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Monday, September 04, 2006

H. MARCUSE 1979

1-5 - terça-feira, 24 de Dezembro de 2002-scan

A SUPERDIMENSÃO DO «UNIDIMENSIONAL» MARCUSE - UMA LEITURA PESSOAL E INTRANSMISSÍVEL DE AFONSO CAUTELA (*)

[Edição Especial», Lisboa, 5-8-1979 ] - A "popularidade" de Marcuse, se lhe adveio em parte da revolta estudantil e da "new left" em geral, bem como do impacto publicitário que esta obteve nos anos sessenta (bem sabia o Poder que se gestava nela o melhor alibi para reforçar a Repressão), vai no entanto radicar numa identidade de fundo com a "revolta total" de muitos outros movimentos cuja filiação se deverá, in extremis, ir procurar a um estado de espírito que permanece através de épocas históricas várias: a heresia que, no fundo, irmana existencialistas, surrealistas, dadaístas, "hippies", "provos", militantes da resistência activa e da não violência, ecologistas, acaba por ser um denominador comum sem que os próprias actores da tragédia se apercebam disso.
A vanguarda da história nem sempre tem consciência global de si própria. Digamos que Marcuse foi uma dessas consciências providenciais que sempre surgem para, de vez em quando, fazer o ponto da situação. Mas não será por isso que todos aqueles revoltados e contestatários vão reclamar-se de Marcuse como pai espiritual. "Les beaux esprits se rencontrent" e coincidências sempre as houve, ou o "inconsciente colectivo" não fosse uma realidade há muita demonstrada.
Mas também é verdade que o filósofo de Berkeley acabaria par não se reconhecer em muitos dos filhos e sobrinhos que lhe arranjaram: os activistas de Baaden-Meinhof, por exemplo, ou os "novos filósofos" alemães, últimos abencerragens evoluídos de um velho anti-comunismo primário.
Chamado a prestar declarações pelo semanário "L'Express", Marcuse (um tanto irritado com os jornalistas e com a celebridade) tentava em Setembro de 1968 insurgir-se contra as amálgamas:
"Oponho-me principalmente à justaposição do meu nome e da minha fotografia com as de Che Guevara, Debray, Dutschke, etc. Porque estes homens arriscaram e arriscam verdadeiramente as suas vidas no combate por uma sociedade mais humana. Enquanto eu apenas participo com ideias e palavras".
Resposta modelar onde se espelha toda a ambiguidade em que Marcuse é mestre. Ao mesmo tempo que elogia os revolucionários, diz que não quer misturas com eles. O seu lugar na Universidade de S. Diego correria perigo?
Numa coisa ele era sincero: mal sabia Marcuse as voltas que a história dá e as surpresas que os movimentos de guerrilha viriam trazer.
O FMI subsidiando o governo dos sandinistas (a notícia é de há uma semana), dois meses depois de financiar a tirania sangrenta de Somoza, podia ser apenas uma das menores surpresas...
Mas sabia Marcuse (e é isso que o torna um filósofo incómodo, um supersínico moderno!) que quando o desespero toma a forma de luta armada, os imperialismos acabam por reconhecer duas coisas, ao deliberarem recuar e suspender a chacina:
a) Sem facilitar demasiado a vida aos guerrilheiros, convém no entanto que, de dois em dois anos, no panorama mundial das ditaduras, vá caindo um Somoza de podre: isto dá um grande alento aos somozas das democracias parlamentares para continuarem apodrecendo países como o nosso;
b) Sobre os destroços de um país esvaído em sangue, poderão as multinacionais do terror tecno-industrial instalar a super-ditadura do desenvolvimento económico (crescimento industrial infinito), tanto mais que há um álibi gritante: trata-se de países tão carecidos, tão pobres, tão subdesenvolvidos, que só a Caritas e a Cruz Vermelha não chegam para as encomendas; e a FAO acorrerá com toneladas de pesticidas (fabricados do petróleo...) e a OMS com carregamentos de medicamentos (químicos também...) onde, eventualmente e sem querer, algumas vacinas poderão disfarçar esterilizantes.

POR ISSO O DIZEM PROFÉTICO
Cruel é que em Marcuse tudo isto está subentendido. Avista-se no fundo do seu pensamento, como num lago de águas calmas. Por isso o dizem profético.
Tal como outros filósofos contemporâneos (Lévy-Strauss e Merleau-Ponty, por exemplo), o autor de "Eros e Civilização" tentou pensar o impensável, quer dizer, teorizar a "lógica do Absurdo" que é, ou tem vindo a ser (acentuando-se), a história deste Tempo-e-Mundo. Já Lenine dizia que só nos restava "obviar ao apodrecimento da história".
Os malefícios que tal ginástica "dialéctica" implica, só têm, entretanto, equivalente nos perigos que o próprio ecossistema Terra corre, manipulado pelos megaengenheiros, à mercê dos imperialismos que puseram este mundo a ferro e fogo, quer dizer: Plutónio, Petróleo e Poluição.
Radicalizar, como fez o filósofo da Universidade da Califórnia, a crítica a esta sociedade ensandecida e levar essa crítica até às (pen)últimas consequências, pode aparentemente prefigurar a Utopia: não alinhar hoje em nenhum dos blocos imperialistas, de facto, releva da "loucura".
(A menos que se tenha petróleo no subsolo, é impossível fazer uma revolução não alinhada. Quem, senão o Irão, iria em pleno século da irreligiosidade e da catástrofe, realizar e impor a revolução islâmica, na linha das grandes tradições e liturgias? )
Daí que Marcuse apareça, com certa razão, rotulado de utopista. Mas perante a Utopia Tecnocrática que conduz em acelerado a humanidade à Neo-Barbárie vigente, eis que se transforma em "realismo do Milagre" a utopia de todas as cidades do sol. Não é um ideal para ficar melhor. É pura e simplesmente um caso de vida ou de morte. Trata-se exclusivamente de salvar a pele. Isto é realista.

A MAIS ANTIGA TRADIÇÃO PRIMORDIAL VIVA
Em certo sentido, o único seguidor lógico das premissas de Marcuse seria David Cooper, quando fez as malas e abalou para o Tibete... O pirronismo marcusiano, ao constatar a sociedade fechada (com arame farpado electrificado de alta tensão...) aponta inevitavelmente e em derradeira instância para uma saída vertical, para uma dimensão que é costume designar de transcendente, para uma dimensão que é costume designar de transcendente, para uma redenção só reencontrável no rigor de uma disciplina ascética de algum mosteiro tântrico e nas implicações subversivas de todos os fundamentos imanentes em que assenta o "logos' ocidental: falo da lei kármica e das implicações revolucionárias que ela tem, a inversão de valores que provoca (o que não deixa de ser outro perigo político a que Marcuse conduz, mais um "malefício da sua dialéctica"...)
À luz da lei kármica, a luta de classes, por exemplo, e de uma maneira geral o Sofrimento, o Mal, a Injustiça, estariam neste palco porque a ordem ou justiça universal é inexorável. E muita gente há ainda para expiar o que fez outrora. Não se sabendo, por exemplo, que destino estará reservado, numa reincarnação, aos actuais fabricantes de cancros e petroquímica, por exemplo.
De qualquer maneira, a rampa de lançamento para práticas iniciáticas de índole esotérica, parece-me das consequências mais interessantes de um pensamento que plana muito mais terra a terra.
"Quando se desespera de tudo, é que surge a Esperança" diz a Bíblia dos cristãos.
Preferiu-se, no entanto, enfatizar Rudy Dutchke e os revolucionários de rua como herdeiros das teses do filósofo da Ambiguidade. De facto entre um terrorista e um monge lamaísta medeia o infinito. Mas denunciadas todas as ordens do poder instituído, surge claro para alguns uma alternativa absoluta: a ordem espiritual dos Antigos da mais antiga tradição primordial viva. David Cooper bebeu deste cálice.

SOCIEDADE DO DESPERDÍCIO E DA PILHAGEM
Outro contributo (in)directo do seu pensamento poderá ter sido a ideia de uma Recusa ou Greve Geral de cidadãos à Sociedade do Desperdício e da Pilhagem, greve que na prática ainda não se viu concretizada, mobilizados que andam os grevistas a consolidar o sistema com suas reivindicações parciais ou corporativistas. Ficou claro, nas ruas de Maio 68, as confederações que se afrontavam.
Supuseram alguns, por exemplo, que quando a central atómica de Three Mile Island esteve por um fio, o pânico seria suficiente para rasgar a teia de conformismo do "homem unidimensional", para desencadear uma onda de recusa tal que subverteria em breve o sistema nuclear e nem só. Afinal, parece que mesmo derretendo o reactor, ainda não será o suficiente para mobilizar a humanidade na sua própria autodefesa, em greve geral contra o crime institucionalizado do nuclear e nem só. Assim por diante.
Os factos parecem assim dar razão ao cinismo de Marcuse, havendo quem bichane esta coisa terrível e potencialmente fascista: "a humanidade afinal tem o que merece..." E «adapta-se a tudo», o tal condicionamento dentro dos arames farpados do concentracionário onde lhe tiram os dentes para fazer botões e a pele para fabricar sabonetes.
Uma coisa é certa: a humanidade tem os engenheiros que merece, tendo vindo, alguns, veiculados pela RTP, dizer que o acidente da Pensilvânia só vinha provar a grande segurança dos técnicos. Se fosse daqui a um ano, Marcuse poderia ter visto, ilustrado e já a cores, sistema Pal, a tese fulcral da sua reflexão sobre o abismo.
A engenheira Isabel Torres, da EDP, agiu na prática como a mais sabedora discípula do mestre. Sem desfaçatez, até. Certíssima da legitimidade que assiste ao esplendor do tecnocinismo, quando toda a humanidade se demite de um direito suposto fundamental: o direito à vida, o direito a defender-se dos carniceiros tecnoburocratas.
Horas antes da engenheira, aliás, John Schlesinger, secretário de Estado da Energia dos EUA, perfilhava a mesmíssima tese da engenheira electro-nuclear.

OS FILHOS DO JOVEM MARX
Viu Marcuse que à entrada para a teoria sobre a Revolução estava o conceito marxista de "alienação", escamoteado entretanto e prudentemente pelos seguidores com o bom e consabido pretexto: era um Marx muito verde, muito juvenil o que teorizou a alienação...
Sem ela, a luta de classes cingir-se-ia então e para já à "exploração do homem pelo homem", ficando a "manipulação do homem pelo homem" (cobaia das experiências deles no mar, na terra, no espaço...) para denúncia posterior, séculos depois.
Marcuse não quis esperar, nem mais um dia. E a sua crítica à "manipulação do homem pelo homem", redundando na denúncia da alienação, atingia em pleno coração o imperialismo dito socialista, situação já expressa no desabafo de Merleau-Ponty: "Não se pode ser comunista, não se pode ser anticomunista".
Mas o impasse veio a ser quebrado com a súbita consciência de uma outra luta de classes sobreposta às duas citadas: a "exploração da Natureza pelo homem" tinha a peculiaridade de dar apenas alguns dias de vida a esta pobre geração que ia agora crescendo e preparando-se para ocupar os gabinetes alcatifados dos chamados grandes centros de decisão. Alguns desta geração já viram duas coisas:
a) Tiravam o diploma de doutores para depois se empregarem como varredores da Câmara (humilhante mas ecológico);
b) Um gabinete, por mais estofado e com rendinhas nas janelas, está igualmente à mercê de uma fuga radioactiva em qualquer das duzentas centrais que eles disseminaram por esta Terra...
Maio de 68, de qualquer maneira, ainda não foi a geração da ultrapassagem. Terão ainda que derreter muitos reactores para que a greve de Paris se estenda ao universo. Alguns aguardam o regresso de Karl Marx para ele teorizar as duas lutas de classe que lhe ficaram na gaveta: "a manipulação do homem pelo homem" e a "exploração/manipulação da Natureza pelo homem".
Entretanto, os Ecologistas procuram um Marx...

ESQUERDISMO, DOENÇA INFANTIL DO COMUNISMO
"Esquerdismo, doença infantil do Comunismo": foi mais ou menos com estes doces epítetos que a ortodoxia marxista recebeu mais este discípulo do jovem Marx em luta com o Marx adulto.
Idêntica sorte iria suceder a Edgar Morin, Henry Lefèbvre, Roger Garaudy, Erich Fromm, Wilhelm Reich...
Mas já Marcuse, deitado no divã de Freud e com mais trunfos do que estes antigos filiados do PCP, conduzia as hostes da "nova esquerda", levando-a no final dos anos sessenta a descobrir potencialidades de que ela própria se espantaria. Nunca a contestação estudantil supôs chegar a Maio de 1968.
Mas só para virmos a ter, pontifical, António José Saraiva a escrever sermões da montanha contra o MFA, valeu a pena o combate nas barricadas de Paris contra os bonzos de Vincennes. "O último sociólogo enforcado nas tripas do último filósofo", oh! manes da contestação, onde isso vai!
Gozam todos, neste momento, de boa saúde, é claro, Saraiva incluído, e mais estruturalistas do que nunca na ressaca das pós-barricadas, dando razão aos eurocomunistas que acusam os marcusianos de pequeno-burgueses, e de terem conduzido alguns jovens a saídas místico-religiosas. Como se isto fosse mais cancerígeno do que defender petroquímicas, nuclear, gigantismos espaciais, etc!
Para um mundo assim "atomizado", eis que religar tudo a tudo (tarefa que era a da religião e que passou a ser a dos filósofos nas sociedades profanizadas), acaba por ser (até por semântica) sinónimo de yoga, religião ou... Ecologia.
"Religar tudo a tudo", velha aspiração desde que se perdeu a unidade primordial, enquanto aspiração nunca atingida, é o cancro inextirpável da sociedade ocidental
As eco-alternativas ou tímidas saídas para o "absurdo", o campo de concentração tecno-industrial (crescimento económico infinito) apresentam-se assim como um retrocesso e os "mass media", babados de gozo, cultivam até ao orgasmo este equívoco que lhes pagam para alimentar.
Tentar o salto qualitativo para fora da paranoia tecno-terrorista, que utopia, que salto mortal!

ESPÉCIE DE PRÉ-FABRICADO DO MUNDO TECNO-INDUSTRIAL
Mas que remédio senão saltar. Descobrir do "homem unidimensional", espécie de pré-fabricado do mundo tecno-industrial, dedicou-se Marcuse a radiografar na aparente liberdade das democracias ocidentais o que há nelas de ditadura e violência, de patologia repressiva.
Teoriza assim o "beco sem saída" que faz o fascínio e o perigo (político) da sua obra.
Entre dois totalitarismos, o "homem sanduíche" acabaria por se comer a si próprio, quando não o tivesse sido por um dos dois vorazes canibais: URSS e EUA.
Daí o aparente parentesco de Marcuse com correntes anarquizantes, última fase de apodrecimento das ideologias liberais quando não conquistam o poder...
A "imaginação no poder" tornou-se o dístico habitual nas paredes de Paris após o Maio de 1968. O professor aconselhava os alunos: "Sejam realistas, exijam o impossível", outra forma de propor outra boca para a sanduíche totalitária.
A crítica ao "pesadelo climatizado" da sociedade americana não o tornaria indesejável ao "american way of life", como aconteceu a Henry Miller.
Em troca dos benefícios prestados pelo esquerdismo que Marcuse incrementa, o professor da Universidade da Califórnia continuou a ser acarinhado pelo Establishment. De tal maneira que haviam de convidá-lo a escrever um relatório para a CIA.
O niilismo de Marcuse, assim comprovado, pode levar a cedências, traições e compadrios pouco recomendáveis.
"Se Deus não existe, tudo me é permitido"- diria um personagem de Dostoievsky.
A chatice é que naturalmente Deus existe mesmo... O que vem estragar os planos destes niilistas todos.

O QUE SERÁ MAIS CÍNICO?
O que será mais cínico: a filosofia de Marcuse ou uma multinacional da química?
O filósofo, no fundo, traduz em ideias uma constante ou situação que a multinacional domina pelo poder efectivo.
O que a multinacional hoje sabe melhor do que Marcuse sabia ontem é que a Utopia Tecnocrática matará a Terra; e que a utopia ecológica depende, rigorosa, obstinada e absolutamente de um milagre.
É nesse sentido, creio, que se fala de utopismo. A dialéctica transforma-se assim num contra-relógio entre os que defendem e os que massacram a Terra.
Árbitro: seria Deus se não o tivessem matado também.
Pelo que o dilema 1980 é claro: Se Deus não existe, o Homem está condenado por arrastamento, com a morte, breve, da Natureza.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas e com muita honra, foi publicado no semanário «Edição Especial», Lisboa, 5-8-1979 , onde o Fernando Dil fez o favor de lhe acolher as prosas
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