O. FALLACI 1970
1-2 - fallaci-1-ls> domingo, 22 de Dezembro de 2002-scan
UM SALTO NO VAZIO(*)
«Os astronautas não são mais do que gladiadores da era espacial e como gladiadores são mandados para a morte».
«Quem se adapta, não morre».
[«Notícias da Beira» (Moçambique), 9-9-1970] - A conquista da Lua também tem duas faces: uma iluminada, onde apontam os caminhos da esperança; outra obscura, de que pouco ou nada se sabe mas que traz os cientistas inquietos.
Oriana Fallaci, que tem vivido nos pontos mais quentes e difíceis da globo, onde a guerra é ainda a forma bárbara (mas inevitável?) pela qual se procuram resolver diferendos e conflitos, assistiu a todas as fases do programa Apollo e aos principais lançamentos que tiveram lugar em 1968 e 1969.
Dessa experiência escreveu um livro (1). Reunindo as reportagens que publicou em muitos dos principais jornais do mundo, e acrescentando textos inéditos, Oriana compôs mais uma obra fascinante, como aliás todas as que nascem da sua sensibilidade, da sua inteligência, da sua. coragem.
Ninguém como ela estaria tão bem preparada para compreender as «duas faces da Lua», os prós e os contras de uma escalada que impele os homens para fora do planeta mas que poderá, também, em contrapartida fazê-los recuar anos e séculos na própria terra onde habitam.
Eis como Oriana Fallaci procura justificar a sua entusiástica adesão ao progresso tecnológico:
«Disse-te que contava como certa, a história de que o homem provinha do mar e, no entanto, o mar era para ele uma prisão donde fugir não passava, de uma loucura. Lentamente, pacientemente, dolorosamente saiu da água. Mas respirava. As suas brânquias suplicavam água, água, água e ele morria a pouco e pouco, a terra era um inferno, que o afogava, que o oprimia, como uma ventosa; mas lentamente, pacientemente, dolorosamente, de novo tentando, de novo morrendo por milhões e milhões de anos conseguiu vencer, dominar o ar. Desenvolveu pulmões e respirou sem dificuldade. Desenvolveu olhos e a terra tornou-se viva. Criou membros e mexeu-se. Criou uma espinha. dorsal e levantou-se. Criou mãos e habituou-se a acariciar. E um dia descobriu que também podia pensar. E pensando descobriu que era um homem».
Acredita. ela que uma metamorfose será novamente possível e que ao homem irá nascer outro «pulmão» que lhe permita respirar em galáxias diferentes.
Há quem não acredite, porém, que seja assim, porque a metamorfose esperada, desta vez, é de natureza mais subtil: espera-se que o homem mude o seu sistema de valores, a sua axiologia e, acima de tudo, a sua ética. Sem progresso moral concomitante, a tecnologia mais avançada é apenas a mais avançada barbárie, desastre e catástrofe.
Eis as duas faces do acontecimento: ir à Lua só significará progresso quando, no infinito da sua realidade, o homem cometer idêntica proeza. Espera-se aí uma revolução tão importante ou mais importante do que todas as revoluções passadas. A grande escalada será dentro da própria espécie e, nesta, dentro do próprio indivíduo.
De contrário, o pai de Oriana Fallaci, a quem ela dedica o livro e com quem, através de 500 páginas dialoga, terá razão quando exclama:
«O futuro que vocês sonham é um tremendo salto no vazio».
Mas Oriana reage e contra-argumenta: «Quem se adapta, não morre»,
Sintomático do desfasamento que preocupa e dilacera a autora, é a declaração do dr. Celentano, um representante trágico da mentalidade retrospectivista não só norte-americana mas internacional, mentalidade que entende o progresso em termos meramente tecnológicos.
«Nunca se podem prever - diz ele a Oriana Fallaci - as maravilhas que nascem de uma empresa científica como esta. Em Medicina, muitas descobertas foram feitas por acaso, não me admirava que daqui a vinte anos a Lua fosse um grande sanatório para os doentes cardíacos. Pensar só no alivio que seria para eles a gravidade reduzida a um sexto».
A Lua como sanatório para doentes cardíacos - eis a grande aberração, eis uma maneira completamente reaccionária de imaginar o futuro.
Se daqui a vinte anos ainda houver doentes cardíacos, poderemos afirmar que o Progresso é um mito e um malogro. Prospectivo ou progressivo será que já não existam doentes cardíacos. Será re-pensar e re-fazer tudo, outra vez, para que não haja mais doentes. (cardíacos, ou da futebol).
O livro de Oriana Fallaci conduz-se nesta segunda via, inspira-se desta outra mentalidade que entende não fazer da. Lua um sanatório que prolongue os da terra e suas mazelas, mas o planeta utópico que simbolize as realizações de tudo o que de melhor o homem sonhou e quis.
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Oriana Fallaci, «Se o Sol Morrer», Trad. Elga Ferreira, Edições Palirex, Lisboa, 1970.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «Notícias da Beira» (Moçambique), 9-9-1970
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UM SALTO NO VAZIO(*)
«Os astronautas não são mais do que gladiadores da era espacial e como gladiadores são mandados para a morte».
«Quem se adapta, não morre».
[«Notícias da Beira» (Moçambique), 9-9-1970] - A conquista da Lua também tem duas faces: uma iluminada, onde apontam os caminhos da esperança; outra obscura, de que pouco ou nada se sabe mas que traz os cientistas inquietos.
Oriana Fallaci, que tem vivido nos pontos mais quentes e difíceis da globo, onde a guerra é ainda a forma bárbara (mas inevitável?) pela qual se procuram resolver diferendos e conflitos, assistiu a todas as fases do programa Apollo e aos principais lançamentos que tiveram lugar em 1968 e 1969.
Dessa experiência escreveu um livro (1). Reunindo as reportagens que publicou em muitos dos principais jornais do mundo, e acrescentando textos inéditos, Oriana compôs mais uma obra fascinante, como aliás todas as que nascem da sua sensibilidade, da sua inteligência, da sua. coragem.
Ninguém como ela estaria tão bem preparada para compreender as «duas faces da Lua», os prós e os contras de uma escalada que impele os homens para fora do planeta mas que poderá, também, em contrapartida fazê-los recuar anos e séculos na própria terra onde habitam.
Eis como Oriana Fallaci procura justificar a sua entusiástica adesão ao progresso tecnológico:
«Disse-te que contava como certa, a história de que o homem provinha do mar e, no entanto, o mar era para ele uma prisão donde fugir não passava, de uma loucura. Lentamente, pacientemente, dolorosamente saiu da água. Mas respirava. As suas brânquias suplicavam água, água, água e ele morria a pouco e pouco, a terra era um inferno, que o afogava, que o oprimia, como uma ventosa; mas lentamente, pacientemente, dolorosamente, de novo tentando, de novo morrendo por milhões e milhões de anos conseguiu vencer, dominar o ar. Desenvolveu pulmões e respirou sem dificuldade. Desenvolveu olhos e a terra tornou-se viva. Criou membros e mexeu-se. Criou uma espinha. dorsal e levantou-se. Criou mãos e habituou-se a acariciar. E um dia descobriu que também podia pensar. E pensando descobriu que era um homem».
Acredita. ela que uma metamorfose será novamente possível e que ao homem irá nascer outro «pulmão» que lhe permita respirar em galáxias diferentes.
Há quem não acredite, porém, que seja assim, porque a metamorfose esperada, desta vez, é de natureza mais subtil: espera-se que o homem mude o seu sistema de valores, a sua axiologia e, acima de tudo, a sua ética. Sem progresso moral concomitante, a tecnologia mais avançada é apenas a mais avançada barbárie, desastre e catástrofe.
Eis as duas faces do acontecimento: ir à Lua só significará progresso quando, no infinito da sua realidade, o homem cometer idêntica proeza. Espera-se aí uma revolução tão importante ou mais importante do que todas as revoluções passadas. A grande escalada será dentro da própria espécie e, nesta, dentro do próprio indivíduo.
De contrário, o pai de Oriana Fallaci, a quem ela dedica o livro e com quem, através de 500 páginas dialoga, terá razão quando exclama:
«O futuro que vocês sonham é um tremendo salto no vazio».
Mas Oriana reage e contra-argumenta: «Quem se adapta, não morre»,
Sintomático do desfasamento que preocupa e dilacera a autora, é a declaração do dr. Celentano, um representante trágico da mentalidade retrospectivista não só norte-americana mas internacional, mentalidade que entende o progresso em termos meramente tecnológicos.
«Nunca se podem prever - diz ele a Oriana Fallaci - as maravilhas que nascem de uma empresa científica como esta. Em Medicina, muitas descobertas foram feitas por acaso, não me admirava que daqui a vinte anos a Lua fosse um grande sanatório para os doentes cardíacos. Pensar só no alivio que seria para eles a gravidade reduzida a um sexto».
A Lua como sanatório para doentes cardíacos - eis a grande aberração, eis uma maneira completamente reaccionária de imaginar o futuro.
Se daqui a vinte anos ainda houver doentes cardíacos, poderemos afirmar que o Progresso é um mito e um malogro. Prospectivo ou progressivo será que já não existam doentes cardíacos. Será re-pensar e re-fazer tudo, outra vez, para que não haja mais doentes. (cardíacos, ou da futebol).
O livro de Oriana Fallaci conduz-se nesta segunda via, inspira-se desta outra mentalidade que entende não fazer da. Lua um sanatório que prolongue os da terra e suas mazelas, mas o planeta utópico que simbolize as realizações de tudo o que de melhor o homem sonhou e quis.
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Oriana Fallaci, «Se o Sol Morrer», Trad. Elga Ferreira, Edições Palirex, Lisboa, 1970.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «Notícias da Beira» (Moçambique), 9-9-1970
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