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Saturday, September 09, 2006

O. FALLACI 1970

1-2 - fallaci-1-ls> domingo, 22 de Dezembro de 2002-scan

UM SALTO NO VAZIO(*)

«Os astronautas não são mais do que gladiadores da era espacial e como gladiadores são mandados para a morte».
«Quem se adapta, não morre».

[«Notícias da Beira» (Moçambique), 9-9-1970] - A conquista da Lua também tem duas faces: uma iluminada, onde apontam os caminhos da esperança; outra obscura, de que pouco ou nada se sabe mas que traz os cientistas inquietos.
Oriana Fallaci, que tem vivido nos pontos mais quentes e difíceis da globo, onde a guerra é ainda a forma bárbara (mas inevitável?) pela qual se procuram resolver diferendos e conflitos, assistiu a todas as fases do programa Apollo e aos principais lançamentos que tiveram lugar em 1968 e 1969.
Dessa experiência escreveu um livro (1). Reunindo as reportagens que publicou em muitos dos principais jornais do mundo, e acrescentando textos inéditos, Oriana compôs mais uma obra fascinante, como aliás todas as que nascem da sua sensibilidade, da sua inteligência, da sua. coragem.
Ninguém como ela estaria tão bem preparada para compreender as «duas faces da Lua», os prós e os contras de uma escalada que impele os homens para fora do planeta mas que poderá, também, em contrapartida fazê-los recuar anos e séculos na própria terra onde habitam.
Eis como Oriana Fallaci procura justificar a sua entusiástica adesão ao progresso tecnológico:
«Disse-te que contava como certa, a história de que o homem provinha do mar e, no entanto, o mar era para ele uma prisão donde fugir não passava, de uma loucura. Lentamente, pacientemente, dolorosamente saiu da água. Mas respirava. As suas brânquias suplicavam água, água, água e ele morria a pouco e pouco, a terra era um inferno, que o afogava, que o oprimia, como uma ventosa; mas lentamente, pacientemente, dolorosamente, de novo tentando, de novo morrendo por milhões e milhões de anos conseguiu vencer, dominar o ar. Desenvolveu pulmões e respirou sem dificuldade. Desenvolveu olhos e a terra tornou-se viva. Criou membros e mexeu-se. Criou uma espinha. dorsal e levantou-se. Criou mãos e habituou-se a acariciar. E um dia descobriu que também podia pensar. E pensando descobriu que era um homem».
Acredita. ela que uma metamorfose será novamente possível e que ao homem irá nascer outro «pulmão» que lhe permita respirar em galáxias diferentes.
Há quem não acredite, porém, que seja assim, porque a metamorfose esperada, desta vez, é de natureza mais subtil: espera-se que o homem mude o seu sistema de valores, a sua axiologia e, acima de tudo, a sua ética. Sem progresso moral concomitante, a tecnologia mais avançada é apenas a mais avançada barbárie, desastre e catástrofe.
Eis as duas faces do acontecimento: ir à Lua só significará progresso quando, no infinito da sua realidade, o homem cometer idêntica proeza. Espera-se aí uma revolução tão importante ou mais importante do que todas as revoluções passadas. A grande escalada será dentro da própria espécie e, nesta, dentro do próprio indivíduo.
De contrário, o pai de Oriana Fallaci, a quem ela dedica o livro e com quem, através de 500 páginas dialoga, terá razão quando exclama:
«O futuro que vocês sonham é um tremendo salto no vazio».
Mas Oriana reage e contra-argumenta: «Quem se adapta, não morre»,
Sintomático do desfasamento que preocupa e dilacera a autora, é a declaração do dr. Celentano, um representante trágico da mentalidade retrospectivista não só norte-americana mas internacional, mentalidade que entende o progresso em termos meramente tecnológicos.
«Nunca se podem prever - diz ele a Oriana Fallaci - as maravilhas que nascem de uma empresa científica como esta. Em Medicina, muitas descobertas foram feitas por acaso, não me admirava que daqui a vinte anos a Lua fosse um grande sanatório para os doentes cardíacos. Pensar só no alivio que seria para eles a gravidade reduzida a um sexto».
A Lua como sanatório para doentes cardíacos - eis a grande aberração, eis uma maneira completamente reaccionária de imaginar o futuro.
Se daqui a vinte anos ainda houver doentes cardíacos, poderemos afirmar que o Progresso é um mito e um malogro. Prospectivo ou progressivo será que já não existam doentes cardíacos. Será re-pensar e re-fazer tudo, outra vez, para que não haja mais doentes. (cardíacos, ou da futebol).
O livro de Oriana Fallaci conduz-se nesta segunda via, inspira-se desta outra mentalidade que entende não fazer da. Lua um sanatório que prolongue os da terra e suas mazelas, mas o planeta utópico que simbolize as realizações de tudo o que de melhor o homem sonhou e quis.
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Oriana Fallaci, «Se o Sol Morrer», Trad. Elga Ferreira, Edições Palirex, Lisboa, 1970.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «Notícias da Beira» (Moçambique), 9-9-1970
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REGRESSO À HERESIA CÁTARA?

81-09-09> ahv = antes da hipótese vibratória

NASCEMOS PARA A MORTE:
OS CÁTAROS TINHAM RAZÃO?


9/9/1981 - A inevitabilidade, o fatalismo, a lógica de auto-destruição tem como corolário a falácia e falência das alternativas, conduzem a uma única (falsa) saída.
«O século XXI ou será religioso, ou não existirá século XXI» disse André Malraux.
Tudo o que nos rodeia - todo o meio ambiente, afinal - é um teste último e decisivo quando, como e o que aprenderemos com ele?
A lição, hoje, não se aprende na escola, nos livros, nos mestres e gurus, nos anfiteatros e academias. Tudo isso falhou na missão de transmitir aos homens a mensagem.
Por isso a mensagem nos chega hoje, sob formas diferentes: a crise do meio ambiente, a violência desencadeada, os fenómenos insólitos, as desaparições misteriosas, a aceleração vertiginosa dos acontecimentos históricos, a fragorosa derrocada de princípios, valores, mitos, filosofias, sistemas ideológicos, em suma: o caos. O desespero. A angústia.
Mas - dirá o carma yogui - quando se desespera de tudo é que surge a Fé.
Quando já não há saídas humanas, que saída nos resta senão transcendente?
A crise, o beco, o apocalipse, o terror seria, portanto, na perspectiva do carma ioga, a grande instigação à Fé para a humanidade perdida de hoje..
Será pelo diabo - ainda segundo o carma ioga - será pelo mal, pelo lado negativo (a «parte maldita» lhe chamou Georges Bataille) , pelo caos, pelo sofrimento sem limites, que aprenderemos Deus.
Será pelo caos que somos obrigados a sintonizar o cosmos, cuja noção, sensação ou intuição a ideologia dominante nos fez perder.
Será pelo paroxismo do sofrimento que ganharemos direito à libertação.
A ideologia dominante afirma o culto da vida e o horror da morte. Procura o bem e repudia o mal. Advoga a virtude e condena o vício. Vida e morte é o inflexível dualismo que o sistema nos impõe. Por terem tentado repor a ordem natural das coisas - «Nascemos para Morte» - os cátaros foram perseguidos e queimados.
Que mistério se guarda neste inversão de conceitos e valores?
O grande caos, hoje, empurra-nos para uma única saída: para a evidência de que estamos enganados. De que, afinal, como dizia Chestov, Dostoievsky e os cátaros, a vida é a morte e a morte é a vida.
A Fé, hoje, é saber que tudo se passa na realidade ao contrário do que proclama a ideologia dominante das instituições dominantes no sistema que totalitariamente nos encurrala.
A Fé é saber que o culto da vida leva à morte como lógica suprema . E que o culto da morte (o imenso saco onde pomos o rótulo de ciência oculta) seria, será afinal o único caminho da vida.
Até onde e quando perceberemos porque se suicidam os bonzos budistas e, agora, recentemente, algumas seitas?
Até onde poderemos perceber que o sistema segrega também, como inelutável necessidade, esses bodes expiatórios da violência que no seu próprio seio foi engendrada?
Até que ponto compreenderemos que os holocaustos, sacrifícios e suicídios são a imensa expiação do mal que quotidianamente praticamos, consentimos, provocamos, engendramos?
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CIÊNCIA 1972

1-2 - 72-09-09> ciência-1> os dossiês do silêncio - mein kampf

CIÊNCIAS HUMANAS - UMA BRECHA NO SISTEMA(*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», 9/9/1972 ]

[9/9/1972] - Óbvio é que a razão tem que ter razão. E se a ela foi dada a palavra, só ela tem a palavra. E o poder. Impossível, pois, dar a razão, a palavra, o saber ou poder ao que originalmente não tinha nem podia ter nada disso. Porque não tinha, era. Ao que originalmente era silêncio.
Daqui, da tentativa de dar voz ao silêncio, vem a frustração da faina utópica que se propõe o Poeta. Apesar de fracasses, de inevitáveis fracassos, as suas vozes - vozes do silêncio, vozes subterrâneas - tiveram contudo e pelo menos o mérito de mitigar abusos e prepotências da omnipotente, omnividente e omnisciente ordem racionalista, abusos uns de ordem teórica, outros de ordem técnica, prática e política.
Votadas ao fracasso, as tentativas de dar voz ao silêncio iriam servir, ao menos, ao Arqui-Agressor (assim chama Toynbee ao Ocidente) a justa má consciência e o indispensável remorso. Os que falam do silêncio não querem nenhuma cátedra, nenhuma academia, nenhum prémio nobel, querem apenas dizer que, no impecável mundo dos racionalistas, nem tudo são rosas e virtudes.
As pesquisas subterrâneas destes homens subterrâneos obrigaram os homens da superfície (homens superficiais) a rever as suas intangíveis posições, os seus dogmas, as suas leis. Por escrúpulos de honra profissional, até, a ordem racionalista não poderia manter por mais tempo esta deliberada ignorância ou hostilidade. E resolveu-se a entrar. Com armas e bagagens, microscópios e telescópios, monóculos e binóculos, aí vemos a ciência no campo do inimigo – o mito; sob a capa de «ciências culturais» ou «ciências humanas», um batalhão de antropologistas, etnólogos, psicólogos, sociólogos, iniciaram a devassa. Concedem, condescendem em estudar o figadal inimigo.
Em nome da ciência combate-se o mito, mas apenas certos mitos que importa combater, para que a ciência e os seus próprios mitos não sejam incomodados. Fixa-se algo que tradicionalmente vieram entendendo e desentendendo por mito e omite-se o que modernamente e mais latamente se pode entender por tal.
Então, com armas e bagagens, a ciência encarrega alguns dos seus funcionários, especializados em arqueologia, de irem estudar o mito - o mito que interessa estudar do ponto de vista da ciência. E eis que se lançam os investigadores, de monóculos e binóculos em riste, a estudar a velha fera.
Será que, com isto, a ciência quer ceder terreno ao seu inimigo?
Claro que não: o que a ciência quer é acabar de desacreditar o tal tipo ou espécie de mito, para acreditar e fazer acreditar os seus próprios. Ela, que expulsara dos seus domínios o mito, a magia, a mística e a metafísica, resolve agora estudá-los, surgindo essas coisas que se chamam etnologia, antropologia, psicologia , etc. (que em logias não é ela pobre nem manca, logias que são outros tantos santinhos para adorar).
Enquanto andou por onde podia e devia andar, tudo se passou pelo melhor. Mas é que agora a ciência, querendo entrar naquilo que tradicionalmente combateu - o mito -, parece não estar muito apta nem habilitada, e parece não ter grande «moral» para o fazer. O balanço final da empresa revela que a ciência, ao querer abordar o mito segundo os seus métodos muito particulares, foi rechaçada e viu-se em palpos de aranha. Exorbitando dos domínios que por direito lhe pertenciam, invadindo os domínios da criação, do humano concreto, do livre arbítrio, estendendo os princípios deterministas, da identidade e da casualidade muito para lá do positivo, do razoável e do racional, constituindo o especificamente humano, a liberdade, em matéria de ciência positiva, acabando por aceitar como «objecto da filosofia e até como «objecto da ciência» aquilo que a positiva lei dos três estados de lá expulsara: o «estado teológico» e o «estado metafísico» redundou num anedótico fracasso.
Dentro da própria ordem racionalista é, apesar de tudo, justo reconhecer os «traidores», os que, embora de confiança e gratos aos quadros da Burocracia, se vão atrevendo, medrosamente, prudentemente, intermitentemente, a pôr dúvidas à omnipotência do saber.
A coisa, geralmente, começa a ceder pelos chamados filósofos da história; depois pelos psicologistas; depois pelos sociólogos e antropólogos. Uns e outros, uns mais, outros menos, acabam por ir reconhecendo a mitologia da tal cultura sem mitos, as contradições da tal cultura baseada no princípio irrevogável da não contradição, as fraquezas do tal omnipotente Poder do Saber.
Mas - reconheça-se também - só tarde e a más horas o fazem. E é esse atraso no tempo, esse «ganhar tempo», esse colocar do problema no futuro, sempre no futuro, que permite aos donos da cultura oficial terem sempre razão. Jogando com o futuro, com uma ideia ou pseudo-ideia de futuro, jogam e ganham.
Directa ou indirectamente, o cientista por muito isento e o filósofo por muito puro que se pretendam, acabam por colaborar, através do técnico, com o político e o homem de acção em geral.
Em suma: o Saber acaba sempre por aderir ao Poder e ser, nas mãos deste instrumento, pau para todo o serviço.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», 9/9/1972
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Friday, September 08, 2006

MELODRAMA 1971

melodram>literatu>manifest>texto híbrido ac-mein kampf

8/setembro/1971

A DOENÇA E A FUNÇÃO SÓCIO-ECONÓMICA DO MELODRAMA

[este é o modelo de texto híbrido ac, onde coexistem intuições de facto proféticas, fundamentais e correctas, confirmadas algumas através de vinte e um anos, com algumas ousadias pouco consistentes e onde a linguagem forte do calão perde força pela sua inaplacabilidade: este texto, como todos os híbridos, deverá ser fonte de retorno e consulta, porque de facto aborda uma questão de fundo que é também tabu: tratar-se-á de voltar à tese, que está correcta, mas com argumentos maios convincentes e exemplos concretos mais significativos; a luta de classes, sinónimo do que designava na altura abjecção -- penso que correctamente -- não deixou ainda de ser um quadro válido para interpretar a função social e económica do melodrama, onde a doença desempenha um papel primordial de chamamento ao terreno existencial; é ainda de lembrar o que, entretanto, Umberto Eco escreveu sobre a literatura de cordel, em termos tecnocráticos, livro que não trocava, sinceramente, pelo «naif» filosófico deste meu texto de 1971, repescado hoje, em 21 de Junho de 1991]

+ 7 PONTOS

8/Setembro/1971 - Quando, traiçoeira e de garras aduncas, a doença se abate sobre qualquer indefesa criaturinha das que compõem a mitologia romanesca de consumo -- é caso para desconfiar três vezes e pôr três pés atrás.
Que se passa?
Que pretende a sociedade de consumo -- de compra e venda -- com o súbito melodrama?
A que vem o sentimento no meio da guerra civil que é a luta de classes?
De que solícitas e pingonas ternuras, e porquê, se sente possuída a venal e abjecta histeria da abjecção?
Em que medida a doença vem contribuir, nessas histórias de amor e sacrifício, de orfandade e caridade, de meninos abandonados e mães abnegadas, para a tal histeria do consumo e como falsifica ela a realidade, já que o escopo de todo o romanesco comercial[??] é o de falsificar a realidade (e aviltar o homem), alienar o consumidor e transformar o espectador, lavando o cérebro( na barrela das boas e pias intenções) do passivo consumidor de todas as mitologias menos ternas, menos líricas, menos sentimentais e bem mais terra a terra, mais guerra a guerra?
Vários motivos, para já, se podem encontrar que explicam e justificam o romanesco melodramático. Porque o melodrama não é tão gratuito como parece e serve para levar mesmo muitas águas a muitos e vários moinhos.
1 - Se o cenário é rico, se ao fundo há uma baía de S. Francisco de águas azuis e por ali se respiram perfumes de jardins, se há mármores brancos e a criatura vive na maior opulência material, no maior esplendor, -- o mecanismo de consumo consegue, através da doença insidiosa e traiçoeira, um duplo e contraditório e conveniente efeito sobre a mente do consumidor/espectador: a inveja da opulência e, simultaneamente, a repulsa dessa situação de riqueza;
2 -- Se a personagem, vítima da horrível fatalidade, é bela, também se obtém idêntico efeito duplo, contraditório: a inveja da beleza que a doença irá corromper, minar, desfear até à miséria e à morte;
3 - Se a personagem continua a ser rica, bela, feliz e com a vida erótica em ordem (mas alguém há, nestas histórias, que não tenha a vida erótica em ordem?), a doença subitamente abatida sobre ela, desempenha ainda o papel de «escape», de «révanche» para o consumidor que não é belo nem tem a vida erótica em ordem: «toma lá que é para saberes. Lá porque és feliz, pensavas que nada de mal te acontecia, não?». E o consumidor sente-se, ele também, compensado das suas doenças (que não devem ser poucas)em particular, e dos seus infortúnios em geral;
4 -- À mitologia crua e sem panos quentes, há que opor, de vez em quando, e para não espantar a caça, a mitologia doce do sentimento, da piedade, do sofrimento resignado, da virtude compensada; há, inclusive, que demonstrar que afinal essa criatura burguesa também tem sentimentos, além de automóvel, casa, luxo, beleza, fortuna, criadagem, espelhos de parede, colunas dóricas, salões, recepções, banquetes. Há que humanizar a imagem do burguês e fazer da fortuna, da sorte, da bem aventurança burguesa uma imagem simultaneamente sedutora e repelente;
5 -- A doença no romanesco melodramático tem ainda a função de iludir por completo o consumidor: geralmente («Love Story», por exemplo!) ninguém sabe como e porquê e de onde vem a famigerada, terrível doença. Em certos casos, chega a afirmar-se que vem da Turquia. Em quase todos vem da fatalidade. O mecanismo do consumo dirigido impõe assim a ideia de fatalidade, de doença sem causa, quando todos sabem muito bem que, regra geral e em 80% dos casos, a doença vem do consumo: isto é, daquilo que o consumidor mete pela boca abaixo, com rótulos coloridos, latinhas cilíndricas, celofanes rebrilhantes, etc..
[[Claro que 107 médicos assinam um documento confirmando que há cólera em Barcelona, mas nenhum assina documento nenhum dizendo que, pior do que o cólera, há a peste entrando diariamente pelas nossa casas dentro, via supermercados ou televisão ou publicidade em geral, há o automóvel, há a «gadanha da morte ceifando vidas inocentes» -- como dizia o «Diário Popular» ou o «Actualidades» por ele -- há a própria medicina, a indústria médica liquidando neles alegremente, etc., etc..]]
6 -- Pois para tudo isto serve a tal mitologia romanesca do melodrama, com doenças a consumir belas e sedutoras criaturinhas, donas de todo o conforto, possuidoras de todos os adornos e símbolos do consumo («Os Olhos Verdes da Noite», de David Loweel Rich) mas tão traiçoeiramente «surpreendidas» pela traiçoeira doença;
7 -- É que, não esqueçamos, estabelecida subliminarmente no espírito do consumidor a certeza de que a doença surge sem causa -- um vírus caído do céu, vindo da Turquia ou emigrado dos países comunistas e desse miserável Terceiro Mundo onde grassam epidemias terríveis - fica campo aberto a outras indústrias e a outra subconsciente certeza do consumidor no sentido de consumir mais alguns dos venenos úteis, belos, progressistas, última maravilha da técnica, último grito da indústria, vindos das mesmas beneméritas indústrias.
Para já e sem sair da Indústria Médica, temos duas para onde fatal e benemeritamente o consumidor é empurrado, logo que atacado de terrível doença sem causa ou de causa desconhecida: a Cirurgia e a Farmácia.
Para já e para exemplo, deveremos ver que afinal a inocente mitologia das «Love Story», das «Junie Moon» ou dos «Olhos Verdes na Noite» conduz a objectivos menos inocentes: promover a indústria. E ainda há quem pergunte -- com o cérebro lavadinho e pronto a receber a medalha do consumidor supercondicionado -- para que serve o melodrama?
Então não se estará mesmo a ver para que serve?

AINDA O MELODRAMA UM TEXTO DE 1970?

O melodrama serve, em muitos casos, para que a burguesia anestesie a sua má consciência.
Serve para nos dizer que afinal a abastança também inclui coisas infelizes: raparigas que namoram e perdem os apaixonados (filme «A Carne da Minha Carne»); apaixonados que se dedicam ao alpinismo e lá ficam, um dia, na montanha; pais que sofrem do coração; filhas que são perseguidas por mães déspotas que as sorvem e absorvem; jovens que não têm um pulmão e que morrem, enfim, na flor da vida quando um amor, embora adúltero, as esperava para o melhor; um filho nos braços, às vezes, é também o que acontece a estas jovens de boas famílias, tementes a Deus. Quando viajam de barco, a 1ª classe é apetecível de conforto, os drinks correm no deck, a música espalha-se suavemente, mas há lágrimas ao luar e a um recanto clandestino do paquete.
Serve ainda o melodrama, tal como o cão de Pavlov, para unir «bons momentos» a belas paisagens de que interessa promover o andamento turístico (Grécia, no caso da «A Ânsia de Amar»). Os melhores beijos vêm, para o espectador muito excitado, associados a Minos, Creta, Delfos, ao Parténon e às águas que fazem boa digestão e às bebidas da região que criam leveza e humor.
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Monday, September 04, 2006

LIVROS 1991

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O QUE FICA E O QUE MORRE EM LITERATURA

SOCORRO, TANTO LIVRO!

AS TÉCNICAS DE SELECÇÃO NA ERA DO COMPACT

PARADIGMA E UNIVERSALIDADE


5/8/1991 - A questão da obra paradigmática vem dar resposta a uma situação quotidiana e muito concreta de perplexidade, que nos assalta a todos, mesmo os que não são escritores, e principalmente os que não são escritores. Já todos viveram essa perplexidade: perante um conjunto complexo e vasto de dados, há o desejo de definir esse conjunto, mas faltam-nos palavras. Quando «não há palavras que cheguem», quando as palavras são insuficientes para transmitir certos «estados de alma», então é sinal mais que evidente: estamos perante o «sindroma», perante o «complexo» de afogamento, estamos perante o indefinível e o inexplicável. É aí que o artista surge, a tentar, pela obra de arte, nomeadamente a literária, dizer o indizível.
Por exemplo: perante o filme «Táxi-Driver», de Martin Scorsese, essa obra sublime e paradigmática, o esquizofrénico sem saber que o é, dirá: «Sinto-me espelhado nesse Trevy, eu sou o Trevy, todos somos o Trevy.»
Quando se faz esta constatação e esta identificação perante um filme, um livro, uma peça teatral, é bom sinal: é sinal de que explicando o inexplicável, dizendo o indizível, definindo o indefinível, ela tornou inúteis, retóricos, pleonásticos mil casos e fait-divers, contados em histórias de ficção que não ultrapassam esse nível de anedota e «fait-divers», de evento solto e irrevelante, não ligado ao geral, não relacionado com o universal. É o arquétipo e paradigma que torna universal (inespacial) e intemporal (sem tempo) uma obra. E não é por acaso que o arquétipo se liga aos níveis do subconsciente colectivo. Pelo paradigma, atinge-se o universal consciente, será? E pelo arquétipo, o universal subconsciente.
[Atenção ao Alexandre Pinheiro Torres quando nos fala das obras que tornam obsoletas e pleonásticas milhares de outras obras. Atenção a A.P. Torres quando fala em certas obras que tornam obsoletas ou pleonásticas literaturas inteiras. Ele toca num ponto verdadeiramente axial da criação e no grande, grande problema da escolha, da distinção, na Arte, entre o que fica e o que morre. O supremo critério para avaliar de um escritor, não é propriamente o best-seller ou a popularidade. É, talvez, em que medida esse escritor permanece para lá das modas e fornece arquétipos (ou paradigmas) que estão para lá do tempo e do espaço. Afinal, tão simples como isto!]
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RENÉ GUÉNON 1995

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TESTE DE PESQUISA – TESTE DE H.V. (HARMONIA VIBRATÓRIA)- PRINCÍPIOS DA COSMOGONIA TAOÍSTA

[5-8-1995]

Palavras em teste, retiradas do livro «A Grande Tríade», de René Guénon:
Arjuna
Brahma
Caos
Céu
Cosmos
Essência
Estrela Polar
Génesis
Hamsa
Ishwara
Ki
Krishna
Jîvâtmâ
Luz
Para-Brahma
Paramâtmâ
Sopro = Spiritus
Spiritus
Substância
Tai-i
Tai-Ki
Tao
Tchan(*) = Dhiâna = Zen
Terra
Tien-Hia
Trevas
Yang
Yin
*
Exemplos de perguntas (de algibeira):
- O termo oposto de Céu é Terra ou Inferno?
[...]

Exemplo de opostos complementares para teste de confirmação:
Evolução/Involução
Catabase/ Anabase
Condensação/ Dissipação
Geração/Corrupção
Kalpa/Pralaya
Macrocosmos/Microcosmos
.................

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(*) «Tcham = transcrição chinesa da palavra sânscrita Dhyâna, «contemplação»: essa escola é comumente conhecida pela designação de Zen, que é a forma japonesa da mesma palavra.»
*

Transcrições de base:
«São os dois termos dessa primeira dualidade que, na tradição hindu são designados como Purusha e Prakriti e como Céu (Tien) e a Terra (Ti), na tradição extremo-oriental.
«Quanto à tradição extremo-oriental, ela considera não menos explicitamente, como princípio comum do Céu e da Terra, o que ela chama «Grande Extremo» (Tai-Ki), no qual eles estão indissoluvelmente unidos, no estado «indiviso» e «indistinto», anteriormente a toda a diferenciação e que é o ser puro, identificado como tal à «Grande Unidade» (Tai-i.) Tai-Ki, o «ser» ou a «Unidade Transcendente», pressupõe também outro princípio Wou Ki, o Não-ser ou o Zero metafísico.»

«O carácter ki é o que designa literalmente a «cumeeira» de um edifício: por isso, Tai-Ki diz-se simbolicamernte residir na Estrela Polar, que é efectivamente a «cumeeira» do Céu visível e, como tal, representa naturalmente a do Cosmos todo.»

«Wou-ki corresponde, na tradição hindu, ao Brahma neutro e supremo (Para-Brahma), Tai-ki à Ishwara ou ao Brahma não supremo (Apara-Brahma).
«Acima de qualquer outro princípio, há ainda o Tao que, em seu sentido mais universal, é a um só tempo Não-Ser e Ser, mas que, por outro lado, não é realmente distinto do Não-Ser enquanto este contém o Ser, que é também o princípio primeiro de toda a manifestação e se polariza em Essência e Substância (ou Céu e Terra) para produzir efectivamente essa manifestação. »

«A expressão Tien-hia, literalmente «debaixo do Céu», emprega-se correctamente em chinês para designar o conjunto do Cosmos.»

«O Céu é inteiramente Yang e a Terra inteiramente Yin, o que equivale a dizer que a Essência é acto puro e a Substância potência pura.»

«No desenvolvimento do processo cosmogónico, as trevas, identificadas ao caos, estão «no começo» e a luz, que ordena esse Caos para tirar dele o Cosmos, está «depois das trevas»; desse ponto de vista, o yin está, com efeito, antes do yang.»

«Ora acontece, com frequência, em particular nas figurações etruscas, que a dupla espiral é encimada por uma ave; esta é evidentemente o mesmo que Hamsa, o cisne que choca o Brahmanda nas águas primordiais e que, além disso, identifica-se com o «espírito» ou «sopro divino» (pois Hamsa é também o «Sopro») que, segundo o início do «Génesis» hebraico, «era levado sobre as Águas»

«É a significação dos nomes de Arjuna e de Krishna que representam Jîvâtmâ e Paramâtmâ, ou o «eu» e o «si», a individualidade e a personalidade e que, como tais, podem ser postos em relação com a Terra e o outro Céu»(38)

«Deve-se notar o parentesco significativo que existe entre a própria designação da espiral e da de spiritus ou «sopro» - de que falámos em Hamsa.
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FRITJOF CAPRA 1990

1-3 quinta-feira, 19 de Dezembro de 2002 - capra> - livros na mão - notas de leitura

UMA HERESIA COM VINTE ANOS - A DANÇA CÓSMICA DE FRITJOF CAPRA(*)

5/8/1990 [ 7-8-1990, in «A Capital» ] - Há livros tão carregados de energia e consequências, que estabelecem à sua volta, após a fase de pânico, uma espécie de vácuo protector, de silêncio tácito, única forma que o sistema de referências e valores tem de se defender contra o implacável desafio que lhe é proposto e que o abala desde os alicerces.
«O Tao da Física», publicado em Londres, em 1975, pelo físico atómico Fritjof Capra -e que a editora Presença teve agora, vinte anos depois, a coragem de lançar em tradução portuguesa - , é um desses livros raros que só pode esperar dos poderes constituídos, nomeadamente da respeitável instituição científica, o vazio do silêncio, o silêncio do vazio (como diria um discípulo de Lao Tsé).
No entanto, cada página, cada parágrafo de «O Tao da Física»(*) - subintitulado «uma exploração dos paralelos entre a física moderna e o misticismo oriental » - suscita questões de tal maneira decisivas, importantes e vertiginosas para o futuro do sistema (que vive de ir matando os ecossistemas) e do próprio planeta Terra, com toda a carga humana a bordo, que se esperaria um debate constante, nos grandes «media», em torno deste explosivo concentrado de teses «revolucionárias», de questões de «alta voltagem energética»
O sistema leva um certo tempo a digerir o que o contesta - é certo - mas, num caso destes, vinte anos decorridos não será tempo demais para hesitarem ainda em dar o prémio Nobel ao físico atómico Fritjof Capra, exorcismando-o assim de todos os malefícios? Seria o suficiente para o neutralizar, darem-lhe uma cátedra na Universidade de Berkeley? Não será uma distracção muito perigosa para o poder científico - que inclui a microfísica no topo das suas glórias, e respectivas bombas termonucleares daí advenientes - não ter ainda conseguido calar este herege, recuperar este filósofo maldito, neutralizar este investigador suspeito de grave heresia, calar, pura e simplesmente calar este autor do diálogo entre a física do Tao e o Tao da física?...
Não serei eu, neste modesto espaço de jornal, a poder quebrar tamanha conspiração de silêncio, e muito menos a poder esgotar o inesgotável manancial de ideias que constitui o livro-manifesto de Capra. Tanto mais que ele, entretanto, já acrescentou, ao seu currículo, outro livro-manifesto, talvez ainda mais explosivo do que este - «Le Temps du Changement», na edição francesa da Rocher(1983) (**) - no qual analisa aquilo a que chama a abordagem «holística» da realidade, indo, neste caso, buscar a palavra «holística» à tradição hermética da Astrologia ... Pior a emenda que o soneto, como se vê.
Um sistema ideológico como o ocidental, tão homogéneo e totalitário na sua inquebrantável tirania, que leva vinte anos a digerir uma tese destas - o paralelismo óbvio entre ciência de ponta e o erradamente chamado «misticismo» oriental (hinduísmo, budismo, pensamento chinês, taoismo e zen, ocupam, em exaustivas descrições, toda a segunda parte da obra) - coloca-se definitivamente em causa, pelo menos quanto à sua capacidade digestiva e metabólica. Por muito duro e redondo que seja o «pedregulho» dado a comer pelo rebelde filósofo inglês, a verdade é que a truculenta instituição científica sempre revelou, para estas coisas, um estupendo estômago, mostrando que tem sabido recuperar quase tudo aquilo que a contesta. Quando não pode calar, compra. E quando não pode comprar, manda perseguir, até que o autor seja «calado»(enjaulado num «gulag» psiquiátrico, por exemplo). Os poucos investigadores que escaparam a esta lei da «linchagem» - como é o caso, por exemplo, de Ivan Illich, que continua a constituir a maior carga subversiva que alguma vez o sistema teve de suportar - , vivem como autores de livros uma existência larvar, na semi-clandestinidade.
Capra parece-me gozar desse estatuto privilegiado: a seu respeito continua a manter-se um «muro de silêncio», muro que só a sua outra qualidade, de especialista na área da microfísica nuclear, impede que seja tão espesso e intransponível.
«O Tao da Física» está aí, em tradução portuguesa, (bastante correcta, diga-se de passagem, nos pontos nevrálgicos), sujeito a todas as contingências do marketing editorial, que tanto promove como derruba, conforme a «conjuntura. Aí está «O Tao da Física», silenciado mas capaz das mil leituras e das mil discussões que os espíritos livres dos investigadores independentes (se é que ainda os há) teriam o maior gozo, prazer e empenho em realizar. O resto não é com Capra. É pura e simplesmente connosco e com o nosso senso mínimo da dignidade intelectual.

CLARIDADE CARTESIANA

De uma claridade cartesiana, o discurso de Fritjof Capra ilustra racionalmente a realidade. Mas não conclui que todo o real é racional e que todo o racional é real, como fizeram hegelianos e neo-hegelianos das últimas fornadas na filosofia ocidental. Capra aceitou o desafio daquilo a que chama, de forma um tanto abusiva e simplista, as «místicas» orientais, e postula zonas do real que se espraiam, como um oceano de ritmos, para lá das praias amenas que a ciência estuda, para lá das baias limitativas e simplórias do racionalismo cartesiano, do idealismo hegeliano e «tutti quanti». Quer o Zen quer o Tao, são exactamente o contrário da mística e da metafísica, e mesmo o seu melhor e único antídoto.
No prefácio da primeira edição, o autor confessa, de forma quase lírica, como a intuição dessa realidade profunda (que é uma profunda unidade de todas as coisas, feita de relações mais do que de conteúdos) o apanhou, numa tarde Verão, à beira-mar, e o tocou, sem alterar as suas convicções de físico atómico, antes as confirmando e ampliando: «Sendo um físico - escreve Capra - eu sabia que areia, rochas, águas e ar que me rodeavam são feitas de moléculas e átomos vibrantes (...) Tudo isto me era familiar pela minha investigação na física das altas energias, mas até ali só tinha sentido isso através de gráficos, diagramas e teorias matemáticas. Sentado na praia, as minhas anteriores experiências vivificavam-se: «vi» cascatas de energia descendo de um espaço externo, onde as partículas eram criadas e destruídas ritmicamente; «vi» os átomos dos elementos e os do meu corpo participando nesta dança cósmica de energia; «senti» o meu ritmo e ouvi o seu som, e nesse momento soube que era a Dança de Shiva, o Senhor dos Dançarinos adorado pelos hindus.»
Definida assim, pelo próprio autor - em palavras que mais ninguém podia subscrever, porque a «experiência interior» é pessoal e intransmissível - a intuição central de Capra tem, como se calcula, incalculáveis consequências para ele( apanhado em um daqueles momentos-limite existenciais que decidem de uma vida inteira) mas também para a ciência que cultiva e para o sistema cultural a que deve obediência. Um verdadeiro drama. A estes momentos únicos de hecatombe interior há quem chame momentos de «iluminação».
Neste sentido, Capra é um autor sincero, pois bem podia ter ficado calado, continuando a jogar conforme as regras do jogo estabelecido, em vem de obedecer às motivações profundas da sua consciência moral, abalada nos alicerces. Só assim se poderá compreender que ele ousasse desafiar, com teses heréticas e extremamente perigosas para a sua segurança pessoal, o sistema, permanecendo assalariado do próprio sistema: o mundo organizado, pré-programado e totalitário da instituição científica.

INSTITUIÇÃO IMPERTURBÁVEL

Mas a instituição parece não ter ainda percebido o enorme serviço que Capra lhe prestou com esta sua «ousadia». É que, feitas as contas, medindo os prós e os contras, não se sabe quem mais beneficiou deste súbito «aggiornamento»: se a ciência ocidental (à beira do descrédito pelas desastrosas consequências ecológicas já hoje indisfarçáveis), nomeadamente na sua especialidade de ponta, a microfísica nuclear, - se a sabedoria oriental, que nunca oscilou um milímetro, ao longo de mais de sete milénios. Limitou-se a ser ignorada dos filósofos socráticos e pós socráticos, o que só a prestigia e em nada a afecta. Antes, com Heraclito e Parménides, o próprio Capra não deixa de identificar as inúmeras afinidades entre estes pensadores ditos pré-socráticos, e a dialéctica do taoísmo, essencialmente movimento.

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(*) «O Tao da Física», Fritjof Capra, Ed. Presença
(**) «Le Temps du Changement», Fritfoj Capra, Editions du Rocher, Monaco, 1983

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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», em «Livros na Mão», série do autor, a 7 de Agosto de 1990
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H. MARCUSE 1979

1-5 - terça-feira, 24 de Dezembro de 2002-scan

A SUPERDIMENSÃO DO «UNIDIMENSIONAL» MARCUSE - UMA LEITURA PESSOAL E INTRANSMISSÍVEL DE AFONSO CAUTELA (*)

[Edição Especial», Lisboa, 5-8-1979 ] - A "popularidade" de Marcuse, se lhe adveio em parte da revolta estudantil e da "new left" em geral, bem como do impacto publicitário que esta obteve nos anos sessenta (bem sabia o Poder que se gestava nela o melhor alibi para reforçar a Repressão), vai no entanto radicar numa identidade de fundo com a "revolta total" de muitos outros movimentos cuja filiação se deverá, in extremis, ir procurar a um estado de espírito que permanece através de épocas históricas várias: a heresia que, no fundo, irmana existencialistas, surrealistas, dadaístas, "hippies", "provos", militantes da resistência activa e da não violência, ecologistas, acaba por ser um denominador comum sem que os próprias actores da tragédia se apercebam disso.
A vanguarda da história nem sempre tem consciência global de si própria. Digamos que Marcuse foi uma dessas consciências providenciais que sempre surgem para, de vez em quando, fazer o ponto da situação. Mas não será por isso que todos aqueles revoltados e contestatários vão reclamar-se de Marcuse como pai espiritual. "Les beaux esprits se rencontrent" e coincidências sempre as houve, ou o "inconsciente colectivo" não fosse uma realidade há muita demonstrada.
Mas também é verdade que o filósofo de Berkeley acabaria par não se reconhecer em muitos dos filhos e sobrinhos que lhe arranjaram: os activistas de Baaden-Meinhof, por exemplo, ou os "novos filósofos" alemães, últimos abencerragens evoluídos de um velho anti-comunismo primário.
Chamado a prestar declarações pelo semanário "L'Express", Marcuse (um tanto irritado com os jornalistas e com a celebridade) tentava em Setembro de 1968 insurgir-se contra as amálgamas:
"Oponho-me principalmente à justaposição do meu nome e da minha fotografia com as de Che Guevara, Debray, Dutschke, etc. Porque estes homens arriscaram e arriscam verdadeiramente as suas vidas no combate por uma sociedade mais humana. Enquanto eu apenas participo com ideias e palavras".
Resposta modelar onde se espelha toda a ambiguidade em que Marcuse é mestre. Ao mesmo tempo que elogia os revolucionários, diz que não quer misturas com eles. O seu lugar na Universidade de S. Diego correria perigo?
Numa coisa ele era sincero: mal sabia Marcuse as voltas que a história dá e as surpresas que os movimentos de guerrilha viriam trazer.
O FMI subsidiando o governo dos sandinistas (a notícia é de há uma semana), dois meses depois de financiar a tirania sangrenta de Somoza, podia ser apenas uma das menores surpresas...
Mas sabia Marcuse (e é isso que o torna um filósofo incómodo, um supersínico moderno!) que quando o desespero toma a forma de luta armada, os imperialismos acabam por reconhecer duas coisas, ao deliberarem recuar e suspender a chacina:
a) Sem facilitar demasiado a vida aos guerrilheiros, convém no entanto que, de dois em dois anos, no panorama mundial das ditaduras, vá caindo um Somoza de podre: isto dá um grande alento aos somozas das democracias parlamentares para continuarem apodrecendo países como o nosso;
b) Sobre os destroços de um país esvaído em sangue, poderão as multinacionais do terror tecno-industrial instalar a super-ditadura do desenvolvimento económico (crescimento industrial infinito), tanto mais que há um álibi gritante: trata-se de países tão carecidos, tão pobres, tão subdesenvolvidos, que só a Caritas e a Cruz Vermelha não chegam para as encomendas; e a FAO acorrerá com toneladas de pesticidas (fabricados do petróleo...) e a OMS com carregamentos de medicamentos (químicos também...) onde, eventualmente e sem querer, algumas vacinas poderão disfarçar esterilizantes.

POR ISSO O DIZEM PROFÉTICO
Cruel é que em Marcuse tudo isto está subentendido. Avista-se no fundo do seu pensamento, como num lago de águas calmas. Por isso o dizem profético.
Tal como outros filósofos contemporâneos (Lévy-Strauss e Merleau-Ponty, por exemplo), o autor de "Eros e Civilização" tentou pensar o impensável, quer dizer, teorizar a "lógica do Absurdo" que é, ou tem vindo a ser (acentuando-se), a história deste Tempo-e-Mundo. Já Lenine dizia que só nos restava "obviar ao apodrecimento da história".
Os malefícios que tal ginástica "dialéctica" implica, só têm, entretanto, equivalente nos perigos que o próprio ecossistema Terra corre, manipulado pelos megaengenheiros, à mercê dos imperialismos que puseram este mundo a ferro e fogo, quer dizer: Plutónio, Petróleo e Poluição.
Radicalizar, como fez o filósofo da Universidade da Califórnia, a crítica a esta sociedade ensandecida e levar essa crítica até às (pen)últimas consequências, pode aparentemente prefigurar a Utopia: não alinhar hoje em nenhum dos blocos imperialistas, de facto, releva da "loucura".
(A menos que se tenha petróleo no subsolo, é impossível fazer uma revolução não alinhada. Quem, senão o Irão, iria em pleno século da irreligiosidade e da catástrofe, realizar e impor a revolução islâmica, na linha das grandes tradições e liturgias? )
Daí que Marcuse apareça, com certa razão, rotulado de utopista. Mas perante a Utopia Tecnocrática que conduz em acelerado a humanidade à Neo-Barbárie vigente, eis que se transforma em "realismo do Milagre" a utopia de todas as cidades do sol. Não é um ideal para ficar melhor. É pura e simplesmente um caso de vida ou de morte. Trata-se exclusivamente de salvar a pele. Isto é realista.

A MAIS ANTIGA TRADIÇÃO PRIMORDIAL VIVA
Em certo sentido, o único seguidor lógico das premissas de Marcuse seria David Cooper, quando fez as malas e abalou para o Tibete... O pirronismo marcusiano, ao constatar a sociedade fechada (com arame farpado electrificado de alta tensão...) aponta inevitavelmente e em derradeira instância para uma saída vertical, para uma dimensão que é costume designar de transcendente, para uma dimensão que é costume designar de transcendente, para uma redenção só reencontrável no rigor de uma disciplina ascética de algum mosteiro tântrico e nas implicações subversivas de todos os fundamentos imanentes em que assenta o "logos' ocidental: falo da lei kármica e das implicações revolucionárias que ela tem, a inversão de valores que provoca (o que não deixa de ser outro perigo político a que Marcuse conduz, mais um "malefício da sua dialéctica"...)
À luz da lei kármica, a luta de classes, por exemplo, e de uma maneira geral o Sofrimento, o Mal, a Injustiça, estariam neste palco porque a ordem ou justiça universal é inexorável. E muita gente há ainda para expiar o que fez outrora. Não se sabendo, por exemplo, que destino estará reservado, numa reincarnação, aos actuais fabricantes de cancros e petroquímica, por exemplo.
De qualquer maneira, a rampa de lançamento para práticas iniciáticas de índole esotérica, parece-me das consequências mais interessantes de um pensamento que plana muito mais terra a terra.
"Quando se desespera de tudo, é que surge a Esperança" diz a Bíblia dos cristãos.
Preferiu-se, no entanto, enfatizar Rudy Dutchke e os revolucionários de rua como herdeiros das teses do filósofo da Ambiguidade. De facto entre um terrorista e um monge lamaísta medeia o infinito. Mas denunciadas todas as ordens do poder instituído, surge claro para alguns uma alternativa absoluta: a ordem espiritual dos Antigos da mais antiga tradição primordial viva. David Cooper bebeu deste cálice.

SOCIEDADE DO DESPERDÍCIO E DA PILHAGEM
Outro contributo (in)directo do seu pensamento poderá ter sido a ideia de uma Recusa ou Greve Geral de cidadãos à Sociedade do Desperdício e da Pilhagem, greve que na prática ainda não se viu concretizada, mobilizados que andam os grevistas a consolidar o sistema com suas reivindicações parciais ou corporativistas. Ficou claro, nas ruas de Maio 68, as confederações que se afrontavam.
Supuseram alguns, por exemplo, que quando a central atómica de Three Mile Island esteve por um fio, o pânico seria suficiente para rasgar a teia de conformismo do "homem unidimensional", para desencadear uma onda de recusa tal que subverteria em breve o sistema nuclear e nem só. Afinal, parece que mesmo derretendo o reactor, ainda não será o suficiente para mobilizar a humanidade na sua própria autodefesa, em greve geral contra o crime institucionalizado do nuclear e nem só. Assim por diante.
Os factos parecem assim dar razão ao cinismo de Marcuse, havendo quem bichane esta coisa terrível e potencialmente fascista: "a humanidade afinal tem o que merece..." E «adapta-se a tudo», o tal condicionamento dentro dos arames farpados do concentracionário onde lhe tiram os dentes para fazer botões e a pele para fabricar sabonetes.
Uma coisa é certa: a humanidade tem os engenheiros que merece, tendo vindo, alguns, veiculados pela RTP, dizer que o acidente da Pensilvânia só vinha provar a grande segurança dos técnicos. Se fosse daqui a um ano, Marcuse poderia ter visto, ilustrado e já a cores, sistema Pal, a tese fulcral da sua reflexão sobre o abismo.
A engenheira Isabel Torres, da EDP, agiu na prática como a mais sabedora discípula do mestre. Sem desfaçatez, até. Certíssima da legitimidade que assiste ao esplendor do tecnocinismo, quando toda a humanidade se demite de um direito suposto fundamental: o direito à vida, o direito a defender-se dos carniceiros tecnoburocratas.
Horas antes da engenheira, aliás, John Schlesinger, secretário de Estado da Energia dos EUA, perfilhava a mesmíssima tese da engenheira electro-nuclear.

OS FILHOS DO JOVEM MARX
Viu Marcuse que à entrada para a teoria sobre a Revolução estava o conceito marxista de "alienação", escamoteado entretanto e prudentemente pelos seguidores com o bom e consabido pretexto: era um Marx muito verde, muito juvenil o que teorizou a alienação...
Sem ela, a luta de classes cingir-se-ia então e para já à "exploração do homem pelo homem", ficando a "manipulação do homem pelo homem" (cobaia das experiências deles no mar, na terra, no espaço...) para denúncia posterior, séculos depois.
Marcuse não quis esperar, nem mais um dia. E a sua crítica à "manipulação do homem pelo homem", redundando na denúncia da alienação, atingia em pleno coração o imperialismo dito socialista, situação já expressa no desabafo de Merleau-Ponty: "Não se pode ser comunista, não se pode ser anticomunista".
Mas o impasse veio a ser quebrado com a súbita consciência de uma outra luta de classes sobreposta às duas citadas: a "exploração da Natureza pelo homem" tinha a peculiaridade de dar apenas alguns dias de vida a esta pobre geração que ia agora crescendo e preparando-se para ocupar os gabinetes alcatifados dos chamados grandes centros de decisão. Alguns desta geração já viram duas coisas:
a) Tiravam o diploma de doutores para depois se empregarem como varredores da Câmara (humilhante mas ecológico);
b) Um gabinete, por mais estofado e com rendinhas nas janelas, está igualmente à mercê de uma fuga radioactiva em qualquer das duzentas centrais que eles disseminaram por esta Terra...
Maio de 68, de qualquer maneira, ainda não foi a geração da ultrapassagem. Terão ainda que derreter muitos reactores para que a greve de Paris se estenda ao universo. Alguns aguardam o regresso de Karl Marx para ele teorizar as duas lutas de classe que lhe ficaram na gaveta: "a manipulação do homem pelo homem" e a "exploração/manipulação da Natureza pelo homem".
Entretanto, os Ecologistas procuram um Marx...

ESQUERDISMO, DOENÇA INFANTIL DO COMUNISMO
"Esquerdismo, doença infantil do Comunismo": foi mais ou menos com estes doces epítetos que a ortodoxia marxista recebeu mais este discípulo do jovem Marx em luta com o Marx adulto.
Idêntica sorte iria suceder a Edgar Morin, Henry Lefèbvre, Roger Garaudy, Erich Fromm, Wilhelm Reich...
Mas já Marcuse, deitado no divã de Freud e com mais trunfos do que estes antigos filiados do PCP, conduzia as hostes da "nova esquerda", levando-a no final dos anos sessenta a descobrir potencialidades de que ela própria se espantaria. Nunca a contestação estudantil supôs chegar a Maio de 1968.
Mas só para virmos a ter, pontifical, António José Saraiva a escrever sermões da montanha contra o MFA, valeu a pena o combate nas barricadas de Paris contra os bonzos de Vincennes. "O último sociólogo enforcado nas tripas do último filósofo", oh! manes da contestação, onde isso vai!
Gozam todos, neste momento, de boa saúde, é claro, Saraiva incluído, e mais estruturalistas do que nunca na ressaca das pós-barricadas, dando razão aos eurocomunistas que acusam os marcusianos de pequeno-burgueses, e de terem conduzido alguns jovens a saídas místico-religiosas. Como se isto fosse mais cancerígeno do que defender petroquímicas, nuclear, gigantismos espaciais, etc!
Para um mundo assim "atomizado", eis que religar tudo a tudo (tarefa que era a da religião e que passou a ser a dos filósofos nas sociedades profanizadas), acaba por ser (até por semântica) sinónimo de yoga, religião ou... Ecologia.
"Religar tudo a tudo", velha aspiração desde que se perdeu a unidade primordial, enquanto aspiração nunca atingida, é o cancro inextirpável da sociedade ocidental
As eco-alternativas ou tímidas saídas para o "absurdo", o campo de concentração tecno-industrial (crescimento económico infinito) apresentam-se assim como um retrocesso e os "mass media", babados de gozo, cultivam até ao orgasmo este equívoco que lhes pagam para alimentar.
Tentar o salto qualitativo para fora da paranoia tecno-terrorista, que utopia, que salto mortal!

ESPÉCIE DE PRÉ-FABRICADO DO MUNDO TECNO-INDUSTRIAL
Mas que remédio senão saltar. Descobrir do "homem unidimensional", espécie de pré-fabricado do mundo tecno-industrial, dedicou-se Marcuse a radiografar na aparente liberdade das democracias ocidentais o que há nelas de ditadura e violência, de patologia repressiva.
Teoriza assim o "beco sem saída" que faz o fascínio e o perigo (político) da sua obra.
Entre dois totalitarismos, o "homem sanduíche" acabaria por se comer a si próprio, quando não o tivesse sido por um dos dois vorazes canibais: URSS e EUA.
Daí o aparente parentesco de Marcuse com correntes anarquizantes, última fase de apodrecimento das ideologias liberais quando não conquistam o poder...
A "imaginação no poder" tornou-se o dístico habitual nas paredes de Paris após o Maio de 1968. O professor aconselhava os alunos: "Sejam realistas, exijam o impossível", outra forma de propor outra boca para a sanduíche totalitária.
A crítica ao "pesadelo climatizado" da sociedade americana não o tornaria indesejável ao "american way of life", como aconteceu a Henry Miller.
Em troca dos benefícios prestados pelo esquerdismo que Marcuse incrementa, o professor da Universidade da Califórnia continuou a ser acarinhado pelo Establishment. De tal maneira que haviam de convidá-lo a escrever um relatório para a CIA.
O niilismo de Marcuse, assim comprovado, pode levar a cedências, traições e compadrios pouco recomendáveis.
"Se Deus não existe, tudo me é permitido"- diria um personagem de Dostoievsky.
A chatice é que naturalmente Deus existe mesmo... O que vem estragar os planos destes niilistas todos.

O QUE SERÁ MAIS CÍNICO?
O que será mais cínico: a filosofia de Marcuse ou uma multinacional da química?
O filósofo, no fundo, traduz em ideias uma constante ou situação que a multinacional domina pelo poder efectivo.
O que a multinacional hoje sabe melhor do que Marcuse sabia ontem é que a Utopia Tecnocrática matará a Terra; e que a utopia ecológica depende, rigorosa, obstinada e absolutamente de um milagre.
É nesse sentido, creio, que se fala de utopismo. A dialéctica transforma-se assim num contra-relógio entre os que defendem e os que massacram a Terra.
Árbitro: seria Deus se não o tivessem matado também.
Pelo que o dilema 1980 é claro: Se Deus não existe, o Homem está condenado por arrastamento, com a morte, breve, da Natureza.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas e com muita honra, foi publicado no semanário «Edição Especial», Lisboa, 5-8-1979 , onde o Fernando Dil fez o favor de lhe acolher as prosas
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