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Sunday, November 13, 2005

SIMONE WEIL: OS ALIMENTOS DA ALMA



weil-1-ls=leituras selectas

ALIMENTOS DA ALMA
E O RESTO É O RESTO - (*)

Quase tão fecunda e perigosa como esta ideia-chave do «alimento-em-sentido-lato», é a do trabalho como energia.
[«Crónica do Planeta Terra», «A Capital», em 15-11-1986] - Se os alimentos do corpo são já uma evidência admitida por todos, ninguém antes de Simone Weil(1) , com o seu livro L'Enracinement (1949) descreveu no Ocidente, com tanta intuição e rigor, os alimentos da alma.

A ordem, a liberdade, a obediência, a responsabilidade, a igualdade, a hierarquia, a honra, o castigo, a liberdade de opinião, a segurança, o risco, a propriedade, a propriedade colectiva e a verdade são apontadas pela escritora Simone Weil como «necessidades da alma», os seus verdadeiros alimentos e nutrientes.

É de sublinhar que a mesma generalização da ideia «alimento», para lá da sua acepção estrita de «alimento fisicalizado» esteve também na base de uma intuição fundamental dos que elaboram um sistema coerente de ecologia humana.

Tal como a tese de Simone Weil ilustra, esta súbita amplitude da palavra alimento vem dar sentido, plenitude e realismo às filosofias do homem.

Ao pensar que alimento não é apenas pão, carne, hortaliças, peixe, ovos, leite, mas é também o ar que respiramos, o sono que dormimos, o ambiente de ciclos, ritmos e ondas onde mergulhamos, é um homem situado e condicionado por factores concretos que estudamos.

Pela primeira vez, na fantasmagoria do pensamento ocidental, se trata de encarar o homem concreto, e não o homem metafísico de todas as ciências e filosofias científicas.

A importância nutritiva da respiração vem, aliás, de culturas antiquíssimas, aquelas em que o yoga, por exemplo, desempenha função primordial no equilíbrio social e no desenvolvimento humano da colectividade.

Levar mais longe essa ideia dos alimentos que nutrem o homem, considerando também, como faz Simone Weil, a liberdade, a obediência, o risco, o castigo, a honra e a segurança, alimentos necessários e indispensáveis, é dotar de uma consistência concreta real, conceitos até agora abstractos e esclerosados.

Recorde-se que a filosofia taoísta em que se fundamenta a arte sublime da acupunctura, refere e analisa longamente a filosofia da alma ou as «emoções dos órgãos».

Alarga-se a noção de alimento e logo deixa de haver fronteira nítida entre o psíquico e o somático, tal como não há separação (mas complementaridade) entre esses dois mundos na concepção taoísta de bioenergética.

Por isso se sublinhou, ao longa dos anos, na «frente ecológica», o realismo de uma concepção radical e particular de ecologia. Realismo ecológico lhe chamámos, para o distinguir de quantos aproveitamentos e eco-oportunismos se aproveitaram da palavra para a empalmar e travestir.

Ao classificar, materialisticamente, de alimentos o que uma concepção dita espiritualista é costume meter no saco chamado «espírito» - liberdade, responsabilidade, verdade, segurança, honra, igualdade, etc - não se adopta uma concepção materialista mas também não se cai no engodo, na esparrela espiritualista.

É no meio termo, na superação destes contrários complementares, que poderemos falar em dialéctica «yin-yang», em bioenergética chinesa ou em... realismo ecologista (com vossa licença).

MUDAR A SOCIEDADE, MUDANDO O ALIMENTO

Se do organismo humano individual extrapolarmos para a sociedade, a mesma noção amplificada de saúde e doença pode iluminar a análise que se fizer dos chamados fenómenos sociais.

Sublinhe-se como a «metáfora» da «doença», para interpretar certos fenómenos sociais – poluição, pobreza, fome, toxicodependências, etc - se mostra particularmente adequada

Em vez da análise que tudo separa para complicar, esta noção unificada que os relacionamentos ecológicos ou ambientais vão permitindo, parece-me que explica sem complicar. E abre campos claros de compreensão ao conhecimento.

Se e sociedade está doente e a doença é Intoxicação, talvez a terapêutica eco-política possa ser a desintoxicação por alimentos adequados ao corpo e à alma.

Não deixe de se notar, porém, como os conceitos relativos à intoxicação e aos hábitos alimentares intoxicantes são incómodos e provocam uma síndroma de agitação nas estruturas da classe dirigente.

Eles pressentem que na mudança de hábitos alimentares em sentido estrito está o princípio da mudança nos hábitos alimentares em sentido lato, o que, em boa verdade, significaria a subversão da ordem estabelecida e das suas hierarquias tóxicas e intoxicantes com bastante proveio e lucros anuais.

Na mudança do «alimento» está e mudança das sociedades.

Será por isso que uma «simples» alteração desses hábitos suscita tantas ondas, agitação, medo e nervosismo?

Quase tão fecunda e perigosa como esta ideia-chave do «alimento-em-sentido-lato», é a do trabalho como energia.

Tentei dizê-lo num ensaio que permanece rigorosamente inédito por vontade do meu subconsciente, único censor do que escrevo. Trabalho é o nome que se dá, em sociedade de escravos, à bioenergia. No dia em que cada um souber administrar a sua própria bioenergia (técnicas simples apropriadas) o sistema que vive de ir matando os ecossistemas afundava-se.

Decorrentes desta «ideia de fundo». podemos apontar outros temas que têm sido tratados nas edições «Frente Ecológica» ao longo dos anos, causalidade e sintomatologia, imunidade e defesas naturais, etc, etc.

TOXICOLOGIA ALARGADA

Será Ecologia Humana sinónimo de Toxicologia Alargada? Levado o conceito de toxicose até às últimas consequências, não poderá toda a ecologia humana considerar-se um caso alargado de Toxicologia?

Toxicóticos somos nós todos e o facto de haver graus de zero a infinito na escala da toxicodependência, não autoriza ninguém - polícia, autoridade política ou médica - a segregar os casos mais graves face aos considerados mais benignos.

Uma análise desapaixonada das situações estabelece que o fenómeno de toxicomania é social, endémico, estrutural mesmo a uma determinada ordem (ou desordem) social e dela emana como subproduto, independentemente das vítimas que individualmente vá fazendo.



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(*) Este texto de Afonso Cautela, que hoje censuraria, foi publicado com este título na «Crónica do Planeta Terra», «A Capital», em 15-11-1986

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