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Friday, September 08, 2006

MELODRAMA 1971

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8/setembro/1971

A DOENÇA E A FUNÇÃO SÓCIO-ECONÓMICA DO MELODRAMA

[este é o modelo de texto híbrido ac, onde coexistem intuições de facto proféticas, fundamentais e correctas, confirmadas algumas através de vinte e um anos, com algumas ousadias pouco consistentes e onde a linguagem forte do calão perde força pela sua inaplacabilidade: este texto, como todos os híbridos, deverá ser fonte de retorno e consulta, porque de facto aborda uma questão de fundo que é também tabu: tratar-se-á de voltar à tese, que está correcta, mas com argumentos maios convincentes e exemplos concretos mais significativos; a luta de classes, sinónimo do que designava na altura abjecção -- penso que correctamente -- não deixou ainda de ser um quadro válido para interpretar a função social e económica do melodrama, onde a doença desempenha um papel primordial de chamamento ao terreno existencial; é ainda de lembrar o que, entretanto, Umberto Eco escreveu sobre a literatura de cordel, em termos tecnocráticos, livro que não trocava, sinceramente, pelo «naif» filosófico deste meu texto de 1971, repescado hoje, em 21 de Junho de 1991]

+ 7 PONTOS

8/Setembro/1971 - Quando, traiçoeira e de garras aduncas, a doença se abate sobre qualquer indefesa criaturinha das que compõem a mitologia romanesca de consumo -- é caso para desconfiar três vezes e pôr três pés atrás.
Que se passa?
Que pretende a sociedade de consumo -- de compra e venda -- com o súbito melodrama?
A que vem o sentimento no meio da guerra civil que é a luta de classes?
De que solícitas e pingonas ternuras, e porquê, se sente possuída a venal e abjecta histeria da abjecção?
Em que medida a doença vem contribuir, nessas histórias de amor e sacrifício, de orfandade e caridade, de meninos abandonados e mães abnegadas, para a tal histeria do consumo e como falsifica ela a realidade, já que o escopo de todo o romanesco comercial[??] é o de falsificar a realidade (e aviltar o homem), alienar o consumidor e transformar o espectador, lavando o cérebro( na barrela das boas e pias intenções) do passivo consumidor de todas as mitologias menos ternas, menos líricas, menos sentimentais e bem mais terra a terra, mais guerra a guerra?
Vários motivos, para já, se podem encontrar que explicam e justificam o romanesco melodramático. Porque o melodrama não é tão gratuito como parece e serve para levar mesmo muitas águas a muitos e vários moinhos.
1 - Se o cenário é rico, se ao fundo há uma baía de S. Francisco de águas azuis e por ali se respiram perfumes de jardins, se há mármores brancos e a criatura vive na maior opulência material, no maior esplendor, -- o mecanismo de consumo consegue, através da doença insidiosa e traiçoeira, um duplo e contraditório e conveniente efeito sobre a mente do consumidor/espectador: a inveja da opulência e, simultaneamente, a repulsa dessa situação de riqueza;
2 -- Se a personagem, vítima da horrível fatalidade, é bela, também se obtém idêntico efeito duplo, contraditório: a inveja da beleza que a doença irá corromper, minar, desfear até à miséria e à morte;
3 - Se a personagem continua a ser rica, bela, feliz e com a vida erótica em ordem (mas alguém há, nestas histórias, que não tenha a vida erótica em ordem?), a doença subitamente abatida sobre ela, desempenha ainda o papel de «escape», de «révanche» para o consumidor que não é belo nem tem a vida erótica em ordem: «toma lá que é para saberes. Lá porque és feliz, pensavas que nada de mal te acontecia, não?». E o consumidor sente-se, ele também, compensado das suas doenças (que não devem ser poucas)em particular, e dos seus infortúnios em geral;
4 -- À mitologia crua e sem panos quentes, há que opor, de vez em quando, e para não espantar a caça, a mitologia doce do sentimento, da piedade, do sofrimento resignado, da virtude compensada; há, inclusive, que demonstrar que afinal essa criatura burguesa também tem sentimentos, além de automóvel, casa, luxo, beleza, fortuna, criadagem, espelhos de parede, colunas dóricas, salões, recepções, banquetes. Há que humanizar a imagem do burguês e fazer da fortuna, da sorte, da bem aventurança burguesa uma imagem simultaneamente sedutora e repelente;
5 -- A doença no romanesco melodramático tem ainda a função de iludir por completo o consumidor: geralmente («Love Story», por exemplo!) ninguém sabe como e porquê e de onde vem a famigerada, terrível doença. Em certos casos, chega a afirmar-se que vem da Turquia. Em quase todos vem da fatalidade. O mecanismo do consumo dirigido impõe assim a ideia de fatalidade, de doença sem causa, quando todos sabem muito bem que, regra geral e em 80% dos casos, a doença vem do consumo: isto é, daquilo que o consumidor mete pela boca abaixo, com rótulos coloridos, latinhas cilíndricas, celofanes rebrilhantes, etc..
[[Claro que 107 médicos assinam um documento confirmando que há cólera em Barcelona, mas nenhum assina documento nenhum dizendo que, pior do que o cólera, há a peste entrando diariamente pelas nossa casas dentro, via supermercados ou televisão ou publicidade em geral, há o automóvel, há a «gadanha da morte ceifando vidas inocentes» -- como dizia o «Diário Popular» ou o «Actualidades» por ele -- há a própria medicina, a indústria médica liquidando neles alegremente, etc., etc..]]
6 -- Pois para tudo isto serve a tal mitologia romanesca do melodrama, com doenças a consumir belas e sedutoras criaturinhas, donas de todo o conforto, possuidoras de todos os adornos e símbolos do consumo («Os Olhos Verdes da Noite», de David Loweel Rich) mas tão traiçoeiramente «surpreendidas» pela traiçoeira doença;
7 -- É que, não esqueçamos, estabelecida subliminarmente no espírito do consumidor a certeza de que a doença surge sem causa -- um vírus caído do céu, vindo da Turquia ou emigrado dos países comunistas e desse miserável Terceiro Mundo onde grassam epidemias terríveis - fica campo aberto a outras indústrias e a outra subconsciente certeza do consumidor no sentido de consumir mais alguns dos venenos úteis, belos, progressistas, última maravilha da técnica, último grito da indústria, vindos das mesmas beneméritas indústrias.
Para já e sem sair da Indústria Médica, temos duas para onde fatal e benemeritamente o consumidor é empurrado, logo que atacado de terrível doença sem causa ou de causa desconhecida: a Cirurgia e a Farmácia.
Para já e para exemplo, deveremos ver que afinal a inocente mitologia das «Love Story», das «Junie Moon» ou dos «Olhos Verdes na Noite» conduz a objectivos menos inocentes: promover a indústria. E ainda há quem pergunte -- com o cérebro lavadinho e pronto a receber a medalha do consumidor supercondicionado -- para que serve o melodrama?
Então não se estará mesmo a ver para que serve?

AINDA O MELODRAMA UM TEXTO DE 1970?

O melodrama serve, em muitos casos, para que a burguesia anestesie a sua má consciência.
Serve para nos dizer que afinal a abastança também inclui coisas infelizes: raparigas que namoram e perdem os apaixonados (filme «A Carne da Minha Carne»); apaixonados que se dedicam ao alpinismo e lá ficam, um dia, na montanha; pais que sofrem do coração; filhas que são perseguidas por mães déspotas que as sorvem e absorvem; jovens que não têm um pulmão e que morrem, enfim, na flor da vida quando um amor, embora adúltero, as esperava para o melhor; um filho nos braços, às vezes, é também o que acontece a estas jovens de boas famílias, tementes a Deus. Quando viajam de barco, a 1ª classe é apetecível de conforto, os drinks correm no deck, a música espalha-se suavemente, mas há lágrimas ao luar e a um recanto clandestino do paquete.
Serve ainda o melodrama, tal como o cão de Pavlov, para unir «bons momentos» a belas paisagens de que interessa promover o andamento turístico (Grécia, no caso da «A Ânsia de Amar»). Os melhores beijos vêm, para o espectador muito excitado, associados a Minos, Creta, Delfos, ao Parténon e às águas que fazem boa digestão e às bebidas da região que criam leveza e humor.
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