BOOK'S CAT

*** MAGIC LIBRARY - THE BOOKS OF MY LIFE - THE LIFE OF MY BOOKS *** BIBLIOTECA DO GATO - OS LIVROS DA MINHA VIDA - A VIDA DOS MEUS LIVROS

Wednesday, September 13, 2006

IONESCO 1990

1-3 - 90-09-13-ls> leituras selectas do ac - ionesco>

24-8-1990

IONESCO - O MORALISTA IMORAL(**)

[(**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», «Leituras de Verão», 13-9-1990

Memórias de uma irreconciliação irremediável de Eugénio Ionesco com a existência, « A Busca Intermitente»(*)é um livro de impressionante e absorvente leitura.
Por estranho que pareça no autor do teatro do absurdo e da crueldade, um livro apaixonante, o autoretrato a traço carregado daquele que tem sido um dos dramaturgos modernos mais representados, mais discutidos, mais polémicos mas, paradoxalmente, também, um dos mais esquecidos.
O exílio da Roménia sua pátria, desde 1938, por motivos claramente políticos, não deixou de contribuir para esse ambíguo comportamento do meio literário e teatral relativamente à sua personalidade, erigida muitas vezes em bandeira para um e outro lado da barricada estalinista.
Quando alguém fala de si mesmo nem sempre fala do seu umbigo mas, como faz Ionesco, do que toca e sensibiliza muitas outras pessoas que «trabalham no mesmo comprimento de onda», pertencem à mesma família de sensibilidade, ao mesmo tipo psicológico...
A visão tremendista e «pânica» de Ionesco, tantas vezes expressa nas suas peças de teatro como «O Rinoceronte», «A Cantora Careca», «As Cadeiras» ou «Como se desembaraçar dele» (o texto dele que alguns preferem)aparece nestas confissões dominado por uma sinceridade avassaladora, torna-se companheiro também dos nosso dias e a sua voz uma voz familiar: «Dizer que há muito pouco tempo, há dezasseis meses, era ainda jovem e que caí psicologica e fisicamente na velhice!» exclama ele, acrescentando palavras ainda mais amargas para falar da companheira que aceita, ao seu lado, resignada, o destino de envelhecer: «Também a minha mulher envelheceu bruscamente, ao mesmo tempo que eu(...) Mas ela tem a generosidade que eu não tenho, aceita envelhecer, não se sente como eu infeliz por vivermos como velhos e entre velhos, como vivemos há cinco dias, cinco dias que me traumatizaram, que foram a revelação de uma odiosa, horrorosa, implacável verdade.
É esta «implacável verdade», sempre presente nas suas peças teatrais - sem quimeras, sem ilusões ideológicas, místicas ou religiosas - é esta lucidez radiográfica que transforma agora o lado menos teatral e mais íntimo da sua mensagem - o dia a dia de uma vida que se esgota - no espectáculo tragicómico por excelência. Ler «A Busca Intermitente» é assistir a esse patético espectáculo sem barreiras...
Com este seu livro de confissões e desabafos , dos mais cruéis que se têm escrito sobre o irrisório da vida, Ionesco é agora o único Actor em cena representando o seu próprio papel: o da sua própria vida, para a qual busca um sentido sem, evidentemente, jamais o ter encontrado.
Ainda uma citação das muitas que fazem «arder» estas páginas inesquecíveis: «Não sou tão bom como devia. Não sou bom. Não sou bom nem mau. O que eu sou é tímido, medricas. Sou vaidoso. Sei que sou vaidoso. Nem sequer soube ser moral... Moralista, sim, às vezes, um imoral moralista. Quis pedir perdão a toda a gente, às pessoas mais chegadas, ao mundo inteiro.»
Se a crítica científica, por um azar dos demónios, algum dia viesse a ter razão, textos e livros como este de Ionesco estariam proibidos de circular. Lagarto, lagarto. A arte bem pouca coisa é quando nos surge, como neste livro, a humanidade de um homem crucificado nas suas próprias confissões.
---------
(*) «A Busca Intermitente», de Eugénio Ionesco, Ed. Difel

(**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», «Leituras de Verão», 13-9-1990
***