a simpática aceitação preliminar do trabalho analisado. Entre os libelos contra a «arte moderna» (o que se vai generalizando sob o designativo de «arte moderna») o Dr. Viriato de Gouveia apresenta uma tese que reputamos digna de atenção e controvérsia.
«Se a bizarria de atitudes que cada um de nós livremente pode assumir, conferisse valor proporcional ao indivíduo, a maioria da humanidade seria constituída por pessoas de talento» - escreve Viriato de Gouveia. Mas - digo eu - o inverso também é verdadeiro: se o atributo de «besta sadia que procria» (no verso feliz de Fernando Pessoa) conferisse a alguém a qualidade de artista, a maioria da humanidade seria composta de artistas. Advém disto uma conclusão: a doença, só por si, não é parâmetro que explique o talento criador; mas a saúde também não. Quer isto dizer que o critério patológico não se mostra suficiente para legitimar ou ilegitimar uma obra de arte. Aquilo que, superficialmente, se possa tomar como relação de causa e efeito (a doença ou saúde como causa de obra de génio) não passa de coincidência ou concomitância,
Não seria já a primeira vez que, no domínio da verificação experimental, se toma a nuvem por Juno, se considera como efeito de uma causa o que não passa de coincidência entre o que se supõe causa e o que se supõe efeito.
Ninguém contesta que a obra de arte anda de facto ligada a uma assimetria psíquica, a uma anormalidade psicosomática, que, sem fazer do artista, por definição, um psicopata ou um neurótico, o coloca fora da linha normal de comportamento, se é que alguma vez está definido o que é e o que não é normal. Se a nossa noção de «saudável» coincidir com a noção de «normal» e médio», e se a noção de «doente» coincidir com a de «bizarro» e «excêntrico (como em regra acontece entre pessoas de formação universitária - cartesiana, kantista ou positivista ) consideramos sintomas mórbidos os sintomas de anormalidade e até de excepcionalidade características do artista, naturalmente desfasado em relação ao homem-padrão, homem comum, médio, normal ou saudável. Todavia, a doença, ainda quando abusivamente se considera sinónima de anormalidade, não pode considerar-se causa: unicamente um factor concomitante.
Eis a conclusão que interessa, por agora, reter:
Ainda os que mais duramente combatem o «subjectivismo», não deixam de reconhecer a individualidade (aquilo que normalmente se entende por individualidade criadora) como um dos factores inerentes ao artista. Se o «estilo é o homem», com muito mais forte razão se dirá que o «estilo é o poeta». Ora esse «estilo», essa «individualidade», essa personalidade, como se obtém? Como se distingue um poeta dos restantes mortais? E um poeta de outro poeta? Sendo a «individualidade criadora» a suprema razão de um poeta, como iremos negar-lhe o direito á individualidade? Nenhum indivíduo, ainda o mais desclassificado, se dispensa, na ordem moral, de ter carácter e, na ordem profissional, personalidade. Como poderá o poeta, onde ética e estética se confundem, dispensar esse carácter que é também personalidade? Fisicamente, não há dois indivíduos iguais, e para isso é que o bilhete de identidade regista as impressões digitais. Como poderemos aceitar que os haja iguais psicologicamente? E como poderemos aceitar que os haja entre aqueles indivíduos que, por natureza, por condição, por fatalidade, fundamentam a sua existência no «culto da individualidade criadora» - os criadores, os poetas, precisamente?
Eis, pois, outra conclusão que o Dr. Viriato de Gouveia certamente me não impedirá de tirar: o poeta é, essencialmente, a sua individualidade criadora. Aquilo que noutras vocações poderá representar uma deficiência mais ou menos grave - a individualidade - é, na vocação artística, o princípio, o meio e o fim, é tudo.
Dir-se-á: mas a individualidade manifesta-se na «forma». O poeta diferencia-se de outro pela forma como subjectiva uma realidade objectiva. Quantos pintores não têm pintado girassóis e quantas formas não têm sido dadas à mesma realidade girassol? A matéria objectiva «girassol», tratada pela individualidade, pela subjectividade criadora de Van Gogh tomou aquela forma única. Mas por aqui entramos num dos intermináveis debates da estética moderna, a chamada «questão do fundo e da forma», sobre que nada se pode concluir. Tentemos, por isso, ver o problema do ângulo em que o Dr. Viriato de Gouveia o coloca - o da «arte e patologia» - e talvez nos seja possível adregar algum contributo.
Segundo o Dr. Viriato de Gouveia, «nem Baudelaire, nem Verlaine, nem Gérard de Nérval, construíram durante o período do seu internamento qualquer obra-prima.» Embora a afirmação necessite de ser comprovada e embora pudesse ter acontecido que nenhum deles criasse uma obra-prima durante o internamento porque nem todos os dias se criam obras-primas - e aceitando no entanto a afirmação, aceitemos que sim, que esses poetas nada produziram nos períodos de internamento em manicómios. Mas o que o Dr. Viriato de Gouveia não deixa de verificar é que eles estiveram internados. E que dezenas de outros exemplos - o de Van Gogh, o de António Nobre, o de Edgar Poe, o de Verlaine, o de Proust (e tantos que não cita mas poderia citar) nos poderiam informar afinal de que existe entre a doença física ou mental e a criação, um estranho, extraordinário paralelismo, diríamos mesmo sincronia, diríamos até condicionalismo, embora não digamos causalismo.
Aceito a opinião, discutível, de que no próprio período da doença, os poetas nada produzissem, mas não há dúvida de que um poeta, fora dos instantes de criação, é quase sempre um doente.
De positivo e indiscutível, o que deveremos concluir desta coincidência? É que a doença, entre outras causas do sofrimento físico ou espiritual, marca as individualidades ou vocações já predispostas, com experiências que, pelo menos, as vão sensibilizar e tornar, digamos, mais vibráteis, mais impressionáveis, mais particularmente assinaláveis pela «realidade objectiva». É claro que a doença não dota ninguém de habilidade artística e não se descobre a pólvora ao afirmá-lo: tão peregrino nos parece que haja alguém a defender uma tal ideia, como a combatê-la. Mas (não há dúvida) desperta, aviva, afina e provoca capacidades, tendências, instintos, faculdades inatas mas adormecidas, estados sensíveis. E muitos, visíveis, verificáveis, são os motivos pelos quais isso acontece. Vejamos quais.
A violenta introspecção que um estado mórbido provoca, o mundo particular (o «seu» mundo) que o doente, por uma instintiva defesa, forma contra o mundo dos outros e o mundo das realidades naturais, a insociabilização imposta ao doente, particularmente por doenças contagiosas que o obriguem a afastar-se do convívio habitual e, finalmente, a obsessiva deformação do mundo objectivo, absolutamente compreensível em quem sente, com mais agudeza, os traumas da dor física («objectiva») sobre uma subjectividade indefesa mas reactiva.
Concluindo: a doença não cria poetas, mas não custa aceitar que os descubra ou provoque. Como corolário da conclusão e como contributo «à questão da forma e do conteúdo», parece-me claro que a individualidade não é mera questão formalista (em sentido descarnado e abstracto da palavra «formal») visto que a forma especial por que o poeta vê e subjectiva a realidade, já é o somatório de experiências tão objectivas, tão profundamente enraizadas no comportamento individual, tão estreitamente relacionadas com o temperamento e o sangue, os músculos e os nervos, como são todas as experiências do sofrimento, em especial o advindo da doença. Sim, o sofrimento não cria poetas. E não somos a defender que o poeta sofra. Creio mesmo que a sociedade deveria preparar ao poeta a estabilidade social indispensável para o acto de criação: mas antes e depois do instante em que o poeta cria, todas as experiências, ainda as mais atrozes, deviam ser-lhe permitidas. Não acredito que um poeta possa escrever com fome, na maior abjecção moral e material, deprimido e oprimido, ferido, maltratado e miserável; a fome real, experimentada, vivida, deu-nos obras como a de Knut Hamsun e a do nosso Leão Penedo no romance «A Raiz e o Vento». Mas tanto Hamsun como Penedo, não os poderiam escrever certamente com fome.
II
Particularmente no que se refere à chamada «arte moderna», o problema das relações entre «arte e patologia» só adquire maior acuidade porque o problema correlato da «individualidade» também redobrou de virulência. Não creio que na «arte moderna» - «os absurdos frutos de um pensamento enfermo ou transviado» que são, na opinião do Dr. Viriato de Gouveia, o fauvismo, o dadaísmo, o cubismo, o futurismo e o surrealismo - haja, mais do que na arte clássica, um culto monomaníaco pelas manifestações patológicas. O que houve, sim, foi o deslumbramento da descoberta; o mundo subconsciente e inconsciente, os pélagos do irracional, as regiões inlocalizáveis e inverificáveis do subterrâneo humano. A psicanálise que, de terapêutica clínica, quase se transformou em método lógico, psicológico e epistemológico, declarou, no entanto, à moralidade vigente nas tribos ocidentais, aos hábitos familiares e íntimos, aos tabus religiosos e sexuais, às convenções, aos conceitos e preconceitos burgueses, aristocráticos, hierárquicos, tradicionais, uma guerra santa. Hoje, nenhum cientista, nenhuma mentalidade adulta nega a importância de Freud e da sua revolução, até mesmo dentro dos limites acanhados da ortodoxia de Viena, sem irmos às escolas dissidentes. Ora pela «psicanálise tudo se explica». Até ela, só a zona racional da consciência existia, só ao homem social e diurno era dado o direito de cidade. Depois de Freud, até um escolar sabe que o motor principal da vida consciente, da vida biológica e anímica, é a vida subconsciente. Não digo que a razão sossobrasse, porque foi a razão que, desta vez, deu a mão à palmatória, indo além de si própria, reconhecendo contra Descartes, para lá do mundo das ideias claras, o oceano incomensurável da não-claridade não cartesiana. Um espírito imparcial, só pode reconhecer nisto, mesmo em termos de progresso ocidental-racional-cristão, um avanço, um bem. Restituía-se ao homem uma dimensão obliterada, ignorada, esquecida, perdida. Regredindo-se na aparência ao tempo das teogonias, das idades mitológicas e pré-lógicas da humanidade, provava-se que as mitogonias representaram no processo da evolução humana, não um elo subalterno mas interno e eterno, estrutural e dinâmico. A razão construíra o Parténon e o Ciclotrão gigante. Mas fora da razão o homem criara os bizontes de Altamira ou descobrira o «universo infantil». Em pleno século da exploração interplanetária, dos voos astrais e siderais, a criança, ao pé de nós, estava por descobrir e foi descoberta. (Montessori?)
Foram todos estes abismos e encontros, no tempo e no espaço, todas estas súbitas associações, afinidades, origens, que deram à modernidade o aspecto de deslumbramento, de «fascinação» (Ernesto Sampaio fala de «Cultura fascinante»). O mundo da criança, o mundo dos primitivos, o mundo dos infinitamente grandes, o mundo dos infinitamente pequenos, o mundo da consciência, o mundo da subconsciência, o mundo planetário, o mundo interplanetário, o mundo da razão, o mundo do instinto, o mundo social, o mundo individual - todos aparecem com o mesmo direito de ter voz e de se exprimirem, todos eles formam o que se pode chamar o «sistema planetário do homem moderno». O homem viu-se, simultaneamente, no centro de contradições simultaneamente vitais e mortais, viu-se um absurdo vivo, matou Cristo e Anti-Cristo, matou deuses e Deus, viu-se com as inesperadas proporções e dimensões do Símio e do demiurgo: de um lado a biogenética assegura-lhe a sua origem de antropopiteco; do outro, Einstein recompõe, reconstitui o universo à maneira de Jeová. O homem moderno viu que todas as possibilidades se cruzavam no seu coração, na sua inteligência, na sua vontade. Contemporâneo dos aviões a jacto e da cirurgia plástica, das centrais atómicas «para a paz» e dos horrores de Hiroxima, contemporâneo de Hitler e de Gandhi, de Estaline, Mussolin e de Montessori, da revolução proletária e de Rockfeller, o homem compreendeu o que significava ser moderno. O culto do absurdo que pode existir na modernidade, não é um grito de abjecção, não é um libelo contra o homem. É talvez, no tempo das últimas abjecções, no tempo de Anne Franck e de Bergen-Belsen, de Estaline, de Budapeste, das tiranias e dos Reflexos Condicionados - um grito sadio de liberdade. Antes de perguntarmos se compreendemos um quadro ou um poema «modernista», devemos perguntar se compreendemos a história moderna. E talvez no seu crucial, inenarrável absurdo, encontremos «explicação» para o absurdo da «arte moderna».
Patológica? Resultado de uma demência particular do poeta ou da demência colectiva da História contemporânea? Devemos nós culpar o artista, espelho límpido, testemunha fiel, repórter íntegro da demência e dos seus fautores? Pode culpar-se de tudo o «artista moderno»; menos de que construiu este mundo e esta abjecção. O poeta não forma nem reforma o mundo: acusa-o. Não o explica - replica contra ele. Não o defende - defende-se dele e protesta. Não constrói a história, cria a anti-história.
Será mórbida a forma de o poeta hoje se expressar? Mas retiraremos nós aos mórbidos o direito de se expressaram? Será patológico? Mas retiraremos nós aos doentes o direito à existência? E aos incuráveis, cuspimo-los da sociedade? Porque se considera então o poeta, «doente incurável», com menos direito à existência e ao asilo nesta sociedade asilar onde ele deve sentir-se, necessariamente, um asilado e um exilado? Exigir um arte sadia, proporcional, serena, de duas uma:
1º - ou é exigir que o poeta actue como um mentiroso (numa sociedade que não é sadia, nem proporcional, nem serena)
2º - ou exigir ao poeta que se evada da sociedade, que a não represente e - mais - que, como um deus, crie e exprima ele o que não pode exigir-se a nenhum mortal: que seja permanentemente sádio, proporcional e sereno.
Pergunto: à conta de «combater a arte moderna», não estaremos colaborando, como o avestruz, na pior forma de hipocrisia que é predicarmos a instauração de uma moralidade de deuses (só praticável por deuses) que nós, predicadores, homens iguais aos outros, começamos e acabamos por não cumprir?
Que um poeta é, na verdade, um ser anti-social, não o contesto. Anti-social enquanto poeta, evidentemente, sem necessitar, nas ruas de toda a gente, de andar aos tiros contra toda a gente. A sua missão - creio - é a de manter e perpetuar a liberdade humana individual. Há no poeta uma dualidade inconciliável: o homem social e sociável que é, que quer e tem de ser e o homem a-social ou insociável que a responsabilidade de homem livre, de individualidade criadora lhe exige. O artista que verdadeiramente viva este drama, não tem com certeza tempo para mistificar o próximo. E só isso importa: a lúcida, desperta, activa consciência que representa o poeta para quem a poesia não é vaidade, nem adorno, nem brinquedo: é uma questão de vida ou de morte.
III
Outro sobreaviso para quem queira de facto manter uma atitude inteligente perante a «arte moderna»: um poeta não pode avaliar-se e pesar-se por obras isoladas, o que quase sempre acontece e nas censuras violentas sobre os «modernismos». O crítico de poesia sabe que só um cotejo constante entre muitas criações do mesmo artista e entre criações de vários, pode:
1º - habilitá-lo a distinguir a mistificação da verdade
2º - habilitá-lo a descobrir a chave que explique a individualidade de cada poeta
A poesia é, principalmente, um processo de totalização e de síntese e o poeta uma totalidade onde todas as partes entram em funcionamento recíproco, deixando, se as separamos, de funcionar.
Isto, se é básico, se é fundamental, na arte clássica de qualquer tempo, mais ainda o é na arte moderna, na arte de hoje, onde cada artista, só por si, é um estilo e uma técnica - uma individualidade. Desligar um quadro do processo que o origina, condiciona e explica, não conduz a resultados nenhuns. Referindo-se a arte figurativa, em regra, a cânones, a estatutos prévios de beleza, a uma lei externa e fixa, natural é que o movimento do observador se desse do quadro para os referidos cânones, para a referida lei. Referindo-se a arte moderna, essencialmente, à lei interna do poeta, a uma extrema e última e íntima subjectividade, natural é que o movimento compreensivo se faça do quadro para o núcleo criador do poeta. No primeiro caso, trata-se até certo ponto de compreender «logicamente», pelo menos canonicamente: no segundo não se pode exigir compreensão lógica ou canónica da obra, mas sim de compreender, na totalidade, o poeta. Quando não o compreendemos, é a novas produções do poeta que devemos pedir «explicação». E não, e nunca, a nada ou a ninguém fora dele.
IV
De «lesões ou excitações que ao incidirem a (sic) certas zonas do cérebro poderão provocar ricos estados alucinatórios, revivescências de linguagem arcaica e preciosa, filmes de extraordinário colorido e beleza» - é o próprio Dr. Viriato de Gouveia que nos fala. Mas se reconhece o contributo excepcional de «beleza» que os estados anormais, alucinatórios e tóxicos podem dar ao poeta na criação do seu peculiar universo de «visões», arrojos e truculências, porque se negará ao poeta moderno o direito de usar com risco até da própria saúde e da própria vida, experiências patológicas provocadas ou espontâneas, de ordem médica ou onírica? Alguém, ainda o mais renitente, contestará que os sonhos são, só por si, infinitamente mais belos do que o prosaico mundo da vigília? Não aceita o positivista a ilogicidade da lógica onírica? Porque nega ao poeta o direito de explorar um domínio que ele próprio reconhece mais belo? Sendo o método onírico um dos que os surrealistas aplicam, limitando-se a usar um recurso tão velho como a humanidade, de quê e porquê os acusaremos? Desde sempre que os sonhos alimentam a imaginação humana. Como podia o poeta, criador do imaginário, repudiar esse caminho? Não se diga que foi a psicanálise que deu voga aos sonhos. A psicanálise, quando muito, inverteu o conceito de que o sonho, o mito, o inconsciente sejam «funções inferiores» da psique humana. Pois porquê inferiores? Não completam e explicam o homem? Se não queremos o primado do instinto, também não queremos o da razão - proclamou o psicanalista. Se não queremos o primado do imaginário, também não queremos o primado da razão - disseram por sua vez os surrealistas. Queremos, sim, a harmonia do homem, a sua integração cósmica, que é talvez a sua desintegração física, social e...nuclear. E nisto, neste princípio, se encontram todas as correntes da «arte modernista». A arte, explorando os recantos abandonados pela ciência, não vinha subverter a ordem social nem negar a ciência. Mas vinha apenas reclamar um lugarzinho para si, na preocupação (talvez demasiado ambiciosa) de restituir o homem a si próprio.
Porto, 17/18 de Julho de 1959
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