W. BURROUHGS 92
1-3 - 92-02-10-ls> = leituras selectas do ac - 8031 caracteres burroug1>livros>beja>
O MAL NA LITERATURA - WILLIAMS BURROUHGS COMEÇA A SER ACTUAL(*)
[10-2-1992]
Qualquer dia temos que fazer a notícia necrológica de William Burroughs, maldito até ao fim, nos seus actuais 77 anos sobrevividos, e então é o momento, entre todos solene, de proclamar que ele «foi um dos mais importantes escritores de todos os tempos» incluindo os vindouros, e lamentar que não lhe tenha sido atribuído o Prémio Nobel. Nunca se sabe quando esta omissão do Nobel é vista como um elogio ou como uma afronta ao chorado autor em causa...
Não vai haver tempo, então, para pôr em dia a leitura do seu verbo vulcânico e torrencial, pormenorizar os aspectos circunstanciais e publicitários da sua vida maldita de maldito escritor. Depois de morto, sim, tudo isso poderá concorrer para o vender melhor.
Temos em tradução portuguesa -- e traduzir Burroughs é fazer [o pino] equilibrismo em cima de um cabo de alta tensão -- «As Terras do Poente», «Cidades da Noite Vermelha»(*) e «Naked Lunch», banquete que o saudoso João Palma-Ferreira teve ainda ocasião de verter para a editora Livros do Brasil com o infeliz título «Alucinações de um Drogado».
Pois bem: quando Burroughs, nascido em St Louis, em 5/2/1914, esticar o pernil, vai ser difícil afirmar, numa obra com 47 títulos, de 1953 até hoje, se está lá tudo quanto os seus panegiristas, entra os quais se podem contar o português Palma-Ferreira e o norte-americano Norman Mailer, dizem estar. Tudo e mais alguma coisa, até o que ainda não existe. Por isso em vez de escritor, muitos preferem considerá-lo profeta. Vai ser impossível a um ser humano abranger (abraçar) esta prodigiosa torrente de lava que, além de queimar, não é propriamente de um perfume «made in Paris».
O papel dos cheiros
Aliás e como se sabe, os cheiros têm, nas páginas de Burroughs, um papel característico, ainda que todo o mundo sensorial o tenha, mercê de um génio descritivo de imagens que supera toda a câmara cinematográfica. Isto não impede que o realizador Cronenberg, sempre à cata de moscas, não esteja tentando a sua chance de adaptar o «Naked Lunch», título de W.B. mais vendido, mas não sei se o mais profético.
No aspecto de prever as grandes vagas de fundo que só anos depois a história iria comprovar, ponto por ponto, «Cidades da Noite Vermelha», na magistral tradução de Maria Dulce Teles de Menezes (na companhia de Salvato), parece-me muito mais pesado de consequências. Publicado em 1981, está lá já, nas «Cidades da Noite Vermelha», a epidemia do século, com uma nitidez de contornos perfeitamente alucinante. De tal maneira, que se torna crível a hipótese colocada por alguns observadores de a tal «epidemia do século» ter sido decalcada e montada de acordo com o guião ficcionado por Burroughs. Só para deslindar esta questão - se foi a história que copiou Burroughs ou ele que profetizou a história - muitas equipas de investigadores seriam necessárias. Entretanto, nas escassas notas de referência que têm aparecido em português sobre o «maior escritor do século XX» -- assim se inclinava a considerá-lo o nosso João Palma-Ferreira -- é possível respigar novos items que dão novas pistas para percorrer, sem demora e exaustivamente, o que bem pode vir a ser considerado o sucessor de James Joyce no «guiness» dos escritores mais citados e cotados.
A «contaminação orgânica» seria o tema dominante nos volumes desta trilogia, a que pertence também o volume já publicado pela Presença, «As Terras do Poente», onde um exército de centopeias gigantes, proliferando com uma força e velocidade colossais, teriam comido tudo o que era ser humano... Ele retira dessa hipótese, como se calcula, surpreendentes ilacções romanescas. Tudo isto a partir de um topónimo que, existindo no território dos Estados Unidos, existia também no Egipto dos faraós e dos escribas.
Com a sua arte descritiva semelhante à lâmina afiada de um bisturi, William Burrouhgs não nos poupa a cenas-limite de verdadeiro horror, com as centopeias devorando seres humanos e a sairem, com suas cabeças agitadas e frenéticas, do corpo das vítimas...Qualquer produtor de filmes de horror estará, com certeza, atento, para aproveitar cenas tão garantidamente repugnantes. Tão gratificantes, como diria o Ministro da Alimentação.
Constante, nos quadros abjeccionistas de William Burroughs, é a exibição dos órgãos sexuais, expostos também à voracidade das bichas selváticas e a uma constante entropia que sugere a essência da malignidade, dos escombros e da morte. A ruína desta civilização. O fim da «grande farra».
Sob a aparência de um relato coloquial, Williams Burroughs descreve, em constante obsessão, a decadência, o apodrecimento, a decomposição «orgânica». Com tintas nada suaves, diga-se, antes com uma expressa e propositada violência visual. O que não pode deixar de fascinar, tarde ou cedo, um produtor de cinema.
CADA UM SEU PALADAR
O escritor de «As Terras do Poente» é perito em procurar exactamente aquilo que repugna ao paladar, à vista, enfim, aos cinco sentidos que ainda conseguem reagir, no amolecimento e embotamento generalizado que caracteriza a sociedade de consumo (ou do vómito? perguntará Burroughs), já bem longe das metas hedonistas que sonhou, dos prazeres que julgou gozar, das metas que freneticamente se propôs atingir.
Nesse aspecto se diria que Burroughs baniu qualquer idealização romântica e que exagera ao seleccionar apenas o que é ostensivamente repugnante (aos cinco sentidos) e traumatizante à sensibilidade. Uma coisa parece certa: com esse inventário de horrores, o autor pretende traduzir a «grande farra» que é a sociedade de consumo moderna, grande farra que será a forma pela qual esta civilização irá perecer, e dar a alma ao criador, ungida de todos os sacramentos, tal como a egípcia pereceu, apesar de ser herdeira directa e dilecta dos deuses... Que fará esta, filogeneticamente herdeira do Macaco.
Pela boca morre o peixe... e o Planeta do «fast-food» também.
PERGUNTAS INDISCRETAS
Que tipo de genealogia, por exemplo, liga este cabecilha da geração «beat» a Conrad, Genet, Dante, Carlyle e Swift?
Até que ponto a «técnica da montagem» é fácil e pode repetir-se como receita, e até que ponto só por ela seriam possíveis obras como o «Ulisses» de Joyce?
Que tem a ver Burroughs com a sacralização e a santidade da Abjecção, tão nítida, por exemplo, em Genet?
Será Sade um dos seus antecessores, ou nunca o conheceu de parte nenhuma?
Na geração «beat», teria sido ele a fazer da viagem o símbolo iniciático por excelência, ou esse papel deve, com maior justiça, atribuir-se a Jack Kerouack?
Terá razão Norman Mailer quando proclama o autor de «Naked Lunch» «o único romancista americano vivo provavelmente possuído pelo génio?»
Mais: seria ele e não Artaud a levar até às últimas consequências a literatura como experiência-limite, o abjeccionismo contido nas premissas do surrealismo europeu?
Quem se aventurar por este pântano ardente, por este pesadelo sem despertar, por este «resfolgar do universo, sem sono nem tréguas nem pausa» que é a obra de Burroughs, deverá apenas tomar algumas precauções prévias, demarcando o terreno, por exemplo, com datas de referência, para não se perder totalmente e poder regressar à «vida normal», à «civilização», à histérica sociedade do consumo.
Note-se que, quando outro «beat», Allen Ginsberg, publicava «Howl» (1956) e Jack Kerouack «On de Road» (1957), já Burrouhgs estava metido até ao pescoço nos alucinogénicos e instituído guru, eminência parda, mito entre os mitos da «beat generation», ainda que o seu «Naked Lunch» só surgisse em Paris em 1959.
Como diz um crítico, as novelas de Henry Miller parecem suaves e humanas se comparadas à inaudita violência (visual e nem só) de Burroughs. Que pena Bataille não poder incluí-lo em «A Literatura e o Mal», o livro que ainda preferimos como o manifesto possível da famigerada quão impossível modernidade.
-----
(*) «As Terras do Poente», William Burroughs, Ed. Presença
«Cidades da Noite Vermelha», William Burroughs, Ed. Difel
***
O MAL NA LITERATURA - WILLIAMS BURROUHGS COMEÇA A SER ACTUAL(*)
[10-2-1992]
Qualquer dia temos que fazer a notícia necrológica de William Burroughs, maldito até ao fim, nos seus actuais 77 anos sobrevividos, e então é o momento, entre todos solene, de proclamar que ele «foi um dos mais importantes escritores de todos os tempos» incluindo os vindouros, e lamentar que não lhe tenha sido atribuído o Prémio Nobel. Nunca se sabe quando esta omissão do Nobel é vista como um elogio ou como uma afronta ao chorado autor em causa...
Não vai haver tempo, então, para pôr em dia a leitura do seu verbo vulcânico e torrencial, pormenorizar os aspectos circunstanciais e publicitários da sua vida maldita de maldito escritor. Depois de morto, sim, tudo isso poderá concorrer para o vender melhor.
Temos em tradução portuguesa -- e traduzir Burroughs é fazer [o pino] equilibrismo em cima de um cabo de alta tensão -- «As Terras do Poente», «Cidades da Noite Vermelha»(*) e «Naked Lunch», banquete que o saudoso João Palma-Ferreira teve ainda ocasião de verter para a editora Livros do Brasil com o infeliz título «Alucinações de um Drogado».
Pois bem: quando Burroughs, nascido em St Louis, em 5/2/1914, esticar o pernil, vai ser difícil afirmar, numa obra com 47 títulos, de 1953 até hoje, se está lá tudo quanto os seus panegiristas, entra os quais se podem contar o português Palma-Ferreira e o norte-americano Norman Mailer, dizem estar. Tudo e mais alguma coisa, até o que ainda não existe. Por isso em vez de escritor, muitos preferem considerá-lo profeta. Vai ser impossível a um ser humano abranger (abraçar) esta prodigiosa torrente de lava que, além de queimar, não é propriamente de um perfume «made in Paris».
O papel dos cheiros
Aliás e como se sabe, os cheiros têm, nas páginas de Burroughs, um papel característico, ainda que todo o mundo sensorial o tenha, mercê de um génio descritivo de imagens que supera toda a câmara cinematográfica. Isto não impede que o realizador Cronenberg, sempre à cata de moscas, não esteja tentando a sua chance de adaptar o «Naked Lunch», título de W.B. mais vendido, mas não sei se o mais profético.
No aspecto de prever as grandes vagas de fundo que só anos depois a história iria comprovar, ponto por ponto, «Cidades da Noite Vermelha», na magistral tradução de Maria Dulce Teles de Menezes (na companhia de Salvato), parece-me muito mais pesado de consequências. Publicado em 1981, está lá já, nas «Cidades da Noite Vermelha», a epidemia do século, com uma nitidez de contornos perfeitamente alucinante. De tal maneira, que se torna crível a hipótese colocada por alguns observadores de a tal «epidemia do século» ter sido decalcada e montada de acordo com o guião ficcionado por Burroughs. Só para deslindar esta questão - se foi a história que copiou Burroughs ou ele que profetizou a história - muitas equipas de investigadores seriam necessárias. Entretanto, nas escassas notas de referência que têm aparecido em português sobre o «maior escritor do século XX» -- assim se inclinava a considerá-lo o nosso João Palma-Ferreira -- é possível respigar novos items que dão novas pistas para percorrer, sem demora e exaustivamente, o que bem pode vir a ser considerado o sucessor de James Joyce no «guiness» dos escritores mais citados e cotados.
A «contaminação orgânica» seria o tema dominante nos volumes desta trilogia, a que pertence também o volume já publicado pela Presença, «As Terras do Poente», onde um exército de centopeias gigantes, proliferando com uma força e velocidade colossais, teriam comido tudo o que era ser humano... Ele retira dessa hipótese, como se calcula, surpreendentes ilacções romanescas. Tudo isto a partir de um topónimo que, existindo no território dos Estados Unidos, existia também no Egipto dos faraós e dos escribas.
Com a sua arte descritiva semelhante à lâmina afiada de um bisturi, William Burrouhgs não nos poupa a cenas-limite de verdadeiro horror, com as centopeias devorando seres humanos e a sairem, com suas cabeças agitadas e frenéticas, do corpo das vítimas...Qualquer produtor de filmes de horror estará, com certeza, atento, para aproveitar cenas tão garantidamente repugnantes. Tão gratificantes, como diria o Ministro da Alimentação.
Constante, nos quadros abjeccionistas de William Burroughs, é a exibição dos órgãos sexuais, expostos também à voracidade das bichas selváticas e a uma constante entropia que sugere a essência da malignidade, dos escombros e da morte. A ruína desta civilização. O fim da «grande farra».
Sob a aparência de um relato coloquial, Williams Burroughs descreve, em constante obsessão, a decadência, o apodrecimento, a decomposição «orgânica». Com tintas nada suaves, diga-se, antes com uma expressa e propositada violência visual. O que não pode deixar de fascinar, tarde ou cedo, um produtor de cinema.
CADA UM SEU PALADAR
O escritor de «As Terras do Poente» é perito em procurar exactamente aquilo que repugna ao paladar, à vista, enfim, aos cinco sentidos que ainda conseguem reagir, no amolecimento e embotamento generalizado que caracteriza a sociedade de consumo (ou do vómito? perguntará Burroughs), já bem longe das metas hedonistas que sonhou, dos prazeres que julgou gozar, das metas que freneticamente se propôs atingir.
Nesse aspecto se diria que Burroughs baniu qualquer idealização romântica e que exagera ao seleccionar apenas o que é ostensivamente repugnante (aos cinco sentidos) e traumatizante à sensibilidade. Uma coisa parece certa: com esse inventário de horrores, o autor pretende traduzir a «grande farra» que é a sociedade de consumo moderna, grande farra que será a forma pela qual esta civilização irá perecer, e dar a alma ao criador, ungida de todos os sacramentos, tal como a egípcia pereceu, apesar de ser herdeira directa e dilecta dos deuses... Que fará esta, filogeneticamente herdeira do Macaco.
Pela boca morre o peixe... e o Planeta do «fast-food» também.
PERGUNTAS INDISCRETAS
Que tipo de genealogia, por exemplo, liga este cabecilha da geração «beat» a Conrad, Genet, Dante, Carlyle e Swift?
Até que ponto a «técnica da montagem» é fácil e pode repetir-se como receita, e até que ponto só por ela seriam possíveis obras como o «Ulisses» de Joyce?
Que tem a ver Burroughs com a sacralização e a santidade da Abjecção, tão nítida, por exemplo, em Genet?
Será Sade um dos seus antecessores, ou nunca o conheceu de parte nenhuma?
Na geração «beat», teria sido ele a fazer da viagem o símbolo iniciático por excelência, ou esse papel deve, com maior justiça, atribuir-se a Jack Kerouack?
Terá razão Norman Mailer quando proclama o autor de «Naked Lunch» «o único romancista americano vivo provavelmente possuído pelo génio?»
Mais: seria ele e não Artaud a levar até às últimas consequências a literatura como experiência-limite, o abjeccionismo contido nas premissas do surrealismo europeu?
Quem se aventurar por este pântano ardente, por este pesadelo sem despertar, por este «resfolgar do universo, sem sono nem tréguas nem pausa» que é a obra de Burroughs, deverá apenas tomar algumas precauções prévias, demarcando o terreno, por exemplo, com datas de referência, para não se perder totalmente e poder regressar à «vida normal», à «civilização», à histérica sociedade do consumo.
Note-se que, quando outro «beat», Allen Ginsberg, publicava «Howl» (1956) e Jack Kerouack «On de Road» (1957), já Burrouhgs estava metido até ao pescoço nos alucinogénicos e instituído guru, eminência parda, mito entre os mitos da «beat generation», ainda que o seu «Naked Lunch» só surgisse em Paris em 1959.
Como diz um crítico, as novelas de Henry Miller parecem suaves e humanas se comparadas à inaudita violência (visual e nem só) de Burroughs. Que pena Bataille não poder incluí-lo em «A Literatura e o Mal», o livro que ainda preferimos como o manifesto possível da famigerada quão impossível modernidade.
-----
(*) «As Terras do Poente», William Burroughs, Ed. Presença
«Cidades da Noite Vermelha», William Burroughs, Ed. Difel
***
<< Home