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Friday, December 16, 2005

D. LESSING 90

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[16-12-1990]

QUANDO O INTRUSO APARECE

O PECADO ORIGINAL NA OBRA DE DORIS LESSING

[(**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», «Livros na Mão», 18-12-1990 ]

Depois de Patrícia Highsmith, Marguerite Duras e Marguerite Yourcenar, é com certeza Doris Lessing a escritora estrangeira de ficção que goza de maior favoritismo entre os nossos editores.
Ainda bem, já que esta autora britânica, nascida no Zimbabwe, em 1919, é uma das maiores figuras contemporâneas da ficção romanesca, e há muito atingiu o zénite de um poder criador que só tem paralelo nos romancistas de grande fôlego do fim do século passado.
Por mais que se baralhe e volte a dar, não é a intriga o que importa e interessa nesta romancista do âmago da existência: é, sim, o magma escaldante da vida que principalmente nos toca nas narrativas de Doris Lessing, onde paira quase sempre a exaltação trágica do primeiro génesis.
Literatura «genesíaca», portanto, podia ser uma adjectivação muito apropriada a esta cronista dos sentimentos mais subtis e insólitos, das paixões mais estranhas e desgarradoras, dos meandros mais labirínticos, quase sempre em casos-humanos limite, fora dos cânones greco-latinos da estética e da ética. Aquilo a que o cristianismo, frente ao Diabo, chamou o «Mal».
A família cristã, para ela, tal como vem compendiada desde o enternecedor cenário do presépio, não é um berço de palhinhas quentes onde se aquecem as vantagens de uma vida burguesa (e agora ferozmente consumista) mas um ninho de víboras, o lugar de procriação incessante do mal, já que o mal nasceu com a vida e reproduz-se com ela, lugar onde incessantemente se geram máculas, horrores e tragédias do pecado original.

QUE FAZER AO INTRUSO?

Esta constante metáfora na obra de Doris Lessing, aparece de forma particularmente nítida (diríamos quase debochada) em «O Quinto Filho», onde uma primeira leitura menos atenta poderá apenas detectar as alegrias da família e do lar, precedidas pelas alegrias da procriação, por sua vez antecedidas pelas do sexo, etc, etc.
Só que, para a autora de «A Erva Canta», chega sempre o momento de «pagar a factura», o momento de o «diabo» irromper no meio do banquete das delícias, ou seja, falando em termos de filosofia oriental, o momento de os seres humanos pagarem com sangue, suor e lágrimas - e um infinito sofrimento - aquelas doces alegrias. É como se todos os seus personagens fossem engodados para comer doce, enquanto se lhes prepara a taça de fel e fezes. Que terão de enfiar pela boca abaixo, queiram ou não.
Creio ser esta consciência «cármica» e do girar vertiginoso da chamada «roda da vida», que faz de Doris Lessing uma grande escritora contemporânea, que alguns já colocam ao lado do profeta e patriarca David Herbert Lawrence, o das «Mulheres Apaixonadas» e «Filhos e Amantes», evidentemente.

O INESPERADO É SEMPRE DE ESPERAR

O inesperado como elemento romanesco de alta tensão é particularmente evidente em «O Quinto Filho», novela relativamente curta - se atendermos ao tamanho - mas uma espécie de concentrado explosivo, o nec plus ultra onde convergem em alto grau as obsessões e angústias da autora.
Quando tudo, nesta novela, parecia um quadro cor-de-rosa, a reprodução ipsis verbis do presépio cristão e das respectivas virtudes familiares, eis que o «filho inesperado», verdadeiro monstro à luz da fisiologia e das normas estabelecidas, vem impor o volte-face dramático, permitindo ver o outro lado do mito burguês do «lar, doce lar». O intruso surge e há que o metabolizar, porque um filho, à luz da moral vigente, não se extermina. Mesmo que seja «monstruoso» como este é.
O intruso surge na história e, a partir daí, o que podia ter parecido um romance burguês segundo todos os conformes, uma novela cor-de-rosa de Jorge Amado, poderá ultrapassar em crueldade o próprio «Fanny e Alexandre» de Bergman, que colocou a burguesia no cadafalso sem pedir licença a ninguém.
O que sucede a seguir, em «O Quinto Filho», não se diz: o mistério sustenta a sedução, como o segredo o negócio.

SEXTO SENTIDO EDITORIAL

Quem tenha disponibilidade de tempo e dinheiro, não perde nada em inteirar-se dos restantes títulos que já se encontram disponíveis em língua portuguesa, graças ao sexto sentido editorial da Europa-América.
Tendo-se constituído embora em alvo predilecto dos críticos que adoram dizer mal das traduções (para mostrar que dominam o inglês), os títulos publicados pela Europa América contribuem para um conhecimento diversificado de Doris Lessing, até porque são dos mais acentuadamente autobiográficos que ela escreveu: «A Erva Canta», livro de estreia, conta a experiência sul-africana da escritora e é o último dos títulos aparecidos em português, enquanto «Diário de uma Boa Vizinha», publicado antes, pode funcionar como «romance da amizade feminina», com seu quê de iniciático, se quiserem, ou de «educativo» com aspas: refiro-me à dificuldade estrutural que os ocidentais têm de digerir o disforme, o velho, o doente, o marginal, o pobre, enfim, o «Mal», numa cultura hierárquica que não se cansou de instituir padrões de bondade, beleza e juventude, para agora termos o espectáculo de maldade, fealdade e decrepitude ou decadência que por aí se mostra.
Que saibamos, a editora Europa-América apresentou ainda, da mesma autora, « A Boa Terrorista» e «Se os Velhos Pudessem», na nossa mira para uma próxima leitura.
Uma última palavra para lembrar, com alguma justiça, que a primeira editora a traduzir Doris Lessing foi a Ulisseia, dos anos 50-60, onde a grande escritora britânica teve um contacto inaugural com o público português. E, se bem me lembro, ninguém disse mal da tradução...
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(*) «O Quinto Filho», de Doris Lessing, Ed. Círculo de Leitores
«Diário de uma Boa Vizinha» (Os Diários de Jane Somers), de Doris Lessing, Publicações Europa-América
«A Erva Canta», de Doris Lessing, Publicações Europa-América
(**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», «Livros na Mão», 18-12-1990
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