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Thursday, December 15, 2005

R. BOLT 1965

bolt1> - comentário à margem

«THOMAS MORE» DE ROBERT BOLT PELO TEATRO-ESTÚDIO DE LISBOA (*)

(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal diário «República», em 15/12/1965, na rubrica do autor «Comentários à Margem»

Graças aos esforços e à tenacidade do Teatro-Estúdio de Lisboa, que deu suficientes provas de capacidade artística na primeira temporada em que actuou (1964-1965), temos entre nós e finalmente com regularidade um teatro - responsável, inteligente, digno. Um teatro de ideias que se destina a fazer pensar e obriga a assumir posições, a esclarecer motivos, a desmistificar problemas. Um teatro, enfim, capaz de colaborar no saneamento de horizontes mentais, capaz de se integrar numa corrente de pensamento e de influir num tipo de mentalidade.
É tudo isto o que teremos de reconhecer, antes de mais nada, antes de (à margem de um espectáculo de inegável interesse e de múltiplas méritos, pela ideia-base que o inspira e presidiu depois à sua execução, de uma beleza cénica nunca anteriormente vista em palcos portugueses) registarmos uma opinião crítica.
Essa opinião incidirá exclusivamente sobre o texto de Robert Bolt, sobre a estrutura da peça. Tratando-se, com efeito, de um teatro de ideias, suscita outras ideias e convida à controvérsia. Peça polémica, compromete o espectador numa posição a que ele, consciente ou inconscientemente, adere. Por isso merece e necessita uma reflexão mais demorada por parte de um espectador a quem o espectáculo, independentemente das suas implicações críticas, agradou inteiramente e ao qual endereça a maior admiração, o mais incondicional apoio, o aplauso mais veemente.
Dentro do melhor espírito da Renascença, esta peça de um jovem autor inglês contemporâneo revive, em termos de ática claridade, um iluminismo idealista que, embora de boa estirpe e próprio da época que pretende reconstituir, se apresenta ao nosso tempo com resultados desmoralizadores. Tanto mais que a linguagem de Robert Bolt, numa primorosa tradução de Luzia Maria Martins, lhe confere uma particular fascinação e um excepcional poder emotivo.
Tomás More, visto por Robert Bolt, é o advogado que raciocina com impecável argúcia, que insinua com elegância, que se esquiva e defende com uma inteligente ambiguidade ou uma sofística bonomia. É o homem de espírito e de carácter, a alma quase mística, a consciência recta e pura. E por fim o mártir que o tirano Henrique VIII, depois de proteger, havia de atirar para o cadafalso, pela mão do seu lugar-tenente, o odioso Cromwell.
Peça biográfica e também polémica, poderia lembrar, mas só até certo ponto, um outro Tomás também inglês e de apelido Becket, que Jean Anouilh tratou na peça já hoje tão popular através da versão cinematográfica. Mas difere esta peça da sua congénere porque não trata Tomás More de uma perspectiva existencial e sim política. Ou, digamos, idealista crítica. «Tomás More» vem dizer-nos que a resistência à tirania é um mérito e que nos devemos deixar matar pela verdade. Que não devemos ceder nem vacilar. Que podemos perder tudo, incluindo a vida, mas não devemos perder a nossa consciência, vender a nossa alma. Jean Anouilh chamar-lhe-ia «honra de Deus». E também neste caso, para More, se tratava de uma honra idêntica, como para Joana d’Arc, vista com o nome de «Joana de Lorena», por esta companhia do Teatro Vasco Santana.
Em qualquer delas, o tema: a lei da consciência contra as leis temporais, a verdade íntima contra as conveniências e aparências, o indivíduo e sua intransigente coerência ou honestidade contra a corrupção da máquina pública, o dever moral contra o estatuto da cidade.
Até certo ponto, um tema conveniente, diríamos mesmo um tema educativo. Mas inconveniente e deseducativo também. No mundo cínico que é o nosso, aconselhar, perante o lobo, a posição do cordeiro, do idealista mártir, do cristão das catacumbas que se deixa condenar por fidelidade à sua fé, à sua consciência, à sua verdade, poderá ser uma forma de revelar grandes figuras históricas - o caso de Antígona, de Joana d'Arc, de Tomás Becket, de Tomás More - mas atrofia a confiança, a capacidade defensiva e táctica do homem comum. Nem todos são Tomás More, esse espírito forte e superior que na peça de Robert Bolt exclama: «Cristo nos livre dos homens simples».
Impressionante ambiguidade é esta. O homem simples, o homem da rua, o que se deixou manejar e nada possui, o homem dos sete ofícios porque a sobrevivência o força à subserviência, é de facto temível. Mas temível como e porquê? Apenas porque se presta ao manejo de quem o compre e saiba corromper, permitindo com a sua passividade ou impotência todos os abusos e todos os crimes.
Em compensação, Tomás More poderá dar-se ao luxo da intransigência. E pode ser o herói, enquanto o outro - o homem simples - faz de carrasco que o guilhotina.
Tomás More, autor da «Utopia», visionário que uma tradição hermética parece ter inspirado, mais cedo ou mais tarde iria parar à fogueira ou ao garrote. Anos antes, outro seria o seu fim, mas não muito diferente. Amigo e confidente de Erasmo, na Europa dos humanistas, dos homens de Letras algo interessados na condução dos negócios humanos e que por isso fizeram da Europa a sua Pátria, nem More nem Erasmo nem nenhum dos seus notáveis contemporâneos se sobrepuseram às limitações históricas da época. Escudaram-se num individualismo que permanece belo, capaz de inspirar peças admiráveis como esta de Bolt, mas inoperante. Peças onde o sacrifício pelas nobres causas se proclame e exalte são, de certa maneira e atendendo ao clima temperado da zona, contraproducentes. Antígona, Joana de Lorena, Becket, More - terríveis exemplos de inocência proposta à terrível voracidade do mais forte. A força moral contra a força da força? Sim, senhor, é um tema eterno de peças eternas. Mas talvez um pouco mais devagar...
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal diário «República», em 15/12/1965, na rubrica do autor «Comentários à Margem»
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