JOSÉ RÉGIO 1955
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(*) Este inédito de Afonso Cautela poderá ter sido publicado muito parcialmente, ou no «57» ou na revista «Ocidente»: o manuscrito tinha uma nota à margem, dirigida a António Quadros, director do jornal «57»: se servir, devolva para rever e refundir.» Acho que não foi refundido nem devolvido nem publicado
Ferreira do Alentejo, 15 de Agosto de 1955
Se tivéssemos de escolher uma personagem que polarizasse a significação tragicómica da peça, iríamos direitinhos à Rainha-Mãe, louca, que diz por mais de uma vez: «Bem sabes que tanto choro como rio».
E quando o Profeta deslinda, na cara de todos, a comédia dos ministros do Rei, ele, que também consideravam louco, recebe os aplausos da Rainha-Mãe: «Gosto do que ele diz! Gosto do que ele diz! Percebo pouco, mas gosto!».
Percebia a significação sibilina das suas acusações e das suas profecias. Os loucos entendem-se uns aos outros, assim como a linguagem da Cítara (arquétipo nítido da poesia) é a única que «sabe dizer» as coisas que doutro modo se não dizem.
Tem esta peça evidentes pontos de contacto com O Príncipe com Orelhas de Burro(1942) ; a cítara, ou antes, a CÍTARA, substitui aqui a viola do cego. E a Aia, que chegamos a supor muda, é bem o equivalente do violinista cego.
Fomos ao rol dos personagens no princípio do livro, na suposição de lá encontrarmos a Cítara incluída; de facto, é ela uma das personagens mais significativas, a única que «diz coisas». A fala dos outros, é um indistinto coaxar, que se não divisa nem entende.
A Rainha-Mãe pede ao Profeta: «Fala! Tu sabes dizer, és como a Célia....». E a Célia é muda. A verbosidade da Rainha louca propicia a apreensão do mistério, através de palavras que os ministros sensatos e, por extensão, os leitores e espectadores sensatos, apenas toleram e de que desdenham. Por isso, a sua incontrolada maneira de se expressar atinge uma patética altura de que fica aquém a serenidade do profeta.
Essa altura só nos poderá ser dada na representação, quando todos os elementos cénicos nos ajudarem a reconstituir a figura total da Rainha, símbolo dramático, ou melhor, tragicómico sobre que toda a peça se apoia. De facto, é ela a única nota de teatralidade , com suas intervenções bruscas e inesperadas.
O Rei representa o mesmo papel de mediador entre o céu e a terra que já n’O Príncipe com Orelhas de Burro assumira.
Di-lo o Chefe do Partido Aristocrático:«Há muito que Vossa Alteza sonhava com tais loucuras.» A acusação, despedida para ofender e ferir fundo o Rei, certamente o não turbaria , bem como à Rainha-Mãe se lhe não importava a loucura: « Eu bem sei que sou maluca, bem sei ; mas sinto-me bem assim...»
Aquilo que os homens «demasiado inteligentes» supõem ser uma acusação, constitui afinal uma glória ou, no menos, uma resignação.«Todos os mortos chamam doidos aos que ressuscitam», diz o profeta com ponderação e profundidade.
Mas, por outro lado, é certeira a afirmação do mesmo ministro, quando afirma:
«Está por demais provado que vos faltam as primaciais qualidades dum verdadeiro chefe.»
Sim, será isso verdade, na medida em que for verdade, também, a glória de ser louco como os outros: o Profeta, a Rainha, a Cítara...
*
Aqui se resolverá o desfecho das teses que José Régio vinha opondo desde o início: terminará ele com um discurso (afinal um discurso, afinal a letra com que será preciso, no último instante, condescender , apesar do Quinto Evangelho ser um livro em branco) ou com a abdicação?
É o que iremos ver e o que nos habilitará à interpretação do pensamento que anima e inspira toda a obra de Régio, um pensamento de seriedade e resgate do homem pelo espírito.
Se é por um discurso, por a letra, apesar de tudo, por uma doutrina, que Régio se decide , há que conhecê-la, pois ela se desvia da dos ministros, de cada uma em particular e se filia talvez em todas elas numa síntese difícil de conceber pelos que por serem «demasiado inteligentes, não entendem nada de nada.» (fala do Profeta, pg. 272) a síntese talvez que todo o livro pretende e que, por milagre da arte, realiza.
Não sou eu quem o diz, é José Régio, pela boca de Jerónimo: «Também eu há muito desconfio das palavras, das doutrinas, das posições, da propaganda... estou farto de bíblias. E, ao mesmo tempo, compreendo que se não pode passar sem elças. Sou um atormentado, talvez um indivíduo supérfluo...».
Supérfluo é que ele não é; como personagem da peça, há que olhá-lo mesmo com uma certa atenção, pois a sua aparição não só muda o curso dos acontecimentos como os explica subsequentemente em muitos aspectos.
*
Repare-se na identidade que logo se estabelece (não estamos nós a procurar explicar a obra dramática de Régio à base do seu impenitente lirismo, do seu impenitente pessoalismo?) entre Jerónimo e o Rei, identidade de destinos. A «grande cena muda» de que Régio acentuara a importância na respectiva rubrica, tem, de facto essa importância: «estes gestos, dum e doutro, devem ser perfeitamente simultâneos, sem o que será anulado todo o intuito da cena.»
É de facto assim; a mão que se levanta para o assassínio é a mesma que se levanta para o suicídio. O autor teve necessidade de desdobrar aí o Rei num seu duplo, quer ao mesmo tempo significasse uma espécie de destino que lhe impediu o suicídio real, embora subsistisse o seu valor virtual e simbólico, que se requeria para prosseguimento da dialéctica dramática, e também aquele amparo e companhia, aquele nosso «outro» que em momento graves invocamos , por nossa irremediável solidão.
«Nunca até hoje encontrei quem pudesse fazer meu confidente», eis o lamento dolorido do Rei. Mas encontra-o finalmente e encontra-o em circunstâncias muito especiais, primeiro porque lhe fez a revelação súbita de como é possível o impossível (a tal síntese, morte-vida, prazer-luto, todos os termos que dialecticamente andam desavindos, mas que no momento supremo da criação, da ressurreição do homem, no absurdo, no contraditório suicídio, encontram sua primeira e última razão de ser); depois, porque tem o primeiro confidente (fictício ou, por isso mesmo, o mais , o único verdadeiro, visto que não passa da sua própria face iluminada) para encetar uma jornada de confiança no futuro, motivo de coragem, contra o que um dos ministros já lhe dissera: «O erro de Vossa Alteza não é bem duvidar dos outros, ou das suas doutrinas; mas duvidar de si próprio.»
E confiar em Jerónimo, o que será senão o primeiro gesto de confiança , o primeiro mas decisivo e definidor de toda a sua conduta futura do Rei em si próprio?
Não se esqueça também de que Jerónimo trazia intenções de se suicidar, após ter cumprido o compromisso de regicídio, o que mais uma vez equipara ou equivale os dois destinos.
É Jerónimo que diz:«Talvez a minha história íntima não ande muito longe da tua.» (pg 92) . Essa identidade ou equivalência acentua-se nos outros actos, até ao último na passagem aqui citada da página 290 e duma outra fala de Jerónimo: «Mas o seu espírito destroói aquilo mesmo que vai criando.» Isto significa a preocupação de Régio ainda pela boca de Jerónimo: «O meu espírito é corrosivo. Ou será todo o Espírito que o é?»
Esta advertência nos informa do pirronismo que subjaz, em todos os espíritos verdadeiros, ao lado da crença mais firma. Eis a legenda de toda a peça, a perplexidade-núcleo de todo o drama, a fonte gerescente de toda a aventura do espírito: esperança-desespero.
*
Régio teria conseguido a síntese dos contrários? Guardo para mim o que penso, nisto, e deixo à opinião livre de cada um, conjecturar o que sobre o tema capital da peça de José Régio e do nosso tempo se lhe afigurar mais justo. Certo é que já ninguém pode desmentir a actualidade e essencialidade de «A Salvação do Mundo», documento-síntese que bem merecia a sorte de levar ao mundo a sua verdade. Merecia-o Régio e merecia-o a humanidade, que espera, espera sempre...
Parece-nos que Régio pôs o problema da salvação do mundo no seu verdadeiro pé. Não é mentalidade para aceitar qualquer solução simplista e por isso propõe ao mundo que se salve, não mediante as receitas dos vários chefes de partidos, mas mediante o livro em branco que «só pode ser cheio em Espírito e Verdade.»
Se não estamos a trair o pensamento do autor, essa verdade é principalmente a verdade psicológica , íntima, de consciência – a sinceridade – (pg. 19) - e esse espírito é principalmente a poesia, a arte, a religião mística.
Bem sei que estou a estragar com palavras o espírito do autor mas permita-se-me este trânsito, perdoável só porque aqui me declaro recolhido e íntimo leitor do mais ( e que é tudo) que José Régio deixa pressentir mas que não pode reduzir-se a fórmulas.
Também terei de aceitar a sua acusação : «Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas.» Aceito-a e aqui deixo o meu acto de contrição, pela letra desta minha arenga.
*
Retorna-se à pergunta: mas o que é, para Régio e para nós, Espírito e que é verdade? . Ouçamos o que nos dizem os seus personagens.
O Profeta, a Rainha e a Cítara (esta, a última a ter a palavra na tragédia, como a melhor depositária do Espírito Puro, sem letras que o constranjam) tomam a palavra mas...nada dizem, e por isso dizem tudo.
Vejamos agora o medianeiro entre os dois impossíveis (a Letra e o Espírito puros, aquele representada pela tacanhez dos ministros e de todos eles o mais tacanho – o Extremista), vejamos agora Pedro da Traslândia, o Rei.
Opta pelo discurso , pela letra, não abdica (o silêncio seria o espírito puro) mas que diz ele?
Antes de mais congratula-se com o seu povo, com os seus «amigos», clamando: «Já vários dos que me cercam desesperam de mim. Vós ainda não. E é isso que me dá nova coragem. Obrigado! Amigos... »
Eis o fundamento da sua ressurreição, pois foi ele um «homem que morreu e ressuscitou, e já não desiste!». É a confiança nos outros, aquele esperança que enquanto houver vida não morre (enquanto há vida, há esperança, diz o povo mas nem sempre os filósofos o imitam) e dá razão de ser à nossa esperança de medianeiros .
(Aqui nos parece residir o fundamento social da obra de Régio, o «egotista» , o «narcisómano», como os críticos incompreensivelmente o têm classificado. Egotista o poeta de A Chaga do Lado? É preciso que os senhores críticos aprendam a ler com atenção o que lêem).
Mas não esqueçamos que, para viver, é preciso morrer primeiro, só quem morre pode ressuscitar «homem novo». A única justificação de Pedro (porque agora era Pedro e não já o Rei) que se impunha diante do povo era o testemunho de humanidade (da fraqueza, da desistência e do subsequente recomeço «cheio de boa fé e boa vontade.» , sem mais ciência nem sabedoria.
O Rei conclui: «(...) Receio já estar usando palavras a mais, porque isto não é um discurso político...».
O rei coloca-se assim entre o Espírito (o Profeta, a Rainha e a Cítara, que nada dizem) e a Letra (a verborreia dos ministros), na plataforma humana e, assim, sinceramente se confessa. (lembre-se o papel que a sinceridade desempenha na obra romanesca, crítica e poética de Régio, explicitada n’O Príncipe com Orelhas de Burro e neste livro à pg. 79).
É esse acto de sinceridade o que o Rei encontra mais necessário para inaugurar o seu novo reinado, apesar de um dos ministros ter opinado do primeiro discurso do Rei (« O mais sincero que fiz até hoje», diz ele, pg 18): «Ninguém entendeu a comunicação de Vossa Alteza, que era demasiado pessoal.»
*
Talvez por demasiado pessoal (e na terminologia que temos vindo a usar , diríamos por demasiado espiritual) também a obra testemunhal (novelística e teatro) de Régio tenha sido várias vezes mal interpretada, o que não é novidade para ele.
Mas pode perguntar tal como o Primeiro Ministro: «Que pretendi eu sempre ensinar-vos senão o amor da verdade?».
Tememos circunscrever nalguma definição demasiado estreita ou demasiado ambígua a intenção do autor, mas não resistimos à tentação de invocar aqui o que nos parece ter grandes afinidades com o pensamento agente do autor; sim, porque a verdade é que Régio não é um céptico e se desdenha a acção política, acredita na acção espiritual.
Como vamos chamar-lhe? Acção pedagógica? E porque não, se a entendermos na amplidão do espírito e não na mesquinhez da letra?... (Recordar artigos de Régio no «Diário Popular»).
Falar de acção pedagógica não é falar de livros, nem de escolas, nem de doutrinas, nem de «programas de salvação». E em todo o caso as doutrinas não são más em si mas no uso estreito que se faça delas. Eis o que se nos revela, como chave para toda a interpretação restante, à pg. 51.
«O que talvez seja impossível» é ainda a hesitação do Rei, a hesitação de Régio, a hesitação de nós todos, afinal.
*
A síntese impossível, amor-ódio, vida-morte, prazer-dor, esses termos refundidos na obra de criação, melhor , na ressurreição do homem. O homem, «se vem a salvar o mundo é salvando-se a si próprio.».
Eis a única lei válida e universal, que Píndaro formulou : «Ser o que se é.» Quem o diz? O Chefe do Partido Democrático.
*
Será preciso perguntar ainda: O teatro de Régio é um teatro de ideias? (Assim como a sua novelística?).
Um teatro intencional? Um teatro de propaganda, mesmo no bom sentido como quer o crítico da revista «Brotéria»?
Talvez , mas repare-se na feição particularíssima das suas ideias, das suas intenções e da sua propaganda.
Não será o pensamento expresso apenas um antelóquio, uma introdução à sua obra poética, a única a que verdadeiramente se poderá aplicar o conceito regiano de arte como «expressão que se basta e nos basta?»A «única emoção criadora pura?».
A monotonia dos seus versos epigramáticos e satíricos que já alguém notou (David Mourão Ferreira) e a dos temas do seu teatro e da sua ficção, que agora podemos notar, não glosam afinal todos um único e só pensamento, uma única e só propaganda, uma única e só intenção?
Dir-se-á então que só a sua poesia ascende a uma validez de arte? Talvez, mas nem só a ele teria de se aplicar essa fatalidade, mas a todos os poetas que tentem qualquer outro género e submeter-se a outras leis que não sejam as do seu génio lírico.
Repare-se como nesta peça tudo é claro, enquanto não intervêm os loucos, os poetas. Enquanto a Rainha não aparece, assistimos à pura controvérsia intelectual, uma espécie de forum doutrinário dentro duma peça teatral. E enquanto isso, não se realiza a integração poética, por mais que se insinuem expressões de certa ambiguidade e que pressupõem o mistério.
Todos os esforços se assimilam a um só: justificar-se, explicar-se, prefaciar-se o poeta e confessar-se humanamente aos seus amigos em quem ainda confia. Assimilemos Régio com o Rei e aí teremos, sempre, fazendo publicamente o seu testemunho de personagem régia mas humana, para que todos o entendam, lhe entendam o que ele aprendeu com o profeta (Régio místico), pois só isso importa no trânsito a caminho do Puro Espírito, esse que não se explica, esse que só o tanger das cordas de uma Cítara (Régio lírico) sabem exprimir aos doces ouvidos que o sabem escutar ( e «que se deixa de escutar só porque há ouvidos» - Fernando Pessoa).
*
Em termos dialécticos (isto é, não poéticos) eis o que aos homens importa transmitir-lhes. Como profeta dum conceito sui-generis de salvação do mundo, vem Régio fazer também a sua propaganda, a propaganda de renegar todas as propagandas, inclusivamente a dele...
Mas com isto, dando voz a uma vigorosa intenção pessoal, não terá ele mais do que exaltado um egotismo, uma preferência sem universalidade e sem viabilidade humana, geral?
Não será ele o megalómano, o cabotino, que lhe chamaram críticos azedos?
Julgo que não. Ao por e repor o seu próprio problema, Régio formula o problema humano, a perplexidade do mundo que se quer salvar. Régio quer dizer-nos de que só o Espírito salva mas para isso teve de se socorrer da letra, que ele procura afeiçoar ainda da maneira menos rígida, menos formalista, menos intolerante, menos perigosa em face dos condicionalismos ideológicos e mais acessível à turba: o teatro, o romance, de ideias evidentemente.
*
Mas teremos nós visto a que distância se situa Régio de toda a literatura de propaganda ( que tudo o que for de poesia há-de ser propaganda de qualquer coisa, toda a literatura é pedagógica, especialmente a literatura crítica)?
Aceitamos, aceitando o convite de Régio, todas as doutrinas, todas as verdades, todas as letras, não aceitando nenhuma em particular, porque as aceitámos a todas em espírito, forjado num pensamento personal, síntese de todos os contrários, encruzilhada de todas as direcções, infinito de todos os finitos.
Eis a utopia. Eis a síntese possível do impossível, dirão os dialécticos: mas abençoados os que viram e não se limitam a gozá-la mas degradam (pode existir redenção sem cruz?) grande parte do seu talento lírico, disponibilidades estéticas, portanto, dando a mensagem profética aos homens de boa vontade (eticismo, pedagogismo ou humanismo continente, afinal, na obra regiana).
Que Régio não tema pela efemeridade que um tal papel de mediador (não é Pedro da Traslândia o mediador?) , de testemunho, de pedagogo, de profeta e de mensageiro lhe pode fazer sofrer a sua obra de esteta. Cumpríssemos nós todos , com alegria, a missão que a todos cabe de redimir o homem pelo espírito.
Não é este o menor mérito da última obra de Régio: dar a cada homem a coragem de ressurreição, sem distinções de classes ou doutrinas, de épocas ou de raças, mas de todos os homens de «boa fé e de boa vontade».
Ferreira do Alentejo, 15 de Agosto de 1955
***
A LETRA E O ESPÍRITO(*) OU «A SALVAÇÃO DO MUNDO»,
TRAGICOMÉDIA DE JOSÉ RÉGIO, Lisboa, 1953
TRAGICOMÉDIA DE JOSÉ RÉGIO, Lisboa, 1953
(*) Este inédito de Afonso Cautela poderá ter sido publicado muito parcialmente, ou no «57» ou na revista «Ocidente»: o manuscrito tinha uma nota à margem, dirigida a António Quadros, director do jornal «57»: se servir, devolva para rever e refundir.» Acho que não foi refundido nem devolvido nem publicado
Ferreira do Alentejo, 15 de Agosto de 1955
Se tivéssemos de escolher uma personagem que polarizasse a significação tragicómica da peça, iríamos direitinhos à Rainha-Mãe, louca, que diz por mais de uma vez: «Bem sabes que tanto choro como rio».
E quando o Profeta deslinda, na cara de todos, a comédia dos ministros do Rei, ele, que também consideravam louco, recebe os aplausos da Rainha-Mãe: «Gosto do que ele diz! Gosto do que ele diz! Percebo pouco, mas gosto!».
Percebia a significação sibilina das suas acusações e das suas profecias. Os loucos entendem-se uns aos outros, assim como a linguagem da Cítara (arquétipo nítido da poesia) é a única que «sabe dizer» as coisas que doutro modo se não dizem.
Tem esta peça evidentes pontos de contacto com O Príncipe com Orelhas de Burro(1942) ; a cítara, ou antes, a CÍTARA, substitui aqui a viola do cego. E a Aia, que chegamos a supor muda, é bem o equivalente do violinista cego.
Fomos ao rol dos personagens no princípio do livro, na suposição de lá encontrarmos a Cítara incluída; de facto, é ela uma das personagens mais significativas, a única que «diz coisas». A fala dos outros, é um indistinto coaxar, que se não divisa nem entende.
A Rainha-Mãe pede ao Profeta: «Fala! Tu sabes dizer, és como a Célia....». E a Célia é muda. A verbosidade da Rainha louca propicia a apreensão do mistério, através de palavras que os ministros sensatos e, por extensão, os leitores e espectadores sensatos, apenas toleram e de que desdenham. Por isso, a sua incontrolada maneira de se expressar atinge uma patética altura de que fica aquém a serenidade do profeta.
Essa altura só nos poderá ser dada na representação, quando todos os elementos cénicos nos ajudarem a reconstituir a figura total da Rainha, símbolo dramático, ou melhor, tragicómico sobre que toda a peça se apoia. De facto, é ela a única nota de teatralidade , com suas intervenções bruscas e inesperadas.
O Rei representa o mesmo papel de mediador entre o céu e a terra que já n’O Príncipe com Orelhas de Burro assumira.
Di-lo o Chefe do Partido Aristocrático:«Há muito que Vossa Alteza sonhava com tais loucuras.» A acusação, despedida para ofender e ferir fundo o Rei, certamente o não turbaria , bem como à Rainha-Mãe se lhe não importava a loucura: « Eu bem sei que sou maluca, bem sei ; mas sinto-me bem assim...»
Aquilo que os homens «demasiado inteligentes» supõem ser uma acusação, constitui afinal uma glória ou, no menos, uma resignação.«Todos os mortos chamam doidos aos que ressuscitam», diz o profeta com ponderação e profundidade.
Mas, por outro lado, é certeira a afirmação do mesmo ministro, quando afirma:
«Está por demais provado que vos faltam as primaciais qualidades dum verdadeiro chefe.»
Sim, será isso verdade, na medida em que for verdade, também, a glória de ser louco como os outros: o Profeta, a Rainha, a Cítara...
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Aqui se resolverá o desfecho das teses que José Régio vinha opondo desde o início: terminará ele com um discurso (afinal um discurso, afinal a letra com que será preciso, no último instante, condescender , apesar do Quinto Evangelho ser um livro em branco) ou com a abdicação?
É o que iremos ver e o que nos habilitará à interpretação do pensamento que anima e inspira toda a obra de Régio, um pensamento de seriedade e resgate do homem pelo espírito.
Se é por um discurso, por a letra, apesar de tudo, por uma doutrina, que Régio se decide , há que conhecê-la, pois ela se desvia da dos ministros, de cada uma em particular e se filia talvez em todas elas numa síntese difícil de conceber pelos que por serem «demasiado inteligentes, não entendem nada de nada.» (fala do Profeta, pg. 272) a síntese talvez que todo o livro pretende e que, por milagre da arte, realiza.
Não sou eu quem o diz, é José Régio, pela boca de Jerónimo: «Também eu há muito desconfio das palavras, das doutrinas, das posições, da propaganda... estou farto de bíblias. E, ao mesmo tempo, compreendo que se não pode passar sem elças. Sou um atormentado, talvez um indivíduo supérfluo...».
Supérfluo é que ele não é; como personagem da peça, há que olhá-lo mesmo com uma certa atenção, pois a sua aparição não só muda o curso dos acontecimentos como os explica subsequentemente em muitos aspectos.
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Repare-se na identidade que logo se estabelece (não estamos nós a procurar explicar a obra dramática de Régio à base do seu impenitente lirismo, do seu impenitente pessoalismo?) entre Jerónimo e o Rei, identidade de destinos. A «grande cena muda» de que Régio acentuara a importância na respectiva rubrica, tem, de facto essa importância: «estes gestos, dum e doutro, devem ser perfeitamente simultâneos, sem o que será anulado todo o intuito da cena.»
É de facto assim; a mão que se levanta para o assassínio é a mesma que se levanta para o suicídio. O autor teve necessidade de desdobrar aí o Rei num seu duplo, quer ao mesmo tempo significasse uma espécie de destino que lhe impediu o suicídio real, embora subsistisse o seu valor virtual e simbólico, que se requeria para prosseguimento da dialéctica dramática, e também aquele amparo e companhia, aquele nosso «outro» que em momento graves invocamos , por nossa irremediável solidão.
«Nunca até hoje encontrei quem pudesse fazer meu confidente», eis o lamento dolorido do Rei. Mas encontra-o finalmente e encontra-o em circunstâncias muito especiais, primeiro porque lhe fez a revelação súbita de como é possível o impossível (a tal síntese, morte-vida, prazer-luto, todos os termos que dialecticamente andam desavindos, mas que no momento supremo da criação, da ressurreição do homem, no absurdo, no contraditório suicídio, encontram sua primeira e última razão de ser); depois, porque tem o primeiro confidente (fictício ou, por isso mesmo, o mais , o único verdadeiro, visto que não passa da sua própria face iluminada) para encetar uma jornada de confiança no futuro, motivo de coragem, contra o que um dos ministros já lhe dissera: «O erro de Vossa Alteza não é bem duvidar dos outros, ou das suas doutrinas; mas duvidar de si próprio.»
E confiar em Jerónimo, o que será senão o primeiro gesto de confiança , o primeiro mas decisivo e definidor de toda a sua conduta futura do Rei em si próprio?
Não se esqueça também de que Jerónimo trazia intenções de se suicidar, após ter cumprido o compromisso de regicídio, o que mais uma vez equipara ou equivale os dois destinos.
É Jerónimo que diz:«Talvez a minha história íntima não ande muito longe da tua.» (pg 92) . Essa identidade ou equivalência acentua-se nos outros actos, até ao último na passagem aqui citada da página 290 e duma outra fala de Jerónimo: «Mas o seu espírito destroói aquilo mesmo que vai criando.» Isto significa a preocupação de Régio ainda pela boca de Jerónimo: «O meu espírito é corrosivo. Ou será todo o Espírito que o é?»
Esta advertência nos informa do pirronismo que subjaz, em todos os espíritos verdadeiros, ao lado da crença mais firma. Eis a legenda de toda a peça, a perplexidade-núcleo de todo o drama, a fonte gerescente de toda a aventura do espírito: esperança-desespero.
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Régio teria conseguido a síntese dos contrários? Guardo para mim o que penso, nisto, e deixo à opinião livre de cada um, conjecturar o que sobre o tema capital da peça de José Régio e do nosso tempo se lhe afigurar mais justo. Certo é que já ninguém pode desmentir a actualidade e essencialidade de «A Salvação do Mundo», documento-síntese que bem merecia a sorte de levar ao mundo a sua verdade. Merecia-o Régio e merecia-o a humanidade, que espera, espera sempre...
Parece-nos que Régio pôs o problema da salvação do mundo no seu verdadeiro pé. Não é mentalidade para aceitar qualquer solução simplista e por isso propõe ao mundo que se salve, não mediante as receitas dos vários chefes de partidos, mas mediante o livro em branco que «só pode ser cheio em Espírito e Verdade.»
Se não estamos a trair o pensamento do autor, essa verdade é principalmente a verdade psicológica , íntima, de consciência – a sinceridade – (pg. 19) - e esse espírito é principalmente a poesia, a arte, a religião mística.
Bem sei que estou a estragar com palavras o espírito do autor mas permita-se-me este trânsito, perdoável só porque aqui me declaro recolhido e íntimo leitor do mais ( e que é tudo) que José Régio deixa pressentir mas que não pode reduzir-se a fórmulas.
Também terei de aceitar a sua acusação : «Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas.» Aceito-a e aqui deixo o meu acto de contrição, pela letra desta minha arenga.
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Retorna-se à pergunta: mas o que é, para Régio e para nós, Espírito e que é verdade? . Ouçamos o que nos dizem os seus personagens.
O Profeta, a Rainha e a Cítara (esta, a última a ter a palavra na tragédia, como a melhor depositária do Espírito Puro, sem letras que o constranjam) tomam a palavra mas...nada dizem, e por isso dizem tudo.
Vejamos agora o medianeiro entre os dois impossíveis (a Letra e o Espírito puros, aquele representada pela tacanhez dos ministros e de todos eles o mais tacanho – o Extremista), vejamos agora Pedro da Traslândia, o Rei.
Opta pelo discurso , pela letra, não abdica (o silêncio seria o espírito puro) mas que diz ele?
Antes de mais congratula-se com o seu povo, com os seus «amigos», clamando: «Já vários dos que me cercam desesperam de mim. Vós ainda não. E é isso que me dá nova coragem. Obrigado! Amigos... »
Eis o fundamento da sua ressurreição, pois foi ele um «homem que morreu e ressuscitou, e já não desiste!». É a confiança nos outros, aquele esperança que enquanto houver vida não morre (enquanto há vida, há esperança, diz o povo mas nem sempre os filósofos o imitam) e dá razão de ser à nossa esperança de medianeiros .
(Aqui nos parece residir o fundamento social da obra de Régio, o «egotista» , o «narcisómano», como os críticos incompreensivelmente o têm classificado. Egotista o poeta de A Chaga do Lado? É preciso que os senhores críticos aprendam a ler com atenção o que lêem).
Mas não esqueçamos que, para viver, é preciso morrer primeiro, só quem morre pode ressuscitar «homem novo». A única justificação de Pedro (porque agora era Pedro e não já o Rei) que se impunha diante do povo era o testemunho de humanidade (da fraqueza, da desistência e do subsequente recomeço «cheio de boa fé e boa vontade.» , sem mais ciência nem sabedoria.
O Rei conclui: «(...) Receio já estar usando palavras a mais, porque isto não é um discurso político...».
O rei coloca-se assim entre o Espírito (o Profeta, a Rainha e a Cítara, que nada dizem) e a Letra (a verborreia dos ministros), na plataforma humana e, assim, sinceramente se confessa. (lembre-se o papel que a sinceridade desempenha na obra romanesca, crítica e poética de Régio, explicitada n’O Príncipe com Orelhas de Burro e neste livro à pg. 79).
É esse acto de sinceridade o que o Rei encontra mais necessário para inaugurar o seu novo reinado, apesar de um dos ministros ter opinado do primeiro discurso do Rei (« O mais sincero que fiz até hoje», diz ele, pg 18): «Ninguém entendeu a comunicação de Vossa Alteza, que era demasiado pessoal.»
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Talvez por demasiado pessoal (e na terminologia que temos vindo a usar , diríamos por demasiado espiritual) também a obra testemunhal (novelística e teatro) de Régio tenha sido várias vezes mal interpretada, o que não é novidade para ele.
Mas pode perguntar tal como o Primeiro Ministro: «Que pretendi eu sempre ensinar-vos senão o amor da verdade?».
Tememos circunscrever nalguma definição demasiado estreita ou demasiado ambígua a intenção do autor, mas não resistimos à tentação de invocar aqui o que nos parece ter grandes afinidades com o pensamento agente do autor; sim, porque a verdade é que Régio não é um céptico e se desdenha a acção política, acredita na acção espiritual.
Como vamos chamar-lhe? Acção pedagógica? E porque não, se a entendermos na amplidão do espírito e não na mesquinhez da letra?... (Recordar artigos de Régio no «Diário Popular»).
Falar de acção pedagógica não é falar de livros, nem de escolas, nem de doutrinas, nem de «programas de salvação». E em todo o caso as doutrinas não são más em si mas no uso estreito que se faça delas. Eis o que se nos revela, como chave para toda a interpretação restante, à pg. 51.
«O que talvez seja impossível» é ainda a hesitação do Rei, a hesitação de Régio, a hesitação de nós todos, afinal.
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A síntese impossível, amor-ódio, vida-morte, prazer-dor, esses termos refundidos na obra de criação, melhor , na ressurreição do homem. O homem, «se vem a salvar o mundo é salvando-se a si próprio.».
Eis a única lei válida e universal, que Píndaro formulou : «Ser o que se é.» Quem o diz? O Chefe do Partido Democrático.
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Será preciso perguntar ainda: O teatro de Régio é um teatro de ideias? (Assim como a sua novelística?).
Um teatro intencional? Um teatro de propaganda, mesmo no bom sentido como quer o crítico da revista «Brotéria»?
Talvez , mas repare-se na feição particularíssima das suas ideias, das suas intenções e da sua propaganda.
Não será o pensamento expresso apenas um antelóquio, uma introdução à sua obra poética, a única a que verdadeiramente se poderá aplicar o conceito regiano de arte como «expressão que se basta e nos basta?»A «única emoção criadora pura?».
A monotonia dos seus versos epigramáticos e satíricos que já alguém notou (David Mourão Ferreira) e a dos temas do seu teatro e da sua ficção, que agora podemos notar, não glosam afinal todos um único e só pensamento, uma única e só propaganda, uma única e só intenção?
Dir-se-á então que só a sua poesia ascende a uma validez de arte? Talvez, mas nem só a ele teria de se aplicar essa fatalidade, mas a todos os poetas que tentem qualquer outro género e submeter-se a outras leis que não sejam as do seu génio lírico.
Repare-se como nesta peça tudo é claro, enquanto não intervêm os loucos, os poetas. Enquanto a Rainha não aparece, assistimos à pura controvérsia intelectual, uma espécie de forum doutrinário dentro duma peça teatral. E enquanto isso, não se realiza a integração poética, por mais que se insinuem expressões de certa ambiguidade e que pressupõem o mistério.
Todos os esforços se assimilam a um só: justificar-se, explicar-se, prefaciar-se o poeta e confessar-se humanamente aos seus amigos em quem ainda confia. Assimilemos Régio com o Rei e aí teremos, sempre, fazendo publicamente o seu testemunho de personagem régia mas humana, para que todos o entendam, lhe entendam o que ele aprendeu com o profeta (Régio místico), pois só isso importa no trânsito a caminho do Puro Espírito, esse que não se explica, esse que só o tanger das cordas de uma Cítara (Régio lírico) sabem exprimir aos doces ouvidos que o sabem escutar ( e «que se deixa de escutar só porque há ouvidos» - Fernando Pessoa).
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Em termos dialécticos (isto é, não poéticos) eis o que aos homens importa transmitir-lhes. Como profeta dum conceito sui-generis de salvação do mundo, vem Régio fazer também a sua propaganda, a propaganda de renegar todas as propagandas, inclusivamente a dele...
Mas com isto, dando voz a uma vigorosa intenção pessoal, não terá ele mais do que exaltado um egotismo, uma preferência sem universalidade e sem viabilidade humana, geral?
Não será ele o megalómano, o cabotino, que lhe chamaram críticos azedos?
Julgo que não. Ao por e repor o seu próprio problema, Régio formula o problema humano, a perplexidade do mundo que se quer salvar. Régio quer dizer-nos de que só o Espírito salva mas para isso teve de se socorrer da letra, que ele procura afeiçoar ainda da maneira menos rígida, menos formalista, menos intolerante, menos perigosa em face dos condicionalismos ideológicos e mais acessível à turba: o teatro, o romance, de ideias evidentemente.
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Mas teremos nós visto a que distância se situa Régio de toda a literatura de propaganda ( que tudo o que for de poesia há-de ser propaganda de qualquer coisa, toda a literatura é pedagógica, especialmente a literatura crítica)?
Aceitamos, aceitando o convite de Régio, todas as doutrinas, todas as verdades, todas as letras, não aceitando nenhuma em particular, porque as aceitámos a todas em espírito, forjado num pensamento personal, síntese de todos os contrários, encruzilhada de todas as direcções, infinito de todos os finitos.
Eis a utopia. Eis a síntese possível do impossível, dirão os dialécticos: mas abençoados os que viram e não se limitam a gozá-la mas degradam (pode existir redenção sem cruz?) grande parte do seu talento lírico, disponibilidades estéticas, portanto, dando a mensagem profética aos homens de boa vontade (eticismo, pedagogismo ou humanismo continente, afinal, na obra regiana).
Que Régio não tema pela efemeridade que um tal papel de mediador (não é Pedro da Traslândia o mediador?) , de testemunho, de pedagogo, de profeta e de mensageiro lhe pode fazer sofrer a sua obra de esteta. Cumpríssemos nós todos , com alegria, a missão que a todos cabe de redimir o homem pelo espírito.
Não é este o menor mérito da última obra de Régio: dar a cada homem a coragem de ressurreição, sem distinções de classes ou doutrinas, de épocas ou de raças, mas de todos os homens de «boa fé e de boa vontade».
Ferreira do Alentejo, 15 de Agosto de 1955
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