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Monday, December 19, 2005

CRÍTICA 72

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ANDANÇAS DO ESCRIBA EM 1972 (*)

(*) Este longo, chato e repetitivo texto, ad hominem até dizer baste, terá ficado inédito na melhor da hipóteses ou, na pior, terá sido publicado parcialmente algures, quiçá em «O Século Ilustrado», onde, nesse ano, espraiava a minha mania crítica (penso eu de que...)

20-12-1972

Enquanto o crítico, diariamente (ou pouco menos) oferece a cara a quem lhe queira bater, assina com as letras todas do baptismo, alguns colegas do mesmo oficio enveredam por via diversa. Barricando-se no anonimato, que nem sequer é modéstia mas fuga às responsabilidades, acintosamente se referem às opiniões de Fulano e Beltrano.
Podem cifrar-se neste choque - responsabilidade contra irresponsabilidade, crítica assinada contra ataque anónimo, qualidade contra marketing, opinião independente contra claque de grupo, - os principais pontos de fricção a registar neste ano crítico de 1972 da era já cristã.
Desculpe o leitor que empregue aqui a primeira pessoa do singular mas um balanço do ano é a única vez em 365 dias que o Escriba tem direito a falar de si, quer dizer: a explicar-se (não a desculpar-se), a falar um pouco das suas mais profundas intenções, a informar dos seus propósitos e a confessar que anda nisto apenas para tentar servi-lo, leitor.
Precisamente por causa do anonimato e dos ataques que se escudam na sombra protectora, teve o Escriba de mandar carta ao suplemento de um vespertino democrático (mas são todos! ...) onde ele, Escriba, e mais alguns nomes portugueses, sistematicamente têm vindo a ser registados com acinte que nem chega a ter piada e muito menos razão.
Aliás, bastava a piada para me calar. Mas assim, não: como dizia o poeta brasileiro Mário de Andrade, perdoo tudo menos a burrice e a falta de espírito, de humor, de verve. Isto é no fundo o que unicamente chateia.
Enquanto o crítico Lauro António é demandado porque, no lícito exercício da crítica, não chamou génio a um produtor de documentários publicitários, um vespertino democrático (mas são todos! . . .) , através de um suplemento que se diz de artes e letras, ataca-o, ainda por cima por um texto que o Lauro não escreveu.
Cito este episódio num balanço pessoal, porque o vivi como se meu fosse. Só quem não anda nisto ignora os equívocos a que um texto impresso está sujeito e como foge totalmente ao controle de quem o escreveu.
Com a febre altíssima que atacou, de repente, os off-set, cometem-se cada vez mais gralhas e empastelamentos do material. escrito. Não se passa um dia, não sai uma crónica, que as gralhas não deturpem abundantemente a matriz e, consequentemente, a opinião emitida.
Ora assinar e responsabilizar-se o Escriba, com o nome do baptismo, pelas próprias asneiras, é indispensável: cada um que responda pelas gafes. Responsabilizar-se pelas que lhe fazem dizer, eis o que considero o flagelo número 1 caído sobre a função crítica neste ano.
No episódio que ia contando, chamou-se à pedra um crítico e vai-se a ver era outro que tinha escrito o texto mas a paginação trocara nomes. Pergunto: destes e de outros prejuízos ao seu bom nome, quem indemniza o crítico?
O episódio dá a medida do perfeito temor vivido quotidianamente por quem deseje falar clarinho ao leitor, para quem se esfanica todo com a sintaxe, para quem se esforça até à pontada nas costas para não asnear muito além do lícito.
O crítico não teme assinar opinião, doa a quem doer e der o Y que der. Não pode é pagar pelos desastres de paginação e arredores. Uma tecnologia dos 'mass media' cada vez mais avançada, parece afinal resultar num agravamento de obscurantismos. Se este balanço pode servir de alguma coisa, que sirva para pedir desculpa ao leitor de todos os lapsos involuntários, mas principalmente alertá-lo para os lapsos impróprios, quer dizer, não próprios.
E a quantas gafes está sujeito, sem dúvida, o trabalho de escrever sobre filmes, com estreias às onze da noite, com intervalos de légua, com complementos publicitários cobrindo os primeiros três quartos de hora. Todos querem pisar e fritar o crítico, por ofensas ao brio. Mas quem indemniza o crítico do tempo que lhe queimam: com a cerimónia dos dois intervalos? Sem a possibilidade civilizada das sessões contínuas? Com as estreias à noite (em vez de estreias à tarde), com os complementos publicitários e, quase sempre, com fitas que nem ao Menino Jesus nas palhinhas interessam? Quem indemniza disso tudo o crítico, que não fez mal nenhum para ser assim condenado a trabalhos forçados?
Afinal, estoicamente, cá andamos nisto, convencidos de que estamos a praticar um acto cívico, um lindo dever. O dever da verdade. Só. Apenas.
Vai daí, também, depois de muitas e muitas semanas colaborando com devoção cívica num semanário muito democrático (mas são todos!) oriundo da Amadora, vai daí entra no semanário um economista candidato a jornalista e enquanto não me põe 'knock out' não descansou. Suponho. Porque o ataque, desferido cívica e democraticamente à traição, era, civicamente, anónimo. Também.
Assim vão os órgãos ditos independentes e ditos de província.

GAFE, CLARO

Independentes, não muito. De província, cada vez mais e quantos mais economistas aspirarem a escritores. Dá fiasco. Já se pensou o que era o Escriba a querer ser doutor em Economia e Finanças? Gafe, claro.
A nova vaga tecnocrata age assim. Enquanto andam à rasca de imaginação e de leitores, esbugalham a imaginação do Escriba até ao tutano. Depois de os leitores acorrerem em cardume, instalam-se eles a gozar o êxito. E o leitor, como não sabe, continua comendo gato por lebre.
No que respeita ao ataque anónimo que este ano grassou talvez porque entrasse em vigor uma lei que responsabiliza as pessoas pela sua própria opinião assinada , o Escriba fica totalmente sujeito às conhecidas arbitrariedades do Reino.
A propósito dos vários artigos de entusiasmo e louvor que dediquei ao filme Pedro Só, de Alfredo Tropa, por duas vezes o Diário de Lisboa, no suplemento dito literário, passou ao ataque anónimo.
Da primeira vez, tomei uma aspirina para acalmar e fiz por esquecer. Da segunda, sem me abrigar ao abrigo de nada, escrevi perguntando afinal que artes eram estas e onde estava a moralidade e o descoco das pessoas que levaram tanto tempo a pedir liberdade de Imprensa para agora se aproveitarem dela a calar a resposta daquele que anonimamente atacaram. Moita carrasco.
Soberanamente ignorou-se por ali a carta explicativa, porque se sabe que o Escriba não tem troco de cinco para mandar cantar um cego quanto mais para contratar um caríssimo advogado que lhe advogue a causa. E como sabem que o Escriba é pobre, a lei passa a letra morta e os 'mass media' atacam primeiro no conforto do anonimato para depois estrangular a defesa daquele que atacaram.
Quando o caso dá escândalo visível e adregam de lhe publicar a epístola de réplica, há sempre meios de a desfigurar, bastamente usados como é de calcular. Empastelamentos, gralhas, virgulações anómalas para que se diga que o Escriba é analfabeto.
Ora o Escriba não é analfabeto. E o ódio maior que lhe movem é exactamente porque ele escreve claro e mija direito. A única manei ra de os democráticos 'mass media' o neutralizarem é estropiando. Aprendido do marquês de Pombal e dos jesuítas o processo, ele faz hoje alta escola nos hábitos ditos polémicos de um: terreno onde precisamente a polémica deixou de existir porque só existe a pura arbitrariedade desses 'mass media'.
De um homem livre nunca se sabe o que pode vir: se bom tempo, se bom passamento. Um homem livre é a peste para todos os órgãos bem pensantes da lusa intelligentzia, que cita António Sérgio e sistematicamente nega o seu espírito, a sua pedagogia, o seu exemplo, a sua isenção e a sua coragem de franco-atirador.
Na sequência das melhores épocas absolutistas da nossa história, tudo fazem os mini-confrades para ver se abafam aqueles cujo patriotismo é a verdade e o amor à verdade. Porque a verdade não serve à sua óbvia e arrasadora mediocridade.
Outra das alegrias que o Escriba vive na faina de ensinar às almas a amar o Belo, é aviar a prosa e o espaço não deixar. Há sempre, em Lisboa, um problema de estacionamento, de espaço vital, de congestionado buraco para albergar a prosa do Escriba. Tudo tem cabimento, da rótula do Eusébio ao colo garço da Miss Beleza, garota endiabrada que se faz fotografar nas posições clássicas, tudo, do 'fait divers' às zaragatas da ONU tem assento, mas a prosa do Escriba vai sempre para a cauda da bicha e regra geral borda fora.
Quando chega ao postigo, está a lotação esgotada.. Congestionamento na capital. Grave problema de trânsito. Desânimo no peito rijo do cruzado da crítica, já desacostumado da protectora armadura que o deveria ainda cingir, por estas e outras. O espaço quando há é para todos, menos para ele que, além de obrar sempre clarinho, e a prosa lhe surdir depois uma cerrada, opaca massa nada cinzenta de necedades (ia jurar que me gralham a palavra necedade pela 20ª vez em 15 anos) tem ainda a favor destas e que doutras. 70% do entusiasmo fica no tinteiro, no cesto, no granel.
Não se atina, portanto, como ainda pode ser tão indesejada uma, actividade que beneficia, desde logo, destes 'handicaps' todos de base. Luta-se pela justiça e só nos dão desgostes.
Que amargura é, amigo António Sérgio, simultaneamente querer amar a pátria e as ideias, ou julgar que se deve servi-la com elas. Mas as ideias são a única coisa que nos fica. - e alguma alegria que é a do exercício da imaginação - depois de nos tirarem tudo.
Nunca a minha filha será jornalista. Além de perigoso, o oficio de Escriba está pela hora da morte e é do mais ingrato que há. Toda a gente o emenda. Todos se sentem escritores insignes a emendar-lhe a virgulação. Depois (claro) sai bota, e é o Escriba. que assina a bota. Depois o nosso director lê o que o Escriba escreveu e diz que o Escriba escreve 'munta mal'. Sistematicamente o Escriba paga as favas todas, de todos quantos piedosamente colaboram na confecção da sua piedosa prosa.

ESTE 1972

Feliz foi, com certeza, este 1972 que tantos e tão bons frutos deu no campo das actividades cinematográficas e para-cinematográficas. Pela primeira vez na história de Portugal, um crítico de cinema. foi processado e o julgamento, à hora a que escrevo, decorre sem se saber ainda a sentença. Conforme ela for, assim deveremos interpretar dilematicamente o futuro do cinema entre nós. De duas, uma: ou como actividade do foro cultural e a que a crítica presta portanto um contributo de qualificação imprescindível; ou como simples dependência do comércio publicitário.
Joga-se nesse importante incidente de percurso uma das faces que o cinema português poderá fazer valer de futuro. De duas, uma: ou a gente ficamos só com documentários folclóricos para apresentar nos festivais do estrangeiro; ou teremos, como qualquer outro País independente, nossos criadores da 7ª arte, autores, gente responsável por um trabalho criador e não apenas fabricantes de 'spots' de propaganda. É tempo de escolher e de saber que à crítica incumbe o dever de fazer essa destrinça. Se não se quer a vitória da qualidade, então acho melhor meter os críticos todos na panela do Pero Coelho, atarrachar bem e pôr ao lume. Acho melhor. Andarmos aqui a fingir que queremos e depois não queremos, para quê?
Feliz foi o 1972 pelo II Festival de Santarém, onde Um Homem do Ribatejo recebeu homenagens ao lado de A Promessa e onde, mais uma vez, ficou para a outra vez a oportunidade de o público criticar Grande, Grande Era a Cidade, já largamente comentado desde Nice pela crítica internacional mas, como todas as obras controversas e de valor, manco ainda por aqui de um esteio que o conduza do seu realizador Rogério Ceitil ao público .
E se há filmes portugueses reflectindo com amor os tiques nossos, o de Ceitil é um dos primeiros.
"Dommage", pois, que os incidentes de percurso tenham impedido até agora uma plena comunicação da fita com aqueles de que ela fala e a que se destina.
"Dommage", enquanto Os Toiros de Mary Foster, que não têm nada a ver com e cinema mas têm a ver com o folclore, andaram no beija-mão algumas semanas, no Politeama.
Desigualdades de trato que se devem por certo, aos signos benévolos que sempre actuam por aqui no sentido da Carneiro e contra ( o signo da) Virgem.
Feliz foi também, este 1972 de boa memória que trouxe à cola uma interessante troca epistolar entre o distinto crítico António Pedro de Vasconcelos e o director da revista Plateia, Vitoriano Rosa. Zangadíssimos um com o outro, foi o habitual festival de ofensas corporais, qual deles o mais elegante.
Vasconcelos e sua responsabilidade para com a Instituição, move-se num âmbito de gentilezas que Vitoriano desmascara. E reciprocamente.
Vasconcelos já derretera também, dias antes, numa entrevista à revista onde critica todos os portugueses, à excepção dos amigos dele, que são os bons, os inteligentes cá da Pátria. Agora, deixou de citar Seixas Santas como crítico, mas sabia ele, ora essa e tanto basta. Depois da zanga, devem ter ido festejar no bar da Avenida de Berna. Vasconcelos ameaça Vitoriano de processo. O feliz ano 1972 ficará na História da Inquisição Portuguesa como um dos seus anos doiradas.
As reuniões de críticos na Casa da Imprensa prosseguiram em ritmo animador, esperando-se que antes do ano 2 000 esteja constituída a referida agremiação que muita ajuda poderá prestar ao crítico. Até lá, cada franco-atirador como este vosso amigo, aguenta o melhor que pode as caneladas do ofício ( e nem vos conto quantas!).
Como notou Eduardo Prado Coelho na sua actividade ensaística semanal, a crítica diária decaiu muito desde que ele e o César Monteiro deixaram de. Os críticos diários -. na opinião do doutor - estão cada vez mais na mesma. Por mim falo, que isto de escrever sobre um filme após cinco horas de tortura que é uma sessão das nossas, sem contar as de gala que metem fraque e lacinho, tem que se lhe diga e devia meter horas extraordinárias. Como não é, o crítico corta a metade, quando já está morto de sono e de tédio. Claro que, escorreitos e enxutos, só os que, como o Dr. Eduardo, Vasconcelos e seus pares, saem da caminha às tantas e podem, portanto, escrever com capitulares doiradas ensaísticas obras de fôlego crítico.
Pulei por cima do festival de Santarém mas não queria deixar de referi-lo. Metade das promessas ficaram-se por aí e daí que me tivesse vindo embora. Tempo é dinheiro e pobres de Cristo como eu não têm de ganho quanto mais para perder. Resolvi perder o direito às refeições mas guardar aquela paz de consciência que afugenta quaisquer futuros e possíveis remorsos.
Nice, em fins de Março, deu-me entre outras oportunidades a de verificar que o avião é o meio de transporte mais abominável que existe. Depois desta confissão de saloio, falo do 'rendez-vous' europeu em que o cinema português de vanguarda participou. Escrevi que me desunhei sobre o caso e creio ter cumprido, no feliz 1972, a minha obrigação de crítico e o mau dever de patriota para com o cinema do meu País. Em recompensa, o publicista Portela Filho na sua fundíssima do dito jornal, denunciava-me por excesso de qualidade e por defender com unhas e dentes um filme que por aqui todos entenderam desancar: Pedro Só, de Alfredo Tropa. Em Valladolid, o filme ia ganhando. Aqui, ia ele e ia eu ganhando uma doença. cardíaca (ou de pele?).
Alves Costa não me deixa mentir, poderá confirmar que em Nice foi um dos filmes mais considerados. Aliás, o de Ceitil também e no entanto... Tanto como Uma Abelha Na Chuva, os clássicos do Manuel de Oliveira, O Recado, tanto como o António Macedo e o Paulo Rocha.
Feliz ano foi ainda o 1972 por me ter dado o recorde de alegrias em matéria de gralhas. Como se sabe, além de todas as outras condições “sine qua non' (im) postas ao trabalho do crítico, imprimirem-lhe bugalhos onde ele escreveu alhos é uma das mais encorajantes.
Mas melhor do que as gralhas, é o beneficio introduzido pelos camaradas de revisão que entendem emendar a prosa do crítico, e isto sempre, meses, horas, dias a fio.
Quem assina, portanto, os bugalhos que o fazem escrever é o crítico que - juro - não disse metade do que gentilmente o fazem dizer. Se o leitor souber isto, fica a saber 88% desta 'via crucis' que é escrever nas imprensas e do calvário agravado, se for crítica que escreve. Se for de cinema que fala. Se, por exemplo, em vez de progroms que ele escreveu o fizerem escrever programas, se em vez de tribunais do povo lhe meterem no meio virgula separando povo de tribunais, se em vez de pantomima que ele disse aparecer três vezes pantomina.
Mas isto, como digo, é apenas um mínimo de que lhe pode acontecer nos tramados trâmites do trânsito redaccional. Mais valia - pensa o crítico 365 vezes por ano - andar a fazer 'slogans' segundo a melhor técnica de vendas. Compreendiam-no melhor, remuneravam-no melhor, perdoavam-lhe melhor os deslizes e haviam de consentir que ele assinasse o preto no branco. Assim, assim...
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