GURDJIEFF 1963
1-2 - gurdjieff-2-ls= leituras selectas domingo, 22 de Dezembro de 2002-scan
[29–8-1963 , in «Diário de Notícias» (Lisboa) ] - A neurose ou nevrose generalizada de que sofre toda ou quase toda a humanidade dita civilizada traduz-se principalmente e em ultima análise na doença da vontade, na sua como que atrofia secular, agravada pelo peso e pesadelo de uma educação cada vez mais atrofiante e de uma guerra de nervos à escala mundial cada vez mais aterradora ou terrorística. A vontade não é vontade, mas um simulacro de vontade.
Como diria Gurdjieff, nós não temos vontade, temos desejos, que, por sua vez, não passam de hábitos disfarçados. Algo nos move, não somos nós que nos movemos. Por isso auto-móveis são os propriamente ditos e não nós...
O principal problema que o médico alienista ( psiquiatra, psicanalista) hoje defronta é, pois, o da vontade, que foi e continua sendo um objecto de estudo e nada mais; estuda-se, subdivide-se, fazem-se tratados e filosofa-se sobre a vontade, sabe-se tudo ou quase tudo acerca dela menos como usá-la, menos como ter vontade.
« A cette époque, il me semblait que la manque de volonté était la «bête noire» dans le traitement des nevroses.» - afirma, em 1927, o doutor Young, discípulo de Jung. E é a seu propósito que Louis Pauwels escreve na página 182 do livro(1) que estamos referindo: «alguns anos após de aprofundamento e aplicação da psicanálise, ele (refere-se a Young) põe a única questão importante, aquela que Jung não ousa enfrentar, nem, por maioria de razão, Freud: a questão da vontade.
Não se trata, evidentemente, desta vontade descrita nos manuais de psicologia clássica, mas se assim se pode dizer, da vontade da vontade, ou, noutros termos, da mola número um da libertação do homem.»
NEVROSE GENERALIZADA
A nevrose generalizada é um facto conhecido e reconhecido pelos médicos alienistas.
«Toda a gente sofre dos nervos» - seria a expressão comum com que se banalizou uma das mais trágicas realidades do nosso tempo, realidade contra a qual pouco podem as forças até agora desencadeadas para a combater. A ciência médica parece que teria continuado aliás empenhada em defender dogmas teóricos do que em curar doentes, a fazer fé no que afirma ainda o dr Young na página 181 do livro «Monsieur Gurdjieff»:
«Eu estava, sem dúvida, um pouco desencorajado pela inconsistência e ambiguidade dos resultados da terapêutica analítica, comparados aos resultados concretos da cirurgia que eu próprio tinha praticado bastante, antes e durante a guerra.
«Este desencorajamento profundo era agravado pelos cantos de júbilo dos sectários
obtusos que aclamavam uma técnica esclerosada logo que inventada, e também pelas discussões dos meus confrades analistas, mais preocupados em defender pontos de vista dogmáticos do que em curar os doentes. A cura, para os mais eminentes, parecia ter-se tornado um problema imediatamente sem interesse e eu começava a encontrar-me, com desespero, entre os cépticos que modificando os termos da brincadeira clássica: «A operação foi um êxito mas o paciente morreu», lançavam a fórmula: «A análise foi um êxito, mas o paciente suicidou-se.» Em resumo, a psicologia moderna parecia-me pretender muito corno ciência e por aí se Gomava ridícula e muito pouco como arte - e por aí se tornava ridícula – e muito pouco como arte – e por aí se empobrecia.»
Perante este e outros testemunhos, é que parece justificada uma crescente sensação de logro perante a medicina oficial. O grande e maior problema, a grande e maior doença, é a da vontade. No entanto a ciência até hoje nada fez, nada faz , nada consta que esteja resolvida a fazer, de prático, de efectivo, de realmente eficaz na sua terapêutica. Espécie de peste do nosso tempo, a « epidemia» neurótica, ao lado do cancro generalizado pela progressiva viciação do ar respirável - eis as doenças da Hipercivilização contra as quais a ciência hipercivilizada continua impotente.
Não se pretendendo recusar à ciência revelada, oficial ou académica os poderes que efectivamente tem para debelar outros tipos de doença que não sejam as «doenças da civilização» cremos que, quanto a estas, ia sendo tempo de pedir à ciência académica que abrisse os olhos e percebesse que outros caminhos, extra-académicos , se terão de abrir.
----
(') Louis Pauwels , «Monsieur Gurdjieff,» - documentos, testemunhos, textos e comentários sobre uma sociedade iniciática contemporânea - Editions, du Seuil, Paris, 1954.
----
(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas pela antecipação das intuições fulcrais, foi publicado no suplemento literário do «Diário de Notícias», dirigido então por Natércia Freire que lá me acolhia os textos. Foi publicado no dia 29 –8-1963
***
À MARGEM DO LIVRO «MONSIEUR GURDJIEFF»:
A DOENÇA DA CIVILIZAÇÃO (*)
A DOENÇA DA CIVILIZAÇÃO (*)
[29–8-1963 , in «Diário de Notícias» (Lisboa) ] - A neurose ou nevrose generalizada de que sofre toda ou quase toda a humanidade dita civilizada traduz-se principalmente e em ultima análise na doença da vontade, na sua como que atrofia secular, agravada pelo peso e pesadelo de uma educação cada vez mais atrofiante e de uma guerra de nervos à escala mundial cada vez mais aterradora ou terrorística. A vontade não é vontade, mas um simulacro de vontade.
Como diria Gurdjieff, nós não temos vontade, temos desejos, que, por sua vez, não passam de hábitos disfarçados. Algo nos move, não somos nós que nos movemos. Por isso auto-móveis são os propriamente ditos e não nós...
O principal problema que o médico alienista ( psiquiatra, psicanalista) hoje defronta é, pois, o da vontade, que foi e continua sendo um objecto de estudo e nada mais; estuda-se, subdivide-se, fazem-se tratados e filosofa-se sobre a vontade, sabe-se tudo ou quase tudo acerca dela menos como usá-la, menos como ter vontade.
« A cette époque, il me semblait que la manque de volonté était la «bête noire» dans le traitement des nevroses.» - afirma, em 1927, o doutor Young, discípulo de Jung. E é a seu propósito que Louis Pauwels escreve na página 182 do livro(1) que estamos referindo: «alguns anos após de aprofundamento e aplicação da psicanálise, ele (refere-se a Young) põe a única questão importante, aquela que Jung não ousa enfrentar, nem, por maioria de razão, Freud: a questão da vontade.
Não se trata, evidentemente, desta vontade descrita nos manuais de psicologia clássica, mas se assim se pode dizer, da vontade da vontade, ou, noutros termos, da mola número um da libertação do homem.»
NEVROSE GENERALIZADA
A nevrose generalizada é um facto conhecido e reconhecido pelos médicos alienistas.
«Toda a gente sofre dos nervos» - seria a expressão comum com que se banalizou uma das mais trágicas realidades do nosso tempo, realidade contra a qual pouco podem as forças até agora desencadeadas para a combater. A ciência médica parece que teria continuado aliás empenhada em defender dogmas teóricos do que em curar doentes, a fazer fé no que afirma ainda o dr Young na página 181 do livro «Monsieur Gurdjieff»:
«Eu estava, sem dúvida, um pouco desencorajado pela inconsistência e ambiguidade dos resultados da terapêutica analítica, comparados aos resultados concretos da cirurgia que eu próprio tinha praticado bastante, antes e durante a guerra.
«Este desencorajamento profundo era agravado pelos cantos de júbilo dos sectários
obtusos que aclamavam uma técnica esclerosada logo que inventada, e também pelas discussões dos meus confrades analistas, mais preocupados em defender pontos de vista dogmáticos do que em curar os doentes. A cura, para os mais eminentes, parecia ter-se tornado um problema imediatamente sem interesse e eu começava a encontrar-me, com desespero, entre os cépticos que modificando os termos da brincadeira clássica: «A operação foi um êxito mas o paciente morreu», lançavam a fórmula: «A análise foi um êxito, mas o paciente suicidou-se.» Em resumo, a psicologia moderna parecia-me pretender muito corno ciência e por aí se Gomava ridícula e muito pouco como arte - e por aí se tornava ridícula – e muito pouco como arte – e por aí se empobrecia.»
Perante este e outros testemunhos, é que parece justificada uma crescente sensação de logro perante a medicina oficial. O grande e maior problema, a grande e maior doença, é a da vontade. No entanto a ciência até hoje nada fez, nada faz , nada consta que esteja resolvida a fazer, de prático, de efectivo, de realmente eficaz na sua terapêutica. Espécie de peste do nosso tempo, a « epidemia» neurótica, ao lado do cancro generalizado pela progressiva viciação do ar respirável - eis as doenças da Hipercivilização contra as quais a ciência hipercivilizada continua impotente.
Não se pretendendo recusar à ciência revelada, oficial ou académica os poderes que efectivamente tem para debelar outros tipos de doença que não sejam as «doenças da civilização» cremos que, quanto a estas, ia sendo tempo de pedir à ciência académica que abrisse os olhos e percebesse que outros caminhos, extra-académicos , se terão de abrir.
----
(') Louis Pauwels , «Monsieur Gurdjieff,» - documentos, testemunhos, textos e comentários sobre uma sociedade iniciática contemporânea - Editions, du Seuil, Paris, 1954.
----
(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas pela antecipação das intuições fulcrais, foi publicado no suplemento literário do «Diário de Notícias», dirigido então por Natércia Freire que lá me acolhia os textos. Foi publicado no dia 29 –8-1963
***
Labels: ideias-chave ac, leituras 1963, publicados ac
0 Comments:
<< Home