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Wednesday, August 02, 2006

LEITURAS 1952

1-2 - chave50> 5658 caracteres chave50>chave> CHAVE PARA OS ANOS 50

1953-1955:PRIMEIRAS NOTAS DE LEITURA

[2-8-1993]

No ano lectivo 1952-53, os inéditos sobre Poesia, Crítica, Criação, Deus, dão conta do inferno das palavras em que eu já, aos 20 anos, me achava. E nunca mais de lá saí. A crença nos livros, a bóia dos livros (escritores e filósofos), ilusão de que os livros darão um dia resposta às grandes questões do abismo humano.
É sincero o balanço que hoje faço dessas digressões dos anos 50, dessas leituras até às quatro e 5 horas da manhã, na base de café bem forte que me deixava os nervos num nó. As «patas de galinha» à volta dos olhos, vêm daí. Com que lucro? O de me rever hoje nessas dactilografias feitas em papel amarelaço. O lucro de poder rememorar onde começam a brotar as minhas ideias fixas, as minhas obsessões, as minhas pomposamente chamadas intuições. A memória destes 20 anos não me lisonjeia nem envergonha - deixa-me um pouco menos do que indiferente.
E sinto o dever quase cumprido: deixar arrumados os inéditos, para gozo dos meus netos e bisnetos, que certamente irão apreciar tudo o que seja património construído. Eu vejo isso pelo interesse com que a Cristina vê as malas de papelão dos anos 20 na Travessa da Queimada, uma casinha antiquária que ali há. O gosto do berloque antigo, tanto como dos lugares comuns na linguagem literária, pode ser que salve do anonimato estas folhas, nem agrestes nem geniais, do ano lectivo 1952-53, onde já (veja-se só a mania) inventariava autores pelo seu grau de «iniciação»
*
Provavelmente influído pelas críticas literárias do João Gaspar Simões, cuja leitura em tudo o que era jornal eu compartilhava, deslumbrados os dois, com o Carlos Alberto Jordão (hoje juiz e poeta), risquei muitos inéditos, cuidadosamente passados na Hermes Baby, primeira máquina de escrever que o meu pai me ofereceu, quando fiz 7 anos, notas de leitura todas muito pernósticas. O meu vezo conservador dá para ainda ter muitas destes títulos sobre os quais escrevi. Por exemplo, alguns autores e livros desses anos de intensa leitura:
«De Rerum Natura», Lucrécio - 5 estrelas
«Noções de Filosofia», Eugénio Aresta
«Prometeu Agrilhoado», Ésquilo - 5 estrelas
«Santo Agostinho», Pascoaes
«São Jerónimo», Pascoas - 5 estrelas
«Assim Falava Zaratustra», Nietszche
«Eternidade», Ferreira de Castro
«Sinfonia Pastoral», André Gide
»Rêveries d'un Promeneur Solitaire», J.J. Rousseau
«Música ao Longe», Erico Veríssimo
«Gato Preto em Campo de Neve», Erico Veríssimo
«O Resto é Silêncio», Erico Veríssimo
«Odisseia», Homero
«Cândide», Voltaire
«Vida errante», Fialho de Almeida
«Páginas de Política», Raul Proença
«A Volta ao Mundo», Ferreira de Castro
«Razão e Absoluto», José Bacelar
«Guerra e Paz», Leão Tolstoi
«Educação Funcional«, Eduardo Claparède
«Ecce Homo», Frederico Nietszche
«A Crise do Mundo Moderno», Leonel Franca
«A Salvação do Mundo» José Régio
«A Esperança Desesperada», Armindo Rodrigues
«Patafísica», Jarry
«O Desespero Humano», Kierkegaard

*

Escusado será comentar o relativo gozo que me dá voltar hoje, 40 anos volvidos, à leitura desse livros, sem arrogância e com nostalgia. A memória já não é hoje assim tão emocionalmente importante como o sabor dos queques do Marcel Proust poderia levar a pensar, nem como antes da RA eu pensava, mas dá sempre algum gozo voltar ao que nos deu gozo aos vinte anos.
Sempre o naif me comoveu. Numa coisa essas «Notas de Leitura» (1952-54) são melhores do que tudo o que escrevi posteriormente sobre livros e arredores: não tinham o crítico como missionário e a crítica como missionação, aspecto dominante no tempo em que foi publicado o «Jornal de Crítica» (in «República») e que hoje me parece ser um dos aspectos mais execrandos, numa actividade execrável, já de si, que é a escrita pró público.
São dos meus 20 anos - e isso, confesso, orgulha-me - as obsessões em torno de noções que haviam de ser noções-chave, a de gestalpsicology de William James, por exemplo, e a de Parménides (os dois infinitos) e a do segredo da esfinge, especialmente esta, em duas amareladas páginas eternamente inéditas, enche-me de legítimo orgulho.
Agora que a RA me levou, aos 60 anos, de regresso à Esfinge.

*
Há uma lista manuscrita de autores, com data de 1955, em que assinalo o que essencialmente via neles:
António Nobre - Culto da solidão
Baudelaire - Culto do Eu
Poe - Culto do maravilhoso
Jean Jacques Rousseau e Santo Agostinho - Culto do eu autobiográfico
Rimbaud - culto do símbolo
Nietszche - culto do absurdo
Fernando Pessoa - culto do absurdo
Lorca - culto do sangue
Walt Whitman - culto da fraternidade
São Francisvo - culto da fraternidade
Huxley - culto da ironia
Rilke - culto da sobriedade inefável

* A mania epistolar e o vezo de escrever cartas a tudo quanto é gente, conhecido e desconhecido, parece bem assinalado, desde logo, em 1955, onde, no suicídio de Sebastião da Gama, eu lhe escrevia chamando-lhe irmão. Nenhum parvo quer ser parvo sozinho e eu terminava essa comovente missiva com estas palavras lancinantes: «Espero que a família não me troque as voltas. Oxalá não deiem por nada. Estou morto por te abraçar, ó Sebastião. Até breve. O teu irmão Afonso Cautela.»
Tão comovente como esta, só a missiva que escrevi, já na balbúrdia dos anos 80, ao Araújo Ferreira, suspeito também de se ter suicidado, ele que, acupunctor, sabia mexer nas energias e deve ter calcado (picado) o ponto da morte.
Estava farto e, segundo testemunho da empregada doméstica, todo o dia andara, de um lado para o outro, rosnando aquela obcecação: «O que é que eu ando aqui a fazer?»
É o que eu todo o dia rosno, mas não tenho empregada doméstica para testemunhar.
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