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Thursday, October 05, 2006

ERNESTO SAMPAIO EM 1958

1-2-58-10-11

UMA NOVA TEORIA DA CRIAÇÃO HUMANA

A propósito de duas estreias:
 Luz Central, de Ernesto Sampaio, 1958
 Amor em Visita, de Herberto Helder, 1958

Se este texto foi publicado, parece-me incrível que eu o tenha feito, já que, pelos vistos, não evitei a desvergonha de o escrever. E agora a desvergonha de o teclar. Pergunto-me se não seria muito melhor já o ter rasgado há muito, em vez de o conservar em vinha de alhos. Nem sequer por duas ou três intuições que nele relampejam. Nem sequer por mostrar a minha rendição aos surrealistas. Nem sequer pela citação do ocultista Eliphas Levy: fico a saber que o ocultismo me interessava em 1959... Há, portanto, 50 anos , meio século. Talvez esta antiguidade seja o aspecto interessante do texto, que no resto mais valia ir prólixo.( 5/Setembro/1999)


Prefiro considerar este livro de Ernesto Sampaio sem filiação próxima ou afastada, portuguesa ou estrangeira. Além disso, o fundamento teórico de toda uma novíssima poesia e a chave para a sua interpretação. E ainda o ano em que se editou - 1958 - o ano-eixo de uma geração ( a que se emancipou entre 1955 e 1960). Não foi por acaso que Ernesto Sampaio , poeta e profeta, viu pela primeira vez um texto seu publicado no número do jornal A Planície dedicado só a poesia e poetas, o nº de 8/9/1956.
Ali foi trazido pela mão de Raul de Carvalho, organizador infatigável desse número. O estudo de Ernesto Sampaio saiu como artigo de fundo e intitulava-se Para uma Literatura Problemática. Nada disto, inclusive o título do artigo, aconteceu por acaso. Pela incompreensão que a crítica oficial mostrou do livro de Ernesto Sampaio, não nos é difícil perceber que nenhuma das folhas literárias em uso pela imprensa comercial, informadas, fomentadas e responsabilizadas por essa crítica, acolhessem um artigo cujo pensamento tão exuberantemente escapava às camisas de força adredes preparadas pela sisudez e hieratismo consuetudinário da mesmíssima crítica.
É preciso dizer , sem mais preâmbulos, que a crítica intestina apresentou, perante Luz Central, a sua demissão, agindo, como agiu, pelo método mesquinho de ir descobrir plágios no que não passa de coincidências e influências no que não passa de assimilação e transcensão. Falou-se de tudo, a propósito de Ernesto Sampaio, menos dele e do significado renovador e revolucionário deste seu livro, composto de um texto crítico, um texto poético e um extratexto. E perguntou-se tudo menos o que interessava perguntar: Porque os reuniria o autor num só livro, sob esta legenda unificatriz: Luz Central?
Pela nossa parte responderíamos: Porque todos nascem e visam um «ponto central» , uma núcleo, uma fotosfera, como vamos preferir chamar-lhe. fotosferismo, eis talvez como poderíamos baptizar , até nova ordem, a teoria da criação humana que parece surgir com Ernesto Sampaio. A fotosfera no campo das ondas luminosas e a gravidade no campo das ondas magnéticas são, com efeito, os dois termos-chave para compreender o fotosferismo ou gravitacionismo de Ernesto Sampaio.
A gravidade em Luz Central (luz central ou fotosfera) ganha aliás três significados: o cósmico (ou meta-empírico) , o terreno e o antropológico ou ético. Puxados pela gravidade os corpos encontram-se no centro da terra. A gravidade , por sua vez, chama-se atracção celeste se acontece entre os planetas (sentido cósmico) . E se acontece entre dois corpos, chama-se amor (sentido ético). Por isso Ernesto Sampaio escreve: « À tendência irresistível no homem para o conhecimento que definimos por ponto central, empregando uma fórmula que todos os ocultismos mencionam («A grande obra é a conquista do ponto central onde reside a força equilibrante» - afirma Eliphas Levy, na sua História da Magia), a essa tendência irresistível, dizíamos, dá-se o nome de revolução. ».
A problemática proposta em Luz Central é ainda de uma gravidade como não conhecemos outra em prosadores filo-surrealistas, no intervalo da soneca que a crítica tem dormido , após os neo-realistas desgrenhados e as líricas bem penteadas. Nada há em Ernesto Sampaio que os lembre ou se lhes ligue: «Não há acto do espírito sem tormento moral, sem gravidade intrínseca, plena seriedade em cada olhar lançado sobre a vida. Esta gravidade constitui o mais sério reactivo contra a tentação literatizante: a mais absurda de todas as misérias espirituais.»
Ernesto Sampaio cita , é certo, Bataille e Henry Miller, Artaud e Jean Genet mas usa-os mais para companhia do que para mestres, mais para confirmação do que para afirmação.
Que de boas companhias lhe era mister rodear-se e prevenir-se em face do que o assediaria (e viu-se que assediou) . Mas é tão pessoal, tão segura, tão própria a palavra destes três textos, que melhor será convencermo-nos de que estamos perante um caso de geração espontânea. Claro que sim, que Ernesto Sampaio leu e leu muito e leu bem. Mas se leu, meditou ainda mais. Não é de quem se usa do alheio esta sintaxe tão diferenciada, esta consciência tão rigorosa e original das grandes verdades que o rosto das grandes mentiras mascara, esta gravidade de poeta.
Sim, de poeta. Além de outros «pilares gloriosos da nossa civilização» que vão desfazer-se em cacos, o pilar que divide o filósofo do crítico, o crítico do poeta, o homem que pensa do homem que ama, o que conhece do que adivinha, o que sente do que pressente, não poderá durar muito.
Ainda por respeito à crítica bem educada, Ernesto Sampaio divide o seu livro , conforme a terminologia académica, entre crítico e poético. Com o extra-texto, porém, joga a cartada indispensável à pesquisa da zona intermédia que é a caixa toráxica do divino espírito santo... Da zona que é a zona equatorial deste livro solar. Um pequeno exercício de cabala visual prefacia , por comiseração com as hostes de ontem e anteontem, o «texto poético». Mas a partir daí o sinal de amor incarnou, fez-se letra escrita, embora ainda por decifrar ou traduzir . Só sobre um campo minado de hipóteses vale a pena caminhar. Só num céu cruzado de sinais fosfóricos a viagem se realiza para todos os rumos. De hipótese em hipótese terá de ser visto e revisto o magma escaldante deste livro. Quem o tocar sem prevenção, escalda-se... A partir de agora, quem falar de amor, há-de saber o que diz, porque o diz, como o diz.
São de Raul de Carvalho , precursor de Ernesto Sampaio e mestre da novíssima poesia portuguesa, estes versos: «Quando falo de amor sei o que digo». E a verdade é que sabe e alguns mais o sabem. Dentro de uma variedade que pode oscilar entre o tradicional e o vulgar, os novíssimos poetas distinguem-se e aproximam-se por este índice comum: quando falam de amor, sabem o que dizem. Alegar-se-á que o amor foi sempre o «ponto central» de toda a poesia e nem só da de hoje. Mas claro que sim; e nisso é que a moderníssima poesia , reabilitando uma tradição tão velha como o homem, encontrando-se esgotados na lírica menor todos os caminhos, se formula como um dos mais belos gritos de liberdade absoluta que a humanidade já ouviu ( a que tiver ouvidos).
Hoje como ontem é o amor que os poetas cantam , mas tão diferente da de ontem é hoje a ontologia desse amor como um soneto de Camões o é d« Amor em Visita» , em cuja portada Herberto Helder , seu autor, transcreveu de Ortega y Gasset o seguinte : «
Herberto Helder é dos que podem, dos que sabem falar de amor. Devendo muito a alguns poetas «inteligentes», individualiza-se «na ciência de amor feita», ao contrário do «amor de ciência feito» que poetas evidentes e sem evidência nenhuma têm, em português clássico, sonetizado.
Um grande poema de amor como é o de Herberto Helder continua a experiência da tradição, não a que vem dos cancioneiros, mas outra, outra que vem de origens insuspeitas, de uma continuidade sem trânsito pela terra, fios que os historiadores se esquecem sempre de historiar na história conveniente. São os fios da história inconveniente os que o poeta descobre , é esse amor que ele renova e reabilita, é essa poesia de que ele nos dá a suprema sabedoria antes que os sabichões sabe-tudo a saibam.
Ernesto Sampaio chegou primeiro que os livros. Ele pode ter lido muito, mas depois de saber tudo. Os livros confirmaram a profecia, demonstraram as hipóteses, mas não disseram nada de novo. Antes de tudo, Ernesto Sampaio foi o profeta-poeta e só depois o teorizador, e só depois o estudioso, e só depois o crítico, e só depois o explicador do inexplicável. É o seu texto poético que explica o crítico e não , como se quis, o contrário, como fizeram os polícias sinaleiros da nossa crítica que não conhecem as direcções proibidas e só conhecem as de rodagem habitual. Com os binóculos invertidos, estão vendo as imagens muito em miniatura, quando a faina do crítico , hoje, só pode ser uma: colocar-se no centro da terra, na luz central, no fogo, na fotosfera ou centro de gravidade e deixar-se queimar com os poetas. Explicar a poesia , hoje, é explicar O Amor em Visita, o amor em catástrofe e em pena, o amor em princípio e em evolução, o amor em instante e em eternidade.
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Wednesday, October 04, 2006

G. ORWELL 1986

1-3 - orwell-1> temas recorrentes – os dossiês do silêncio

ANTECIPAÇÃO DA JOGADA - VITÓRIA DO «BIG BROTHER»(*)

[11/10/1986, «A Capital», «Crónica do Planeta Terra»] - Pode acontecer que um "tema proibido" (daqueles que tacitamente todos calamos porque seria heresia anti-social sequer citá-los) venha de repente à luz da ribalta e os holofotes se fixem nele como em vedeta de última hora caçada na chegada ao aeroporto.
Curiosa e inopinadamente aconteceu com a "informática" e respectiva ditadura, tema que automaticamente se tornou secreto, a partir do momento em que ficou claro que ao processo de informatização sistemática se devem pelo menos dois (pelo menos) dos mais chorados flagelos do mundo actual: o incremento do desemprego e a devassa da consciência individual e da vida privada.
É certo que o assunto foi badalado, há dois anos, quando se publicitou, a propósito da data, um livro propositadamente esquecido, o romance de George Orwell "1984".
É certo que relatórios de qualquer extinto Instituto Damião de Góis deverão ter, de fugida, citado o perigo para a Democracia do tal sistema computarizado de dados.
Enfim, na ficção e na semi-ficção, ou entre ecologistas fanáticos e radicais como o autor destas crónicas nestas crónicas, os alertas terão sido dados, de forma mais ou menos indirecta, não fosse magoar-se o sistema e o santo nome do "Big Brother

MUDOU A TÁCTICA

Que se faça agora uma reunião oficial de especialistas a dizerem cobras e lagartos da respectiva especialidade (a lavagem aos cérebros pela informática) e dos perigos para o cidadão comum, é caso para suspeitar de que a táctica de enredo mudou para melhor resultar.
Sim, porque a táctica de tramar o próximo pode mudar e muitas vezes já ficou provado que a melhor forma de silenciar um assunto-tabu é badalá-lo até à exaustão e antes que gente incómoda dele fale em termos obscenos.
Uma ditadura das antigas e clássicas terá dificuldade em perceber isto. Mas uma ditadura informática percebe (até) de dialéctica e sabe que as leis da lógica do absurdo têm razões que a razão desconhece. Não é com vinagre que se apanham moscas: e uma Comissão encarregada de nos proteger de outras comissões encarregadas de nos vigiar, no que respeita à devassa dos dados da nossa vida íntima e privada, é habilidade que se deve registar com elogios.
Em democracia "limpa", só ligeiramente musculada para não destoar, a táctica da bordoada muda de aparência para no fundo continuar igual. E quanto aos "beneficios da Informática" ela mudou por antecipação da jogada.
Talvez porque os computadores (sempre espertíssimos) tenham ensinado aos centros internacionais de decisão uma cruel verdade: convém não confiar exagerada e abusivamente na estupidez humana, quer dizer, na passividade das massas. Mesmo uma ditadura branquinha e de veludo como a informática pode chegar o dia em que o cidadão lhe veja as tripas, lhe tope as garras e lhe descubra as fauces.

REFINAR A FICÇÃO

A táctica, por isso, mudou: vamos pôr os dados na mesa e deixar que os jornais , durante uns diasitos, digam dos perigos, dos exageros, dos abusos...
Depois, arranja-se uma comissão que nos vai "proteger" desses abusos, desses perigos, desses exageros cometidos, como é óbvio, por outras comissões. E, depois, já esses abusos, exageros, perigos, poderão ser perpetrados livremente e sem mácula, sem que ninguém diga "ai", porque (lembrai-vos) , além do Grande Irmão que por nós vela, em tudo e sempre, lá está a Comissão que nos protege e dirá "ui" por nós.
Quem voltar a falar, então, na ditadura informática, é ameaçado por telefonemas e cartas anónimas. O silêncio e o segredo voltaram ao redil. A ditadura informática, depois deste interregno breve, voltará a ser assunto proibido.
Táctica de mestre, a da comissão protectora, e que talvez não tenha sido prevista por Orwell. Pois não: o que só prova como na realidade os factos ultrapassam a ficção, refinando-a.

PROCESSO IRREVERSÍVEL

As ditaduras que a democracia autoriza e fomenta não se impõem, é evidente, pelo fácies sanguinário mas conquistam corpos e mentes numa "boa" e com boas maneiras, com falinhas mansas, com paisagens tranquilas.
A ditadura informática, que já se sabia existir mas era sempre negada oficialmente, surge agora como uma revelação oficial, quando o Ministro da Justiça, Mário Raposo, dá o tom oficial ao encontro de especialistas que em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, lugar pouco dado a heresias, resolveu finalmente alertar oficialmente para os perigos dos computadores. Perigos ou, mais eufemisticamente, exageros.
Claro que os especialistas não se encontraram para assumir posição radical contra a ditadura informática. Ela está aí, escorreita, de pedra e cal, há uma Infor-jovem para lavar os cérebros logo desde pequeninos, todo o mundo elogia os computadores, todos lhe rendemos vassalagem e é evidente que temos e teremos a devassa que merecemos.
Agora que o processo se tornou absolutamente irreversível e em que o sistema informático já nos apanhou a todos na rede e nos vigia dia e noite, sem saída nem alternativa, eis que a bonomia das comissões protectoras aparece a defender os direitos do cidadão, como quem conta o final da anedota, sempre o mais picante.
Sim, porque uma democracia que viole, assim, como a informática está fazendo, os direitos do cidadão, na sua privacidade e na sua identidade, pode vir a ser acusada de conotações totalitárias... E as democracias democráticas têm uma imagem de marca a defender.

O MAU PASSA A SER BOM

A posição moderada do faz-que-faz-mas-não-faz é assim a única possível face à irreversibilidade do processo: vamos aprender a viver e a coabitar com as ditaduras que temos, já dizia o outro. Não adianta, pois, tomar posições radicais, ou eco-radicais, dizer agora que os computadores são a Super-Polícia.
Consumada a instituição, indissociável de todas as outras instituições, há que aguentar, enquanto oficialmente se cria uma comissão oficial encarregada de nos proteger.
A comprovar que ela funciona melhor do que no romance de Orwell e que já conseguiu, a tempo, condicionar as mentes para aceitar o inevitável, é este comentário ouvido a um espectador do filme "1984" : "Felizmente que Orwell se enganou na profecia e que em 1986 as coisas ainda não estão assim tão perfeitas como Orwell as profetizou..."
As coisas estão tão perfeitas e elaboradas relativamente à profecia que, por isso mesmo, o comum dos cidadãos não dá por ela. Ora isto prova que a tese dominante do romance "1984" vingou em toda a linha: a vitória do Big Brother está consumada quando bem for sinónimo de mal, paz sinónimo de guerra, beleza sinónimo de fealdade... E assim por diante.
O cidadão foi informaticamente condicionado a achar bom aquilo que porventura e sem esse condicionamento talvez achasse mau.
Haver quem não se tenha apercebido ainda que em 1984 as teses de Orwell já estavam ultrapassadas por terem atingido o máximo requinte de nem sequer se dar por elas, é a vitória absoluta do Grande Irmão.
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(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 11/10/1986