NIETZSCHE 1952
1-2 - 52-08-20-ej> = escritos da juventude - nietzsche-5-ej> escritos da juventude
CADERNOS DE UM APRENDIZ - ASSIM FALAVA ZARATUSTRA, em 20 de Agosto de 1952
Um outro profeta que anuncia a vinda dum novo deus. E usa dos mesmos grosseiros processos que o antigo usava. Complicada simbologia prestando-se a interpretações muito diversas de cada pessoa que lê; assim qualquer pessoa pode supor maravilhas onde o autor não pôs mais do que palavras.
Nietzsche, para derrubar os deuses anteriores a ele, cria um ainda mais imperfeito, na própria concepção. Nem ele procura coerência. Blasfema e com isso se acha capaz de impor uma nova religião e de mostrar às inteligências um novo deus.
Poesia ou filosofia? Poesia será, pois a filosofia exige requisitos que nem de longe ali se satisfazem. Por exemplo: uma linguagem inflexível e recta.
Mas saudemos o esforço, o entusiasmo e até a coragem dum grande pensamento que se revoltou contra crenças tradicionais, hábitos mantidos e até contra o próprio espírito na sua casa sem janelas. Tal tentativa só podia ter um fim como de facto teve: o rompimento da consciência individual em alguém cujo último sustentáculo era a consciência.
Nietzsche nunca se teria conformado com essa escravidão do humano ser à consciência. Lembra a poesia de José Régio no que esta tem de revolta, de procura de emancipação. Mas distancia-se dela pela falta de submissão, de lúcida e exacta visão das limitações implacáveis, da identificação do deus que procura com o deus tradicional. Nunca eu podia ter a pretensão de reduzir a termos lógicos o que por si nunca é lógico, nem coerente, nem meridiano.
Por isso disse que o livro de Nietzsche é poesia. Na grandeza do seu grito Nietzsche deixa-se vencer e nem repara que conduz a sua prédica com acentos de Novo Testamento, com expressões da Bíblia Antiga, com o próprio desejo da vinda dum deus e seu império.
Onde a emancipação total? A eterna prisão: o espírito humano que nunca permite se saia de si e dos termos em que ele equacionou o problema humano.
Mas mesmo que tal quiséssemos conseguir(a emancipação do espírito de si mesmo) não era com uma oração inflamada, imprecações e símbolos que o conseguiríamos mas na procura das raízes da inteligência lá onde elas provavelmente se encontram: na história. A intervenção do real e até do actual no emaranhado da simbologia poética, mostra bem as falhas inevitáveis que a grande ambição tinha de originar, dada a sua própria impossibilidade lógica; a loucura de Nietzsche é a maior e mais trágica e mais bela explicação de como Nietzsche percebeu isso muito bem e mediu a sua fraqueza.
Da impotência ao desespero e do desespero à loucura foi um passo. Que dizer do nebuloso conceito de massas que Nietzsche nos apresenta chamando-lhe os nomes mais diversos mas todos desprezivos?
Só isto: ele sentia qualquer coisa que, mais do que tudo lhe entravava o caminho; ele sentia qualquer coisa a acusá-lo surdamente de tanta ambição; ele sentia qualquer coisa a pesar-lhe na alma desmentindo cada grito com que a si mesmo se procurava convencer.
E a essa qualquer coisa chamou rebanho, populaça e muitos nomes mais. E como se compreende que um homem que se quer superior venha rojar-se perante o rebanho, a contar os seus anelos e desânimos e ambições?
Dessa paradoxal posição também Nietzsche dá conta e a expressa em diversas passagens. Uma vez mais se verifica a inapreciável vantagem de possuir o maior domínio da língua. Quando se tem muito que dizer, corre-se o risco de estragar tudo se não o soubermos expressar. Até certo ponto, isso me parece que aconteceu a Nietzsche.
Ou será da tradução? Afinal a visão do "ubermensh" não contraria, antes afirma, a lei biológica da evolução. A única atitude inteligente diante de Zaratustra não será considerá-lo como uma espantosa profecia perante a qual nos resta somente esperar, dispostos a presenciar grandes acontecimentos?
A todo o momento clama "Meus irmãos". Mas esses irmãos não passam dele próprio, desdobrado por imperiosa necessidade de expressão. O Super-Homem não tem irmãos. O egoísmo parece-me que um dia me convenci de que o egoísmo era a mola real da vida. E Nietzsche diz que sim, que é.
Eis uma afinidade para mim bastante honrosa. Se um dia o mundo se contorcer em gigantesca revolução de povos, não terá chegado a altura do Super-Homem, o advento duma época Nova, a saída do actual beco sem saída?
*
O rompimento da razão é suspeito seja em que caso for: E se o não admitimos na religião, porque o havemos de admitir na filosofia de Nietzsche, que afinal não passa duma outra religião, mais imperfeita e sem os séculos a escorarem-lhe o assento.
Zaratustra é um poema. Por isso mesmo, outras consequências mais não se lhe podem pedir que as de contemplação e sugestão. Em Zaratustra, muitas ideias novas surgem. Mas antes que a essas ideias sejam dados foros de cidade, necessário é que passem da categoria de ideias poéticas para a de ideias filosóficas.
Não se pode chamar vaidoso ao «Ecce-Homo». Nietzsche não entendeu a vaidade como até ele se entendera.
***
CADERNOS DE UM APRENDIZ - ASSIM FALAVA ZARATUSTRA, em 20 de Agosto de 1952
Um outro profeta que anuncia a vinda dum novo deus. E usa dos mesmos grosseiros processos que o antigo usava. Complicada simbologia prestando-se a interpretações muito diversas de cada pessoa que lê; assim qualquer pessoa pode supor maravilhas onde o autor não pôs mais do que palavras.
Nietzsche, para derrubar os deuses anteriores a ele, cria um ainda mais imperfeito, na própria concepção. Nem ele procura coerência. Blasfema e com isso se acha capaz de impor uma nova religião e de mostrar às inteligências um novo deus.
Poesia ou filosofia? Poesia será, pois a filosofia exige requisitos que nem de longe ali se satisfazem. Por exemplo: uma linguagem inflexível e recta.
Mas saudemos o esforço, o entusiasmo e até a coragem dum grande pensamento que se revoltou contra crenças tradicionais, hábitos mantidos e até contra o próprio espírito na sua casa sem janelas. Tal tentativa só podia ter um fim como de facto teve: o rompimento da consciência individual em alguém cujo último sustentáculo era a consciência.
Nietzsche nunca se teria conformado com essa escravidão do humano ser à consciência. Lembra a poesia de José Régio no que esta tem de revolta, de procura de emancipação. Mas distancia-se dela pela falta de submissão, de lúcida e exacta visão das limitações implacáveis, da identificação do deus que procura com o deus tradicional. Nunca eu podia ter a pretensão de reduzir a termos lógicos o que por si nunca é lógico, nem coerente, nem meridiano.
Por isso disse que o livro de Nietzsche é poesia. Na grandeza do seu grito Nietzsche deixa-se vencer e nem repara que conduz a sua prédica com acentos de Novo Testamento, com expressões da Bíblia Antiga, com o próprio desejo da vinda dum deus e seu império.
Onde a emancipação total? A eterna prisão: o espírito humano que nunca permite se saia de si e dos termos em que ele equacionou o problema humano.
Mas mesmo que tal quiséssemos conseguir(a emancipação do espírito de si mesmo) não era com uma oração inflamada, imprecações e símbolos que o conseguiríamos mas na procura das raízes da inteligência lá onde elas provavelmente se encontram: na história. A intervenção do real e até do actual no emaranhado da simbologia poética, mostra bem as falhas inevitáveis que a grande ambição tinha de originar, dada a sua própria impossibilidade lógica; a loucura de Nietzsche é a maior e mais trágica e mais bela explicação de como Nietzsche percebeu isso muito bem e mediu a sua fraqueza.
Da impotência ao desespero e do desespero à loucura foi um passo. Que dizer do nebuloso conceito de massas que Nietzsche nos apresenta chamando-lhe os nomes mais diversos mas todos desprezivos?
Só isto: ele sentia qualquer coisa que, mais do que tudo lhe entravava o caminho; ele sentia qualquer coisa a acusá-lo surdamente de tanta ambição; ele sentia qualquer coisa a pesar-lhe na alma desmentindo cada grito com que a si mesmo se procurava convencer.
E a essa qualquer coisa chamou rebanho, populaça e muitos nomes mais. E como se compreende que um homem que se quer superior venha rojar-se perante o rebanho, a contar os seus anelos e desânimos e ambições?
Dessa paradoxal posição também Nietzsche dá conta e a expressa em diversas passagens. Uma vez mais se verifica a inapreciável vantagem de possuir o maior domínio da língua. Quando se tem muito que dizer, corre-se o risco de estragar tudo se não o soubermos expressar. Até certo ponto, isso me parece que aconteceu a Nietzsche.
Ou será da tradução? Afinal a visão do "ubermensh" não contraria, antes afirma, a lei biológica da evolução. A única atitude inteligente diante de Zaratustra não será considerá-lo como uma espantosa profecia perante a qual nos resta somente esperar, dispostos a presenciar grandes acontecimentos?
A todo o momento clama "Meus irmãos". Mas esses irmãos não passam dele próprio, desdobrado por imperiosa necessidade de expressão. O Super-Homem não tem irmãos. O egoísmo parece-me que um dia me convenci de que o egoísmo era a mola real da vida. E Nietzsche diz que sim, que é.
Eis uma afinidade para mim bastante honrosa. Se um dia o mundo se contorcer em gigantesca revolução de povos, não terá chegado a altura do Super-Homem, o advento duma época Nova, a saída do actual beco sem saída?
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O rompimento da razão é suspeito seja em que caso for: E se o não admitimos na religião, porque o havemos de admitir na filosofia de Nietzsche, que afinal não passa duma outra religião, mais imperfeita e sem os séculos a escorarem-lhe o assento.
Zaratustra é um poema. Por isso mesmo, outras consequências mais não se lhe podem pedir que as de contemplação e sugestão. Em Zaratustra, muitas ideias novas surgem. Mas antes que a essas ideias sejam dados foros de cidade, necessário é que passem da categoria de ideias poéticas para a de ideias filosóficas.
Não se pode chamar vaidoso ao «Ecce-Homo». Nietzsche não entendeu a vaidade como até ele se entendera.
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