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Wednesday, December 14, 2005

SURREALISMO 63

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O SURREALISMO E O QUE SE TRADUZ (*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), 12-12-1963 ]

Agora que a qualidade de livros traduzidos em língua portuguesa pode fazer esquecer o aspecto da qualidade e, principalmente, o da variedade, talvez seja oportuna uma olhadela à orientação geral das nossas editoras.
Há quem pense que deveria haver uma diversidade maior e um maior equilíbrio não só quanto aos géneros mas também quanto aos movimentos ou correntes, evitando certas hipertrofias de um lado e atrofias quase mortais por outro.
A justificar omissões e repetições, e editor alega que não há público, mentalidade, tradição e ambiente para receber certas obras, mas o argumento não convence, visto que, da saturação do mercado livreiro num único sentido é que pode advir, logicamente, uma saturação do leitor, quer o que lê e compra (ou compra e não lê . . .) quer o que apenas lê.
Se se continua a editar num ritmo que alguns consideram animador, se, com espanto de muitos, o ritmo de produção continua a ser acompanhado e secundado, enigmaticamente, pelo heróico e anónimo consumidor, alguns há apreensivos e que se interrogam sobre a vantagem de variar, não digo já os géneros, entre os quais o desequilíbrio é menos gritante, mas correntes de pensamento mais representativas do nosso tempo. As editoras, colaborando com os intelectuais, deveriam animar um diálogo, um convívio e um "acordo tripartido" que beneficiaria escritor, editor e leitor.
É normal que um simpatizante do existencialismo fique mais satisfeito quando vê traduzido e publicado Sartre ou Camus do que se visse aparecer, com a mesma regularidade, autores surrealistas. Mas reconhecerá, se acaso o "ódio clubista" o não cega, haver vantagem para todos em que apareça de tudo. Por outro lado não significaria facciosismo que um surrealista ou simpatizante do surrealismo lastimasse a desatenção total em que os prelos portugueses têm deixado obras e autores de uma corrente que, queiramos ou não, adeptos e não adeptos, tem hoje uma indiscutível importância.
Porque surrealistas não são apenas as obras e os autores do grupo francês; é todo o levantamento bibliográfico e iconográfico promovido pelos surrealistas, re-iluminando tradições ocultas, religando circuitos aparentemente perdidos, pondo em questão temas dados por arruinados, assuntos tidos por tabus, verdades rotuladas de crendices, livros e autores declarados mortos (mas que se verificou estarem mais vivos que muitos vivos), critérios considerados ultrapassados mas que subitamente se viu constituírem o núcleo ardente da mais autêntica modernidade.
De tão vasta e rica e complexa bibliografia, porém, não há sinal de que as nossas traduções se ocupem ou venham a ocupar.
Não é preciso recuar muitos anos e, mesmo hoje, não será necessário entre nós procurar muito, para encontrar boa gente que nutre inabaláveis e despóticos preconceitos contra, por exemplo, o pensamento oriental, cérebros que negam todo e qualquer valor, alcance, significado e actualidade ao budismo ou ao confucionismo, e para quem o yoga ou o zen são apenas motivos de chiste e chacota.
Mais preconceitos, porém, e mais enraizados, se encontrariam contra a alquimia e os alquimistas, a medicina hermética e a medicina natural, o esoterismo e os esoteristas. Tudo aquilo que o surrealismo reabilitou e reanimou sob cercos e ataques grosseiros por parte de mentalidades que se julgam progressivas e em nome desse progressivismo.
Simpatizante ou não do surrealismo, uma atitude verdadeiramente aberta e culta terá de reconhecer o prestígio que readquiriram temas, ideias, problemas, obras e autores que as nossas editoras e edições continuam a ignorar.
Um surrealista dirá que não saímos da linha académica, ignorando tudo o que não é reconhecido pelo imobilismo das instituições e pessoas culturais.
Que saibamos e que nos lembre, apenas uma casa editora houve até hoje com coragem e envergadura para lançar uma obra de cunho abertamente antiacadémico: refiro-me ao "Surrealismo-Abjeccionismo", cujo valor intrínseco está na razão inversa da sua venda e expansão possível, isto é, do seu valor comercial.
Praticamente não houve entre nós modernidade. Por um triz que não começou com Fernando Pessoa. Depois, por um triz também, com Almada. Finalmente e ainda por uma unha negra, com os surrealistas.
Temos de reconhecer, porém, que ficou tudo como estava (ou pior) e não chegou a haver revolução modernista, algo que modelasse uma mentalidade e determinasse um público suficientemente largo e lúcido para as coisas da imaginação. Não há em língua portuguesa um fio sequer da tradição que tornou possível em França, nos anos vinte, a explosão surrealista.
Voltando às nossas editoras e edições, não vejo maneira de romper o ciclo vicioso, se não houver um editor suficientemente arrojado e lúcido para que tome em suas mãos (e capitais...) o risco que vale a pena correr: vencer a inércia.
Vale a pena correr o risco , tentando obviar a inconvenientes que os intelectuais e o público são, por si sós, impotentes pare, combater.
Vale a pena tentar abrir perspectivas editoriais sobre um conhecimento, um saber e uma cultura não académicos, não oficiais, não clássicos, não instituídos.
E não se diga que mais uma vez estaríamos na dependência monocultural da França. É que se trataria, desta vez, de aproveitar não só os originais de língua francesa mas o que, sob os auspícios dos surrealistas, se traduziu das línguas e culturas mais diversas, do árabe ao chinês...
Paris é ainda onde convergem, de todos os lugares do mundo (mas também do anti-mundo...) e de todos os instantes da história (mas também da anti-história...), as manifestações da cultura e principalmente da anticultura...
É pelos antis, aliás, que Paris continua a exercer o maior fascínio e continua a deter o titulo universalmente reconhecido de "capital do espírito".
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), 12-12-1963

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