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Saturday, September 09, 2006

CIÊNCIA 1972

1-2 - 72-09-09> ciência-1> os dossiês do silêncio - mein kampf

CIÊNCIAS HUMANAS - UMA BRECHA NO SISTEMA(*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», 9/9/1972 ]

[9/9/1972] - Óbvio é que a razão tem que ter razão. E se a ela foi dada a palavra, só ela tem a palavra. E o poder. Impossível, pois, dar a razão, a palavra, o saber ou poder ao que originalmente não tinha nem podia ter nada disso. Porque não tinha, era. Ao que originalmente era silêncio.
Daqui, da tentativa de dar voz ao silêncio, vem a frustração da faina utópica que se propõe o Poeta. Apesar de fracasses, de inevitáveis fracassos, as suas vozes - vozes do silêncio, vozes subterrâneas - tiveram contudo e pelo menos o mérito de mitigar abusos e prepotências da omnipotente, omnividente e omnisciente ordem racionalista, abusos uns de ordem teórica, outros de ordem técnica, prática e política.
Votadas ao fracasso, as tentativas de dar voz ao silêncio iriam servir, ao menos, ao Arqui-Agressor (assim chama Toynbee ao Ocidente) a justa má consciência e o indispensável remorso. Os que falam do silêncio não querem nenhuma cátedra, nenhuma academia, nenhum prémio nobel, querem apenas dizer que, no impecável mundo dos racionalistas, nem tudo são rosas e virtudes.
As pesquisas subterrâneas destes homens subterrâneos obrigaram os homens da superfície (homens superficiais) a rever as suas intangíveis posições, os seus dogmas, as suas leis. Por escrúpulos de honra profissional, até, a ordem racionalista não poderia manter por mais tempo esta deliberada ignorância ou hostilidade. E resolveu-se a entrar. Com armas e bagagens, microscópios e telescópios, monóculos e binóculos, aí vemos a ciência no campo do inimigo – o mito; sob a capa de «ciências culturais» ou «ciências humanas», um batalhão de antropologistas, etnólogos, psicólogos, sociólogos, iniciaram a devassa. Concedem, condescendem em estudar o figadal inimigo.
Em nome da ciência combate-se o mito, mas apenas certos mitos que importa combater, para que a ciência e os seus próprios mitos não sejam incomodados. Fixa-se algo que tradicionalmente vieram entendendo e desentendendo por mito e omite-se o que modernamente e mais latamente se pode entender por tal.
Então, com armas e bagagens, a ciência encarrega alguns dos seus funcionários, especializados em arqueologia, de irem estudar o mito - o mito que interessa estudar do ponto de vista da ciência. E eis que se lançam os investigadores, de monóculos e binóculos em riste, a estudar a velha fera.
Será que, com isto, a ciência quer ceder terreno ao seu inimigo?
Claro que não: o que a ciência quer é acabar de desacreditar o tal tipo ou espécie de mito, para acreditar e fazer acreditar os seus próprios. Ela, que expulsara dos seus domínios o mito, a magia, a mística e a metafísica, resolve agora estudá-los, surgindo essas coisas que se chamam etnologia, antropologia, psicologia , etc. (que em logias não é ela pobre nem manca, logias que são outros tantos santinhos para adorar).
Enquanto andou por onde podia e devia andar, tudo se passou pelo melhor. Mas é que agora a ciência, querendo entrar naquilo que tradicionalmente combateu - o mito -, parece não estar muito apta nem habilitada, e parece não ter grande «moral» para o fazer. O balanço final da empresa revela que a ciência, ao querer abordar o mito segundo os seus métodos muito particulares, foi rechaçada e viu-se em palpos de aranha. Exorbitando dos domínios que por direito lhe pertenciam, invadindo os domínios da criação, do humano concreto, do livre arbítrio, estendendo os princípios deterministas, da identidade e da casualidade muito para lá do positivo, do razoável e do racional, constituindo o especificamente humano, a liberdade, em matéria de ciência positiva, acabando por aceitar como «objecto da filosofia e até como «objecto da ciência» aquilo que a positiva lei dos três estados de lá expulsara: o «estado teológico» e o «estado metafísico» redundou num anedótico fracasso.
Dentro da própria ordem racionalista é, apesar de tudo, justo reconhecer os «traidores», os que, embora de confiança e gratos aos quadros da Burocracia, se vão atrevendo, medrosamente, prudentemente, intermitentemente, a pôr dúvidas à omnipotência do saber.
A coisa, geralmente, começa a ceder pelos chamados filósofos da história; depois pelos psicologistas; depois pelos sociólogos e antropólogos. Uns e outros, uns mais, outros menos, acabam por ir reconhecendo a mitologia da tal cultura sem mitos, as contradições da tal cultura baseada no princípio irrevogável da não contradição, as fraquezas do tal omnipotente Poder do Saber.
Mas - reconheça-se também - só tarde e a más horas o fazem. E é esse atraso no tempo, esse «ganhar tempo», esse colocar do problema no futuro, sempre no futuro, que permite aos donos da cultura oficial terem sempre razão. Jogando com o futuro, com uma ideia ou pseudo-ideia de futuro, jogam e ganham.
Directa ou indirectamente, o cientista por muito isento e o filósofo por muito puro que se pretendam, acabam por colaborar, através do técnico, com o político e o homem de acção em geral.
Em suma: o Saber acaba sempre por aderir ao Poder e ser, nas mãos deste instrumento, pau para todo o serviço.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», 9/9/1972
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