1-4 - nader-1-ie-ls> RALPH NADER VISTO POR MICHEL BOSQUET(*)
[«Madeira Hoje»,
21/9/1979 ] - Quando se fala em «defesa do consumidor», o nome do advogado norte-americano Ralph Nader aparece como um dos mais conhecidos, pela sua luta e figura quase carismática.
A discutida (e por muitos temida...) personalidade de Nader tem sido objecto de referências hostis tanto como dos mais rasgados elogios: entre os admiradores mais entusiastas da sua acção, conta-se Michel Bosquet, sociólogo, ensaísta e jornalista ilustre, a quem os grandes movimentos sociais e humanos de vanguarda têm merecido a mais lúcida e tenaz atenção. A opinião de Michel Bosquet (que escreveu muitos livros sob o nome de André Gorz) assume portanto um peso especial, podendo o leitor, através dela, perceber com maior profundidade as implicações do pensamento e da acção de Ralph Nader, uma vida inteira consagrada a combater «o festim envenenado» que é a sociedade de consumo.
Os organismos de sondagem de opinião pública não revelaram se alcançaria o primeiro, o segundo ou o terceiro lugar da lista, pois quando se soube que estava entre os três primeiros, as sondagens foram suspensas. Entre as várias funções das sondagens, figura a de fazer publicidade dos organismos encarregados da sua execução junto das empresas publicitárias e dos seus anunciantes. Ora bem, empresas de publicidade e anunciantes detestam Nader. Porquê? Porque este dedica a sua vida a «mostrar à massa de cidadãos, como a manipulam, dominam e exploram alguns grupos particulares com a conivência de organismos de Estado».
Dirão talvez que isso são «coisas de americanos». Falso. Há algum tempo atrás, Ralph Nader pronunciou, em Paris, uma conferência perante um auditório de 400 pessoas. A imprensa francesa apenas mencionou por alto o que Nader descobriu durante as cinco horas da conferência. Porquê? Julgo que quando lerem o que se segue, compreenderão, facilmente, o porquê. Relatarei, o mais fielmente possível, o que se disse na conferência de Ralph Nader, recordando de passagem uma série de factos revelados noutras ocasiões quer por Nader, quer pelos partidários com que conta em França.
Mas comecemos pelo princípio: donde saiu Ralph Nader? Da Harvard Law School. Filho de emigrantes libaneses, Nader decidiu-se pelo Direito, pensando que o ajudaria «a servir o povo e defender as vítimas». Mas descobriu que a única coisa que se ensinava nas faculdades era a «servir os «trusts» e os Bancos. Os advogados nunca estão ao lado de quem deles precisa». Em face disso, resolveu «revolucionar a profissão».
Nader ainda não tinha encontrado o seu ângulo de ataque quando se concentrou num determinado tipo de acidentes automobilísticos que as companhias de seguros imputavam, geralmente, a erros do condutor e que as vítimas, pelo contrário, atribuíam a defeitos de construção dos veículos.
Durante o seu inquérito, Nader recebeu uma carta anónima de um operário da «General Motors» em que lhe assinalava já se saber de há muito, em Detroit, que o Chevrolet Corvair era um caixão sobre rodas.
Nader prosseguiu com a sua investigação, cujas conclusões publicou então num livro volumoso e bastante caro que se converteu imediatamente em «best-seller». Nele, Nader acusava a GM de homicídio, revelava que esta só dedicava 0,073 por cento dos lucros em investigações tendentes a reforçar a segurança dos modelos - quatro vezes menos do que investia para tornar agradável ao ouvido o ruído do fechar das portas - e que, em 1930, o presidente director-geral da companhia se tinha negado a dotar os seus veículos com vidros de segurança: «Há investimentos mais rentáveis» escrevera o presidente sobre o assunto. «Não somos uma instituição filantrópica».
A General Motors atacou Nader por difamação. Nader contra-atacou, apresentando-se para testemunhar perante uma comissão do Congresso. O senador que o tinha convidado a depor foi informado, um dia, por um porteiro: «Sabe que a testemunha Nader é seguida até à porta do Congresso, por detectives particulares?». Isto provocou um escândalo. O senador citou o presidente director-geral da GM para se explicar perante a comissão senatorial. O presidente da mais poderosa firma do mundo apresentou desculpas públicas por duas vezes. Imperturbável, Nader acusou-o de «intrusão na sua vida particular» e conseguiu 425 000 dólares por danos e prejuízos. Com esta soma, poderá financiar durante vários anos o seu pequeno instituto de investigação.
A súbita celebridade não afectou em nada este homem de aspecto frágil, com ar de adolescente meditativo, sóbrio até no seu humor anglo-saxão. Dorme quatro horas por dia, vive num apartamento com dois quartos, tem uns gastos mensais de 500 dólares (cerca de 15 contos) e não possui nada de seu.
Os que pensavam que ele iria especializar-se na indústria automobilística, em breve descobriram o erro: se se decidira a especializar-se nalguma coisa, fora só na denúncia dos «abusos, fraudes e violência a que os «trusts» submetem : o grande público». Acredita Nader, como asseguram tanto os seus falsos partidários como os seus críticos de esquerda, que é possível «humanizar os «trusts», dar um aspecto mais humano ao rosto do capitalismo? Tirem-se as conclusões que se quiser de declarações como a seguinte:
«Os «trusts» mentem em tudo. Mentem ao falar da importância de investigações que nunca levaram a cabo. Mentem sobre o valor dos seus dividendos ao fazer a declaração fiscal... Tudo isto faz parte do sistema. O engano e a mentira cumprem uma função institucional: o sistema não pode funcionar doutro modo.»
Então para quê toda essa campanha de Nader tendente a conseguir que o público esteja representado no Conselho de Administração da «General Motors»? Resposta: «Uma reivindicação apresenta sempre dois aspectos. Se ganha, a sua presença no Concelho de Administração dá-lhe acesso a uma série de informações confidenciais que servirão para alimentar outras campanhas. Se perde, terá conseguido, pelo menos, que as pessoas tenham tomado consciência do que é possível e do que não o é, logo daquilo que há a mudar.»
O fracasso da campanha de Nader «revelou ao grande público o Impacto que um grande «trust» particular tem sobre a sua vida quotidiana. O público descobriu estar a GM a lutar pela continuação da construção de auto-estradas e contra os transportes colectivos e a prevenção da poluição. Descobriu ser possível à «G.M..» submeter as universidades, os Bancos, as fundações que possuem acções da «G.M..» e obrigá-los a votar a favor de um Conselho de Administração que actua ilegalmente e viola inúmeras leis».
O fracasso tem, pois, para Nader uma função educativa: serviu para «elevar o nível de consciência das pessoas». Mas, com a condição de os êxitos noutras frentes manterem viva a convicção de que vale a pena lutar por isso.
Que êxitos há? Nader coleccionou alguns. Mais, em cinco anos, do que qualquer outro membro do corpo legislativo. Graças a ele, votaram-se cinco leis: sobre a segurança automobilística, os oleodutos, as conservas de carne, as minas e o abuso dos raios X.
Nader demonstrou ao público que o estavam a obrigar a comer carne e peixe em mau estado (quer congelados, quer em conserva), que as salsichas de «porco» contêm cinco vezes, em cada oito, «fragmentos de insectos, larvas, pêlos de roedores e outras porcarias»; que até mesmo os alimentos para bebés contêm um composto químico, o glutamato, que se suspeita seja cancerígeno (está proibido em França) e cuja utilização maciça só tem um objectivo: tornar esses produtos do gosto das mães que são quem saboreia os alimentos antes de dá-los aos filhos, para avaliar da sua qualidade. Em dois de cada três casos, descobriu carecerem de valor nutritivo os famosos pequenos almoços de cereais que lhe dão «a força de um tigre» e ser o pior deles todos, o mais famoso, produzido por Kellog; que pelo menos nos Estados Unidos, as firmas Procter e Gamble, Colgate, Palmolive e Lever Bros mentem sobre a capacidade detergente dos seus produtos. Nos Estados Unidos todas essas firmas foram formalmente acusadas de levar a cabo uma publicidade mentirosa.
Descobriu também que, durante o correr da sua vida, cada norte-americano tem duas em cada três probabilidades de ficar intoxicado pelo consumo de conservas alimentares e também que, de acordo com o número actual de acidentes, um em cada quarenta cidadãos, falecerá ou ficará gravemente mutilado por culpa de produtos de consumo defeituosos ou mal concebidos (sem contar os automóveis).
Em continuação eis aqui um breve mostruário:
Todos os anos ardem nos Estados Unidos 10 000 televisores; as portas de vidro causam um total de 10 000 feridos por ano; 60 000 pessoas sofrem de queimaduras por culpa dos seus fogões; os acidentes de escadas de mão que se partem produzem, por ano, 600 mortos e 200 000 feridos; os corta-relva, por sua vez, produzem anualmente 140 000 mutilações; aproximadamente 700 000 crianças ficam feridas, todos os, anos, por brinquedos perigosos ou defeituosos.
«O engano e a fraude, diz Nader, converteram-se em práticas correntes de todas as indústrias. Quando os industriais fabricam um produto, não se preocupam absolutamente nada com o bem-estar do público. A água, o ar e os produtos que injectam nos alimentos só têm uma função: aumentar-lhes o peso e, por consequência, os lucros. Pelo simples procedimento de injectar água às galinhas, roubam-se anualmente ao consumidor norte-americano, trinta e quatro milhões de dólares. Segundo estimativas do senador Hart, mais da quarta parte dos produtos adquiridos anualmente pelos norte-americanos carecem de utilidade real.
A função económica do engano não é só incrementar os lucros mas também estimular o crescimento económico. Este deixou de ser sinónimo de bem-estar: em grande parte, a expansão reflecte só o auge de indústrias e serviços parasitários que reparam os defeitos dos produtos e serviços que nos vendem em primeiro lugar. Temos, por, exemplo, os pára-choques: foram concebidos de tal forma que a colisão de dois automóveis a pouca velocidade produza em cada um deles danos no valor médio de 250 dólares. Graças ao que o mercado de peças sobressalentes e de reparações representa, nos Estados Unidos, 500 milhões de dólares por ano. Trata-se de um tipo de expansão económica baseado no engano: no consumo forçado.
Outro exemplo: «a poluição do ar. Arrasta consigo anualmente, através da corrosão, um gasto suplementar de 14 000 milhões de dólares em trabalhos de manutenção e reparação. Para a contabilidade nacional estes 14 000 milhões representam um enriquecimento. Na realidade são um gasto - um dos gastos - que os «trusts» particulares impõem ao público e de que só eles beneficiam.
Alguém objecta que se a indústria tivesse de lutar contra a poluição, também seria o público a pagar: aumentariam o preço dos produtos.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «Madeira Hoje»,
21/9/1979 ***