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Saturday, September 02, 2006

MARIALVISMO 1971

71-09-04-dl> = diário de um leitor distraído – publicado ac de 1971

MARIALVISMO DO "TEMPO ESCANDINAVO"

4/9/1971 - Bem pode o autor, em nota inicial, negar que o seu livro seja auto-biográfico. O protagonista de Tempo Escandinavo tem todas as características que assinalam o narrador de O Mundo dos Outros e o lírico de tantas poesias. Quer dizer : poderá, de facto, tratando-se de uma transposição literária, que nada disto que acontece a Raul tenha acontecido a José Gomes Ferreira.
Mas o principal não está nos acidentes e eventos mas na idiossincrasia da figura e essa repete, até na linguagem, no estilo, as características conhecidas de José Gomes Ferreira.
O escritor português, mesmo quando procura inserir-se em paisagens de países desenvolvidos, leva consigo as nostalgias do subdesenvolvimento: extasia-se perante uma mesa bem fornecida de viandas, aspira pela carne perfumada de mulher e recusa-se a morrer. O que nos versos de José Gomes Ferreira é tema corrente - o mito marialvista da supremacia ou coragem masculina e a busca incessante da mulher ideal -acontece em Tempo Escandinavo (página 34). Assim como o remorso que acompanha e autor, sempre que a miséria ou a desgraça, perto dele, contrastam com o seu conforto ou a sua segurança. O mundo dos "humilhados" é visto pelo autor da Imitação dos Dias e de Memória das Palavras, sempre com um despertar de consciência, logo ali expresso e confesso. Também a solidão, sempre acompanha como leit-motiv este Tempo Escandinavo (página 43).
Leia-se ainda:
"Na dança e na cama, quem manda é o homem." ( página 46)
"Ouve, velho Tolstoi: se fosse obrigado a morrer acompanhado, aqui, nesta paisagem transida de neve, em vez de um cocheiro inimigo, a cheirar mal, preferia um corpo de mulher, percebes? Forrado de prata fundente!” ( página 28).
Algum leitor ficou com dúvidas sobre a virilidade do autor? Ele preocupa-se em que não.
Corolário deste marialvismo é a inevitável obsessão da virgindade feminina que, segundo parece, também obceca os noruegueses e não só os eroticamente subdesenvolvidos: "Tenho uma irmã que também diz que o marido estava virgem quando se casou. Mas eu não acredito. As mulheres são muito gabarolas.”
Discutir as origens do amor e do ódio no subdesenvolvimento português e nas fomes várias que caracterizam a nossa história, seria contributo para a compreensão profunda de uma mitologia que não assume só em José Gomes Ferreira formulação romanesca mas em outros autores portugueses, contemporâneos e não. Trata-se de uma limitação que só uma conversão radical superaria e que, entre nós, apenas alguns, por golpe no abismo ou violenta auto-educação, conseguiram.
Aquilino Rlbeiro e Teixeira Gomes continuam a pesar, obstinadamente, nos costumes literários e, mesmo os que saíram das fronteiras, poucos foram além deles, na vivência do amor e do ódio tal como uma tradição tão claustral e freirática nos transmitiu e de que estamos impregnados até aos ossos. Sá Carneiro, em Paris, foi um dos mais trágicos herdeiros dessa ancestral escravidão e seu embaixador.
Sem ir falar dos versos portugueses e do lirismo que o Dr. Gaspar Simões diagnostica quando pode, nem de Sóror Mariana, sublinhe-se o que de tradição marialvista (forma predilecta de racismo moral, entre latinos) se pode captar por exemplo em Júlio Dantas.
Pois: isto tudo era só para dizer que o racismo tem formas implícitas e difusas que convém, de vez em quando, explicitar.
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(*) Publicado no semanário «Notícias da Amadora», 4/9/1971
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