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*** MAGIC LIBRARY - THE BOOKS OF MY LIFE - THE LIFE OF MY BOOKS *** BIBLIOTECA DO GATO - OS LIVROS DA MINHA VIDA - A VIDA DOS MEUS LIVROS

Thursday, June 08, 2006

VANGUARDA 1970

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RECUSA À TECNICIDADE

14-6-1970

Na sua fase de crítica, recusa e contestação, os autores, grupos, revistas ou correntes que hoje se situam na vanguarda do pensamento e da acção, que hoje representam a revolta global e radical, insurgem-se não só contra a divisão do trabalho (originada na propriedade privada das forças de produção) mas contra a divisão dos conhecimentos, contra as antinomias e contradições cada vez maiores e em maior número que a cultura vigente estabeleceu no corpo e no espírito do homem contemporâneo.
Por isso a crítica ou revolta surrealista continua a servir de modelo actual e actuante para todas as formas de revolta e revolução posteriores.
Afogado de ciências e de especialidades, dividido e subdividido pelos campos particulares a que a ciência, na sua marcha analítica foi dando lugar, desintegrado e pulverizado, cindido e dilacerado, o homem contemporâneo (padrão ocidental) encontra-se doente porque se encontra dividido e a unidade, a síntese prometida ou pretendida afasta-se cada vez mais em vez de se aproximar.
Ora isto acontece mesmo em sociedades onde uma nova ordem ou revolução, colectivizando as forças de produção daria, em princípio, lugar a uma não divisão do trabalho e esta, por sua vez, a uma não divisão de conhecimentos e assim sucessivamente. Também nessas sociedades o homem se encontra cindido por insuportáveis dualismos e antinomias, sem conquistar (ou recuperar) a unidade almejada. A unidade que é equilíbrio, saúde, felicidade, liberdade (todas estas palavras são sinónimos).
Não admira, portanto, que a revolta ou revolução juvenil (por exemplo), partindo da recusa global ao modus vivendi cultural (e nem só político ou económico) procure, na sua fase de afirmação, integrar-se em comunidades primitivas que lhes propiciem, ainda que artificiosamente e sem esperança (pois a "grande" sociedade as reabsorverá de novo, no seu torvelinho e turbilhão), uma habitat mais humano, mais próximo da unidade e da integração primordiais, fora das quais a existência se torna algo de insuportável.
Não admira que as atenções se voltem para a disciplina de outras culturas, para o esoterismo ou o ocultismo, para o zen-budismo ou para o ioga hindu, para a cabala ou para a tradição hermética, onde, pelo menos aparentemente, o processo divisionista e desintegrante da tecnicidade ou tecnologia ainda não chegou ou, se chegou, não foi tão longe.
Não admira que se rebusque uma pedagogia de tipo iniciático, que ofereça o que a pedagogia exotérica não dá: o reencontro do homem consigo mesmo, o seu reequilíbrio psicosomático, o material e o espiritual em harmonia, enfim, todas ou quase todas as antinomias resolvidas numa síntese natural, espontânea, viva.
Pois só na síntese existe vida, e o homem da cultura ocidental encontra-se Literalmente perdido num movimento de análise sem freio e sem retrocesso, desmembrado, repartido, desfeito, morto.
Não admira que, sentindo-se morto (alienado), volte todas as suas energias para ressuscitar. Ainda que os caminhos escolhidos estejam errados, aquilo de que foge é uma realidade e um facto, inenarrável fonte de inenarráveis angústias e sofrimentos. Nada mais humano que o homem fuja ao sofrimento.

J. FARRELL 1967

1-3-farrell-1-ls> domingo, 22 de Dezembro de 2002-scan

O MUNDO QUE JAMES FARRELL NÃO FEZ(*)

«Que possuí eu já alguma vez? Nada!»
James Farrell

[8-6-1967, in «Jornal de Notícias»] - Farrell não goza ainda hoje da popularidade que merece. A sua obra, de longe muito acima de alguns prémios Nobel e Pulitzer, supera em qualidade a de muitos autores americanos no entanto internacionalmente célebres.
Farrell enfileira entre os escritores «malditos» dos Estados Unidos. Que também os há e houve no país dos best-sellers literários.
Em Portugal, depois de uma pequena novela – Um Homem e uma Mulher – de importância muito relativa na carreira de James Farrell, foi publicado «O Mundo que eu não Fiz», primeiro volume da sua obra de base. É com ele que podemos e devemos encetar a viagem a um dos escritores mais fascinantes que a América de língua inglesa nos tem dado, tão fascinantes como Henry Miller, embora de repercussão menor na Europa. E de características afins, a começar no teor autobiográfico, seguindo-se o uso livre de uma linguagem libérrima e finalmente a utilização da literatura como arma de vingança, superação e «salvação» pessoal.
Não se encontra em Farrell o repositório crítico e o testemunho acusatório de toda uma civilização como em Henry Miller, mas essa crítica é nele dada por uma galeria de personagens vivendo em condições de tal modo miseráveis e alienatórias que a sociedade aparece retratada, em negativo, indirectamente em questão e em cheque.

FIGURAS PSICOLÒGICAMENTE CARACTERIZADAS

Tal abundância de figuras psicologicamente caracterizadas e diferenciadas, aliás, o distingue de um Miller que fala de si, exclusivamente de si, com os outros em pano de fundo indiferenciado.
Farrell, ao contrário de Miller, percorre ainda todas as gamas do romance clássico, desde os esquemas canónicos da intriga, ao desfiar progressivo da acção e às figuras delineadas, ponto por ponto, sobre um fundo de dramas, episódios, anedotas e eventos reciprocamente en-quadrados também à maneira clássica. Talvez isto explique a pouca voga de Farrell na Europa, onde as tendências de cortar com a linha clássica do romance eclipsaram, por algum tempo, os autores que nessa linha se mantiveram.
Há, no entanto, atributos neste romancista que me parecem de indiscutível modernidade: a sua tesoura crítica, a sua mordacidade impiedosa para os instalados, a sua dostoievskyana - piedade para os humilhados e ofendidos, o seu sen-tido da linguagem oral e coloquial, e, acima de tudo, a riqueza semântica do seu «argot». 90 % de «O Mundo que eu não Fiz» é diálogo. A libertinagem das palavras, aliada ou não a certo frenesi erótico das personagens, são os mecanismos de que Farrell se serve (tal como Henry Miller) para a libertação, a suprema libertação de uma moral que escraviza sexual e espiritualmente os indivíduos. Tal como as blasfémias anatematizam o sagrado que assume a forma de um Jeová tirânico e vingativo, o calão é o exorcismo que liberta os indivíduos, simultaneamente, dessa tirania e desse anátema.
Serve de base à narrativa de «O Mundo que eu não Fiz» um grupo familiar, de ascendência irlandesa e de magérrimos recursos económicos, onde todos lutam pela sobrevivência e procuram melhorar a sua precária situação, à custa muitas vezes daqueles a quem mais querem. O romance narra essa luta no seio da família, na linguagem crua e directa dos pobres, dos que não tendo polimento de linguagem, são mais espontâneos e puros nos seus afectos, nos seus impulsos de amor ou de ódio. Há cenas de inaudita violência verbal, neste livro que parece ter servido ao seu autor de exorcismo.
Farrell, nascido em 1904, publica o livro aos 32 anos, primeiro «painel» de um tríptico autobiográfico onde se propõe contar a vida num bairro suburbano de Chicago, miserável bairro suburbano de Chicago, miserável bairro de uma cidade milionária de um país multimilionário: reportagem dos seus anos de infância, cheios de luz e de sombras, de amizades e rancores, de surpresas e descobertas.
Talvez sem o saber, Farrell escreveu um documento contra o racismo, generalizando os preconceitos de raça que atribui a certas personagens aos mais distantes limi-tes em que eles podem vigorar, inclusive a própria religião. Também aí, denuncia a hipócrita virtude de «um mundo que ele não fez», mundo onde os negócios de Deus estão sempre, por cupidez ou miséria dos homens, subordinados aos negócios da terra; mundo onde se invoca a divindade mas para salvaguardar antes ou depois os interesses da posse; mundo onde se aconselha a moral cristã mas logo a seguir se contradizem os preceitos dessa mo-ral pela maldade das acções e das palavras; mundo que ele tenta re-dimir e perdoar, mas que primeiro denuncia e acusa.
Farrell amalgama as suas pes-soas, atira uma contra as outras, na inevitável luta da sobrevivência, mas num derradeiro esforço procura salvá-las pela ternura e conclui que o ódio une a humanidade tanto como o amor, o ódio é a outra face do amor. À maneira de Carlo Coccioli, Farrell diz-nos que as pessoas vivem indissoluvelmente ligadas e que as explosões de ódio são apenas a outra maneira de saber que estão vivas, a única maneira de o amor se manifestar numa sociedade onde a miséria e a abjecção fundamentalmente o negam e degradam. A partir de tal profissão de fé, compreende-se porque as famílias defendem tão ciosamente esse círculo «sagrado» (embora se digladiem dentro dele) e porque se armam de preconceitos racistas, à falta de um motivo menos cego, menos injusto e manos irracional.

AFONSO CAUTELA

James Thomas Farrell - romancista americano, nasceu em Chicago em 1904. No seu primeiro romance, Young Lonigan (1932) conta a história de um pequeno irlandês dos bairros pobres de Chicago. Dar-lhe-á depois sequência em 1904, com A Juventude de Studs Lonigan e em 1935 O Último Julgamento, que descreve a agonia do herói. Publica depois um romance auto-biográfico em quatro volumes: Um Mundo que eu não Fiz (1936), Nenhuma Estrela Está Perdida (1938), Pai e Filhos (1940) e Os Meus Dias da Ira, onde se mostra discípulo de Theodor Dreiser.

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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em 8-6-1967. A nota bio-bibliográfica foi premonitória, pois das 5 enciclopédias que hoje consultei para confirmar os dois ll de Farrell, só uma – a Larousse brasileira – respondeu. As outras são omissas sobre um dos maiores escritores de todos os tempos. O que me deixa mais tranquilo quanto ao destino da minha posteridade...
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ATLÂNTIDA 1997

claudio - diário do gulag 97 - mein kampf 97

OS AFUNDAMENTOS DA ARQUEOLOGIA

+ 3 PONTOS

I
8/Junho/1997 - O esquerdismo em Arqueologia tem destas situações . E se se acrescenta um background de Expo98, em vias de pôr o país do avesso (há quem diga de pantanas) , atinge as culminâncias . O que, para cientistas, não é nada mau nem desadequado.
Na respectiva revista, dita modestamente boletim, modestamente intitulado «Informação» (Maio/1996), lá fomos encontrar, com um modesto P.B. a assinar, a notícia do século: Cláudio Torres, mais conhecido  na estação arqueológica de Mértola, dissera em Beja, capital da Reforma Agrária, a palavra definitiva sobre a lenda mítica e o mito lendário da Atlântida.
Todo o mundo da arqueologia - desde a ala pré-histórica à pós moderna - tremeu e estremeceu com as revelações, de teor divino, que o Prémio Pessoa lançava sobre tema da sua especialidade.
Facilmente se passa de uma igreja cristã construída sobre uma mesquita islâmica para a Era da Atlântida. Questão de minutos, para quem navega no oceano infinito da sabedoria. A aurora boreal nunca foi problema para um arqueólogo .
A Expo98 arruinará de vez o País, por isso os políticos lhe chamam «projecto nacional» («projecto nacional de destruição», dizem outros). Mas é graças ao boletim da Expo98 que nós, mortais e contribuintes de que tais farras, pudemos saber a notícia do século: ou seja, que, por revelação divina, o ilustre arqueólogo Cláudio Torres, com o Prémio Pessoa no currículo, decretara a extinção da Atlântida, à qual, Atlântida, segundo Atienza, a bibliografia mundial dedicou, até hoje, milhares de volumes, sem contar o do Platão. Volumes que o Dr. Cláudio Torres, com certeza, já leu, de fio a pavio, passando, entretanto, pelas escavações islâmico-cristãs da sua predilecção.
Fica bem, aliás, a um arqueólogo ser literal e mentalmente pré-histórico, sem nunca ultrapassar a barreira do som, nestas coisas, mesmo que se profiram, para a imortalidade, algumas barbaridades bem maiores que a Atlântida e que irão concorrer para afundar a arqueologia oficial.
II
À medida que se recua no tempo, vamos encontrando sinais de que a Idade de Ouro, chamada também Paraíso, está mais perto.
Mas em nenhum território como a Mesopotâmia, a cadência da decadência se faz ouvir com tanta nitidez e clareza.
Desde o actual Iraque,  até à  Babilónia, que fazia corar de vergonha os pobres hebreus idos da modesta Jerusalém, passando depois à Assíria e seus exércitos , vamos, finalmente, em tempos mais remotos, encontrar a Suméria, onde restam sinais e ecos da voz dos deuses.
Os arqueólogos dizem que foi o berço da civilização. Mas a Suméria foi antes a creche, tendo recebido o bebé que nasceu na Lemúria.
III
De permeio, os arqueólogos que temos preferem dizer que é preciso desmistificar a Atlântida. Mas porque não desmistificar antes os mistificadores profissionais da arqueologia oficial?

Esquece o Dr. Cláudio, que até os soviéticos, na época áurea das suas missões arqueológicas submarinas, vinham, de batiscafo em punho, submergir no mar dos Açores à procura da Atlântida.
A não ser que os soviéticos, da simpatia arqueológica do Dr. Cláudio Torres, viessem pesquisar nos fundos açorianos, em tempos da ditadura, outros tesouros e a Atlântida, essa mistificação direitista, fosse apenas o cenário de pretexto para expiarem o mar dos Açores. Nunca fiando.
Desde que recebeu das mãos do eng. Balsemão o Prémio Pessoa, o arqueólogo de Mértola recusa explicar à TVI, como e porque é que a centena e meia de estações arqueológicas do Baixo e Alto Alentejo vão ficar submersas pela albufeira da barragem de Alqueva, ele que, em missão científica, andou pelas margens do Coa, a fazer coro com os que por lá andaram , com o Dr. Mário Soares, defensor do ambiente e do budismo.
Tudo depende do local e das circunstâncias . Claro: ele não iria defender a arqueologia alentejana, se para isso tivesse que interferir no projecto de Alqueva, apoiado pela maioria de esquerda e sancionado pelo cavaquismo.
Podia ao menos ter aproveitado uns trocos do  prémio para comprar os livros de James Churchward sobre o continente perdido de Mu. Seria interessante que o ilustre arqueólogo de Mértola aprendesse como se afundam civilizações. Como se afundam arqueólogos e arqueologias.
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LINHAGEM 1995

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A LINHAGEM DOS DEUSES E A DÉMARCHE HOLÍSTICA

+ 5 PONTOS

Lisboa, 8/6/1995 - 1 - A big questão dos diversos contributos de sistemas culturais não é tanto o seu valor intrínseco - após séculos de minimização sistemática pelos modelos da cultura dominante, totalitária e colonizadora - (embora o seja também), mas a sua origem, a sua fonte, a sua linhagem.
Da linhagem ininterrupta dos deuses se reclamam os principais sistemas, como, por exemplo, o budismo tibetano.
É aí que está, de facto, a grande questão para saber que sistema é hoje suficientemente poderoso para constituir alternativa absoluta ou o guindaste capaz de nos tirar do atoleiro.
O naif de algumas culturas como os Dong do Mali, estudados por Teresa Vergani, no seu livro «Os Excrementos do Sol», é um contributo, mas não é um contributo alternativo.
Só um sistema que nos ensina, na teoria e na prática, a religação ao sagrado, a forma técnica de aceder à lei cósmica e o modus faciendi de vibrar em consonância com ela, nos pode retirar do imenso Atoleiro moderno.
Os sistemas que não são, portanto, «atrasos de vida» (e há centenas) são, no seu melhor, incompletos. E os extremos de autodestruição a que a lógica da Era dos Peixes nos conduziu, só podem ter saída com um sistema capaz de superar essa lógica.
2 - Sofismas em ciências humanas - Em Ciências humanas, há um sofisma central:
Num 1º tempo, foi a dominação totalitária da cultura ocidental sobre tudo o que se encontrava na sua órbita colonizadora, escravizante e etnocida
Num 2º tempo, a ciência, tomada de má consciência, decidiu mostrar-se anti-colonialista e resolveu debruçar-se sobre aquilo que anteriormente tinha ajudado a mandar chacinar
Num 3º tempo, a ciência etnocida decide esmagar-nos outra vez com a diversidade: tudo então é bom, desde o naif dos «povos primitivos» aos grandes sistemas do sagrado como o budismo tibetano, a kabala, o ayurveda, o taoísmo, o sufismo, etc.
Num 4º e último tempo que vai ser já depois do ano 2000, vamos aprender a (rigorosamente) distinguir as ciências profanas das 12 ciências sagradas e aí, sim, hierarquizar, a importância e o valor relativo de todas elas, dos vários sistemas de coerência.
E, provavelmente, vamos encontrar, na fonte de toda a civilização, aquilo que a civilização tem omitido: O continente da Lemúria ou Mu.
3 - O Naif é óptimo - mas pode servir para prorrogar a ditadura totalitária da perspectiva ocidental. Como se percebe, por exemplo, do sr. Fritjof Capra e de outras démarches holísticas, alegadamente bem intencionadas.
4 - Mística e Magia operativa - Uma das diferenças entre um sistema Naif e um sistema cultural (energeticamente) «elevado», é que o naif não sai da esfera da prática mística ou «extática».
O chamanismo, por exemplo, é uma excepçção das chamadas culturas primitivas - porque é uma iniciação, diferenciada do «extase» místico.
Mas a maior parte da magia e da feitiçaria africanas, não partilham esse aspecto iniciático e por vezes nem sequer o místico. Não podem ser, à conta de diversidade cultural, postas no mesmo pé.
A magia operativa, aliás, está no centro da questão e é fundamental para se poder decidir entre uma cultura de determinado nível vibratório e outra cultura de nível energético indiscutivelmente inferior.
Porque sem hierarquia de níveis vibratórios não existe civilização nem cultura. Nem sequer vida. E essa hierarquia tem que ser respeitada, para que haja cultura, civilização, vida.
E quem diz hierarquia diz linhagem.
5 - O que nos cativa nas culturas ditas primitivas é a unidade indissociável das suas experiências, das suas vivências, em contraste com a atomização pulverizadora dos sistemas ocidentais - levados ao extremo do patológico. Mais próximos da Unidade que o ocidental perdeu, é ainda o ocidental que vai detectar neles, estudando a diversidade, esse núcleo de identidade.
Palavras como sistemia, holística, global, entraram no léxico corrente das preocupaçãos ocidentais, soterrados que estamos no atoleiro da Análise e da Hiperanálise.
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VIOLÊNCIA 1968

68-06-08-di> quarta-feira, 11 de Dezembro de 2002-scan

O CICLO VICIOSO DA VIOLÊNCIA(*)

8-6-1968 - O ciclo vicioso da violência pode impedir que se ajuíze com segurança e serenidade sobre o significado dos crimes políticos que, cada vez mais próximos no tempo, assinalam de tragédia a história contemporânea dos Estados Unidas.
Na sua ambi-guidade característica, a violência é lógica e, ao mesmo tempo, absurda. Se diariamente o hábito da morte provocada já não suscita nem repulsa nem emoção, é no entanto porque ainda esperamos dos homens alguma coisa que vemos explodir, em todo o mundo, um clamor de indignação.
Todos os dias se cometem crimes, todos os dias as balas servem para abater pessoas como animais, uns e outros vítimas inocentes de um ciclo que alguns supõem vicioso, sem termo e sem saída.
O crime político tem outro peso mas, no contexto em que se sucederam as mortes dos irmãos Kennedy e de Luther King, ou de outros homens e mulheres menos famosos mas igualmente adeptos dos mesmos princípios e soldados da mesma causa (a do pacifismo e da revolução não-violenta), para lá das repercussões políticas imediatas, a humanidade que ali se joga e perde é a mesma.
Um crime, seja ele qual for e onde quer que se pratique, compromete-nos a todos. Queiramos ou não, obriga-nos a reflectir sobre aquilo em que, nas nossos actos quotidianos, ou com a nos-sa indiferença e abstenção - contribuímos para o tornar possível, em que o consentimos. É fácil depor a culpa na arma e mão assassinas, mas todos deveremos relembrar que a parte compromete o todo e que todo o acto individual responsabiliza universal e virtualmente o seu autor.
Só por isso as vítimas de crime político têm peso diferente dos crimes comuns, e por isso também tão próximas se encontram das vítimas de crimes de guerra. São os mesmos os problemas que levantam e as responsabilidades que engendram aos vivos, aos que ficam, aos que ainda não foram abatidos, neste ou naquele lugar da terra, nos Estados Unidos ou no Vietname, aos inocentes que são todos os culpados e aos culpados que são todos os inocentes.
Nos atentados de Dalas, Memphis ou Los Angeles, importa não ver actos isolados de malvadez e delírio neurótico, casos, portanto, de psiquiatria social. São antes produtos de uma complexa estrutura de correspondências e, como todos os acontecimentos de significado político (ou sociológico) levam em si uma gama de implica-ções que só a percepção englobante explica, que só um critério totalizante explica.
Porque evidenciar um culpado para ocultar o sistema ou grupo que conspirou, pretender explicar como o todo uma pequeníssima parte do processo, é mecanismo mental que preside à especulação demagógica e, portanto, a todos os crimes, passados, presentes ou futuros.
Nas nossas mãos talvez não esteja modificar o sistema, conciliar grupos rivais ou inimigos, sustar a mão assassina ou denunciar e reabrir processos arquivados, como se diz que Robert Kennedy pretendia, uma vez no Poder; mas resta saber até que ponto a duplicidade e a especulação gratuita podem deformar a verdade ou lógica dos acontecimentos e as hipóteses mais prováveis, mais inteligentes, mais justas para os explicar.

16 de Junho de 1968 - A democracia, de facto, permite a proliferação de grupos extremistas - racistas e fascistas, que programam e praticam a violência - e a sua infiltração na vida pública, de forma que lhes é muito fácil pôr em prática a teoria do crime sistemático, relembrada por Truman Capote, a propósito do assassino de Robert Kennedy (Sarahan) e do livro de madame Blavatsky que pediu para ler na prisão.
Com que fim?
Certamente, o de fazer prevalecer o terror e aniquilar os restos democráticos da política norte-americana. Não se compreenderia que tais crimes fossem praticados pelos que desejam
a não-violência, o pacifismo, a democracia e a coexistência - que era exactamente o que procuravam os assassinados.
No entanto, houve leaders da violência também assassinados e, se a conjura existe, essas mortes podem atribuir-se à mesma e referida doutrina: trata-se de desmoralizar o sistema democrático, não o que existe de facto e na prática mas aquele em nome do qual falavam os Kennedy ou Luther King e em nome do qual foram assassinados: e para isso servem todos os alvos, e quanto maior for a mistura, melhor.
Aliás, se é lícito ir procurar num ajuste de contas partidário - perpetrado pelo bando rival - a causa dos crimes, também seria lícito invocar a cadeia de crimes como vinganças sucessivas: e explicar, por exemplo, o assassínio de Robert Kennedy como vingança dos partidários de Rockwell, assassinado em (???).
Por outro lado, o assassínio de Rockwell, dentro desta lógica, seria consequência da vingança perpetrada pelos partidários de Robert Kennedy ou Luther King ou John Kennedy,mas a contradição é evidente: é lícito mas menos lógico aceitar que os partidários da não-violência aceitassem, mesmo por vingança, o crime como método.
Mais do que a hediondez do crime, em si mesmo irredutível e irremediável, são de sublinhar as tentativas logo verificadas, perante os nossos olhos atónitos, de distrair as atenções e des-pistar-nos do verdadeiro sentido, do verdadeiro alvo, do verdadeiro significado do acontecimento. Mais criminoso do que o próprio crime, parecem-nos ser as tentativas de atribuir a causas grotescas e pueris, o nefando acto, o hediondo acto, ou especular com ele para fins que, no fundo, são indirectamente cúmplices, na medida em que contribuem para a atmosfera de confusionismo e mentira propícia à histeria criminal.
Um acontecimento com o peso e significado de um assassinato político não pode interpretar-se como um evento episódico ou anedótico, resultante de uma mania súbita, de um acesso de cólera individual ou de uma vingança igualmente pessoal, antecedida de rancores e ranger de dentes.
Por incrível que pareça, vimos quem se regosijasse com a morte do senador Robert Kennedy, porque isso "vinha demonstrar onde conduzem as democracias e a liberdade de cada um fazer o que quiser.» Vimos quem se regosijasse, porque isso vinha demonstrar também a corrupção reinante nas esferas partidárias, mormente em períodos eleitorais, onde o dinheiro tudo compra e onde tudo se vende. Vimos os indiferentes e vimos os que reagem por emoção epidérmica.
Quaisquer deles deslocam o problema do seu eixo de equilíbrio, indo procurar culpas e culpados onde eles não estão nem podiam estar, ou em fases e causas demasiado recentes, quando a verdade é que as raízes da violência se devem procurar bastante mais longe: onde há opressão e onde o homem explora outros homens, inicia-se o ciclo infernal cuja ambiguidade, cuja irreversibilidade se pode lamentar mas cuja natureza não deve hipocritamente ocultar-se.
Violência engendra violência, é certo, mas no fundo e na origem do primeiro gesto de ódio está o desprezo, o cinismo, a opressão, a exploração do mais forte e do mais poderoso sobre o mais pobre e o mais fraco.
Não pode nem deve esquecer-se, ou desviar-se para outros alvos, a causa das causas que explicam a violência, quer ela se exerça sobre os homens mais poderosos da terra quer quando se manifesta até por explosões de ódio e de crime entre os mais fracos, deles entre si.
Para os que acreditam nas situações paroxísticas e nas "crises curativas" em política internacional, a cadeia de crimes políticos ocorridos de há 4 anos para cá, nos Estados Unidos, deverá conduzir, inevitavelmente, a uma saída salvadora.
Ainda que várias vitimas tenham de seguir-se, e a violência varra esse país da opulência por alguns anos ainda, o caminho de reforma terá que dar lugar a um caminho de total revolução. Para os becos sem saída, só há uma saída. Quando se chega ao mais fundo desespero, é que a esperança surge. Quando o homem lobo do homem se entredevora de maneira tão eficaz, só um caminho de superação dialéctica (que é diferente de reforma e coexistência conciliatória) se apresenta.
Sempre que um crime político sobressalta e aterra as consciências dos homens justos do mundo, cada um de nós deveria meditar na função que é a sua e no concurso que dá ou se recusa a dar à guerra ideológica.
Porque na guerra ideológica continuam a radicar as últimas e verdadeiras causas dos grandes crimes; a causa verdadeira e última da mão homicida é sempre o mesmo fenómeno: o espírito de fanatismo erigido em regra, em lei, em justiça.
No entanto, o que se verifica é que se consumam os crimes mas a guerra ideológica que os tornou possíveis continua. O crime, instigado e perpetrado por culpa dessa guerra, é depois e novamente, num circuito infernal de vinganças, aproveitado para reacendê-la.
Homicídio ou genocídio, a fonte dos crimes históricos é o fanatismo ideológico. Ou, pelo menos, é sempre em nome de nobres ideais que se mata com mais gosto e fúria.
Saber a verdade, toda a verdade e só a verdade - eis a grande preocupação dos homens depois dos grandes e pequenos crimes.
Mas como é possível saber a verdade, toda a verdade e só a verdade, se cada órgão encarregado de a investigar, e transmitir, a modela e deturpa e transforma e comenta e corrompe?
Onde estão afinal os órgãos de informação que não sejam órgãos de propaganda? Onde está a imprensa como força responsável, que em vez de atear o incêndio ideológico responsável por tantos crimes, contribua para mais verdade e menos ideologia? Onde está o jornal que corrija os desmandos ideológicos das facções partidárias?
Nem sempre se vê claramente a ligação (possível, provável) entre alguns crimes políticos a que vamos assistindo - nos Estados Unidos, estes quatro últimos anos, por exemplo - e o processo lento, persistente, subterrâneo de envenenamento público feito através das propagandas, das histerias ideológicas, da demagogia, dos estereótipos formados e fomentados por essa histeria. E nem sempre se vê claramente a utilidade prática do pensamento crítico, da objectividade na informação.
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(*) Este texto de Afonso Cautela deverá ter permanecido inédito e com toda a razão: não são coisas que se digam em público.
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Wednesday, June 07, 2006

A EXPERIÊNCIA SURREALISTA (1960-1970)

1-2 - 70-06-07-S & S

O DESAFIO ESOTÉRICO (1)

[(1) - Prefácio ao livro "A Experiência surrealista", ensaios polémicos - I (1960-1970)]

7/Junho/1970

Se o surrealismo não tivesse aplanado o terreno, ainda hoje constituiria uma perigosa heresia ouvir e aceitar o desafio que das vozes esotéricas chegam até à cultura ocidental, instalada nos seus fracassos, roída nas suas antinomias e contradições, afogada na proliferação de conhecimentos particulares e na análise sem síntese, na hipertrofia da análise e na atrofia da síntese.
Cada um poderá, do surrealismo, retirar o que mais lhe importe, sofrê-1o e vivê-lo com maior ou menor intensidade. Ele não deixa de constituir uma etapa histórica nesse caminho percorrido a medo para a Grande Obra, para o Ponto Central, para a Suprema Unidade, enfim, para uma coexistência entre ocultismo e ciência revelada.
Hoje, o tema do zen-budismo, por exemplo, já constitui matéria de dissertação para respeitáveis autores e revistas de pensamento, A alquimia começa a não ser confundida com primário misticismo. E a arte fantástica descobre-se como filão rejuvenescedor da arte moderna, sem desdenhar as suas filiações cabalísticas e herméticas.
Enfim, após quarenta anos de polémica, o surrealismo conseguiu tornar correntes e até lugares-comuns alguns dos seus dados fundamentais, na época pioneira tão rudemente combatidos ou desprezados. Combatidos principalmente em nome do progressismo.
Torna-se hoje mais fácil aceitá-lo como ponto de convergência de muita coisa que importa dizer e que seja dita. Torna-se hoje possível tomá-lo como encruzilhada da mais recuada (no tempo) linhagem esotérica e das vanguardas que preparam hoje a arte e o pensamento de amanhã. Até das que anunciam uma revolução cultural.
Quando menos se esperava, vimos a contestação de Maio, em França de 1968, sacar do surrealismo muitas palavras de ordem e slogans de cartaz ou parede.
Edgar Morin considera o surrealismo "poético, no soberano sentido da palavra, o movimento que se fundamenta numa noção total e radical do homem. É – afirma - a primeira pré-figuração na história da humanidade, daquilo que poderia ser um movimento antropológico, em relação aos movimentos limitados em seus meios e seus fins, em relação ao humanismo exangue."
Isto dito por Edgar Morin não é dizer pouco.
Não deixa, portanto, o surrealismo de mostrar insólitas virtualidades e até pelas heterodoxias a que deu lugar se enriquece.
O "realismo fantástico" que data de 1960 - Le Matin des Magiciens - veio prolongar (desvirtuar, segundo os ortodoxos renitentes) e provar as mil metamorfoses possíveis da experiência surrealista.
O desafio do "oculto" continua a ser um facto e a heresia fascina cada vez mais os que procuram o rosto total do homem.
Neste livro, pois, a uma perspectiva bastante pessoal do surrealismo - testemunho que só tem o valor de ser uma das interpretações possíveis do surrealismo - acrescenta-se uma documentação relativa ao que, dentro e fora da ortodoxia, perto ou certo foi escrito e feito a pretexto.
Não pretende este livro retirar aos surrealistas de facto o direito de serem eles a fazer, em Portugal, a verdadeira história do movimento, e a se apresentarem como os autênticos e únicos porta-vozes. Mas pareceu-me que um testemunho sobre o surrealismo tal o vi, vivi e conheci, mesmo muito à margem, tem ao menos o mérito de mostrar que até aos mais relapsos, até aos mais incapazes de o merecer e seguir, até aos heterodoxos e heréticos ele teve, tem e terá o condão de fascinar, e marcar de maneira decisiva.
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(1) - Prefácio ao livro "A Experiência surrealista", ensaios polémicos - I (1960-1970)
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INTELIGENTZIA 1971

diário71-2> inédito de 1971 – diário de um idiota – mein kampf

O BALANÇO DA CIVILIZAÇÃO

7/Junho/1971 - A proliferação desordenada de estímulos, factos, ideias e conhecimentos, parece ser a característica dominante da cultura a que se chama tecnológica.
A bio-resposta parece ser também uma proliferação desordenada de células e respectiva patologia chamada cancro.
Em ambos os casos, o processo de sub-divisão, hipertrofia, multiplicação e congestionamento, encontra paralelo no congestionamento urbano e, como ele, é sintoma de doença, de engarrafamento, sem horizontes de cura.
Quer no campo social, quer no campo cultural (ciências e conhecimentos), quer no campo vital (!), a civilização é cancerígena.
Dentro desta tendência para a multiplicação, não admira que se multipliquem os simpósios pare obviar à multiplicação, congressos, encontros, semi simpósios, etc (nenhuma palavra define tão bem a civilização anarco tecno-analítica, como esta: etc) que tentam fazer o balanço, a síntese, o ponto de tantas disciplinas. Fala-se então muito de actividade inter-disciplinar.
Afogado em tanta especialidade, meio maluco de técnicas e tecnicismos, o especialista não tem tempo de se coçar quanto mais de filosofar sobre o alcance da sua profissão: convidam-no então, de vez em quando, a participar em alegres comícios onde se filosofa sobre a ausência da filosofia, onde se apresentam sínteses das sínteses que não existem, onde se lamenta com profundíssimas análises o mal da hiper-análise, onde maniqueisticamente se critica o maniqueísmo do dualismo plato-kantiano e arredores. Onde, em suma, com palavras, se pretende fazer frente à civilização da Verborreia verbal e em papel se combate a civilização do papel. Onde se propõe mais meia dúzia de ciências a haver, que venham resolver problemas criados pela multiplicidade das múltiplas ciências que já havia.

30/8/1971 - Entre a vasta gama de funcionários que servem a ordem burro- tecnocrática, há um curioso “gang" encarregado da propaganda, que exerce a opressão intelectual mais crua e crassa em nome da mentalidade científica e da ciência, sempre!
Característico desse funcionalismo (público) é uma atitude de sistemático achincalhamento de tudo o que, esse mesmo funcionalismo, decide a priori e sem crítica, sem estudo, sem conhecimento, classificar de impostura irracionalista. É impostura irracionalista tudo o que convém à ordem vigente.
Chovem, então, as "desmistificações" da astrologia, do budismo, da mística cristã, do mito, da magia, de tudo, enfim o que, sob o anátema do "obscurantismo irracionalista" os tais funcionários do regime entendem pôr fora de campo, e porque não entendem, e porque lhes faz engulhos, e porque os incomada, e porque os desmascara.
Muito corrente, também, nesse gang de funcionários, é a constante e histérica alegação de que se encontram ao serviço da ciência, de que tudo neles é científico, de que a racionalidade e o espírito positivo rege todos os seus actos, desde a privada (vida deles) até à pública.
Entre nós ouvem-se muito os experimentalistas, os da arte cibernética, os da crítica estruturalista, os da nova crítica e já se ouviram os do neo-realismo, os (ditos) marxistas , os alto lá com o charuto muito científicos todos que se fartam.
Vai-se a ver é tudo - de um ponto de vista efectivamente científico - uma grande droga, porque, além de não coserem duas ideias seguidas que se digam coerentes e lógicas, a "ciência" deles está-se mesmo a ver qual é: a dos manuais que empinaram em qualquer escola para vomitarem em qualquer exame diante de qualquer professor, com vista ao lugar de presidente, professor ou chefe de qualquer coisa. Essa é que é a grande ciência que eles arrotam e nos atiram à cara, com que pretendem calar-nos e tachar-nos de reaccionários, de impressionistas, de obscurantistas, de místicos e de charlatães ao serviço da mais negra irracionalidade, da mais anti-científica impostura, etc, etc.
Na medicina, por exemplo, é cada tonelada de ciência que a gente fica esmagado. Tudo em nome da ciência - incluindo as drogas farmacêuticas, as transplantações e as teorias alimentares que até já os da profissão provaram estar erradas.
É que, além do mais, esses "cientistas" ignoram que a sua famosa "ciência" - não a que eles criaram, mas a que se limitam a usurpar, remastigar, devorar, reproduzir, avacalhar, - não pára de evoluir, porque não é mais nem menos do que um frágil edifício de "teorias" (de hipóteses), constantemente postas à prova na prática e dentro da realidade, sobre as quais teorias nada de eterno, definitivo, imutável e dogmático se pode construir, sobre as quais teorias se vai edificando, portanto, uma prática sempre precária e provisória e transitória, tanto mais frágil e vulnerável ( a prática), quanto menos os tempos vierem comprovando a verdade, a racionalidade, o fundamento e a fertilidade dessas tais teorias.
Assim é que, perante os histéricos lacaios de uma ciência que o deixou de ser a partir do momento em que se transformou em dogma, a partir do momento em que cristalizou e deixou de evoluir (não há ciência que resista ao seu uso e abuso dogmático, incrítico) o investigador out-sider continua a ser considerando um "impostor", um "curandeiro", um veículo de crendices e baboseiras .
Não falando já da miserável sujeição em que se encontra a (chamada) ciência de uma indústria e de uma tecnologia completamente ao serviço da exploração do homem pelo homem, será preciso citar, só como pequeno exemplo, a obediência da Medicina à indústria química? No entanto, ainda há funcionários que têm o arrojo de considerar crendice, devaneio, liberdades poéticas, bruxedos, o esforço de qualquer espírito que, por ser lúcido, queira escapar à histeria de consumo (indústria alimentar) e com ela à histeria de toda uma máquina homicida que tem na medicina seu vade mecum e que se julga impunível só porque a cumplicidade entre funcionários do sistema é total e porque essa cumplicidade, esse crime, se impõem "em nome da ciência.”

CRÍTICA DA PSEUDO-CIÊNCIA

Em 1960, no livro “O Despertar dos Mágicos”, fazia-se a crítica dessa pseudo-ciência que, ao serviço da exploração e da degradação humanas, se continua a apresentar como imaculada. Logo a Union Rationaliste, fundada em 1930 e com sede na Rue de L'École Polytechnique, 16 - Paris 5 , desencadeava contra os autores uma campanha de tal modo histérica, que ficou marcada data em que o"crime legalizado”estava finalmente desmascarado e o local onde ainda lhes doía. A raiva e o furor que tomaram, de repente, tão sisudos senhores, tão objectivos, científicos e racionalistas como esses que a gente por aqui atura, marcaram bem a data e local.
Entre nós, de nada serviu António Sérgio ter andado a pregar, como talvez mais ninguém no mundo, o que vem a ser ciência e qual a ciência que importa e de como se faz ciência pensando. Como ele sempre fez: o amor das novas hipóteses, o ousar teorias, o indagar e desbravar caminhos, a crítica constantemente exercida pela ciência às suas próprias "descobertas" (provisórias, sempre), a ciência entendida como PROBLEMÁTICA, tudo isso esquecem, ou nunca souberam, os que agora tomados do vírus “neopositivista", ou estruturalista, ou positivista-ainda-à-moda- do-Teófilo-Braga, vêm chagar a paciência dos que pacientemente continuam a ensaiar hipóteses, na modesta e apagada fainasinha de afinar os seus próprio intelectos (primeiro), de pesquisar que hipóteses interessam hoje ao avanço do mundo para amanhã (depois).
Como se sabe (mas não sabem os burros tecnocratas da crítica) a imaginação é o nome que tem a ciência quando se alia à poesia. Os autores de Le Matin des Magiciens tiveram que inventar um ismo - o realismo fantástico - para designar o que não fosse nem o dogmatismo da razão nem a superstição do sentimento. Os surrealistas já barafustavam contra as antinomias anacrónicas (que só servem os académicos o filisteus e funcionários do Sistema) que separavam a inteligência do coração, o intelectual do afectivo, a teoria da prática, a poesia da ciência, o uno do múltiplo, o colectivo do individual, o tradicional do novo, o manual do cerebral, o espírito da matéria, a história da actualidade, a fé da experiência, a análise da intuição, etc, etc, toda essa bambochata de prós e contras, única e exclusivamente inventados pelo maniqueísmo da ordem estabelecida, que é sempre maniqueísta nos ruminadores da ciência e nunca nos seus criadores.
Na imaginação criadora - rigorosamente entendida como a faculdade soberana do homem -se fundiam todas as antinomias que não são imputáveis à imaginação mas à sua degradação em “ciência vomitada". Na imaginação estava a palavra. E no ódio à imaginação se unem hoje todos os que, sob o alibi da ciência que nunca criaram nem hão-de criar, julgam liquidar todos os que a criam e continuar a servir-se deles e dela, matando sempre, matando muito.

SOL PARA TODOS OS COLONIZADOS DA INTELIGENTZIA

11/10/1971 - De cada vez que os barbitúricos doutores em crítica me dão com o ponteiro na tola e gritam ciência - porque me acham um crítico muito impressionista lá na gíria deles - faço um esforço de memória e colecciono aqueles homens de ciência que me são de cabeceira, de que fui, sou e serei assíduo frequentador.
Perlustrando um pouco as estantes e cedendo ao pedantismo doutoral de citar nomes, pedantismo a que os doutores constantemente me remetem, vejamos e anotemos como contributo a uma bibliografia do futuro homem de ciência: António Sérgio, Arthur Clark, Bernard Lovell, Linus Pauling, Julian Huxley, Fred Hoyle, Aldous Huxley, Teilhard de Chardin, Einstein (os textos filosóficos e humanistas, claro!...), Foucault, Lévy Strauss, Galileo, Giordano Bruno, Camille Flamarion, Maurice Maeterlinck, Asimov, Josué de Castro, J.B.S. Haldane, Robert Oppenheimer, Freud, Jung, Gaston Bachelard, Jacques Monod, etc
Pois serão estes nomes todos, nomes de literatos? De poetas? De místicos? De irracionalistas? De anti-cientistas?
De cada vem que um fricativo doutor em crítica classifica de "jornalismo”, com ar de soberano desprezo, o ainda possível pensamento público, nesta terra asfixiante inimiga das ideias e do imaginário, é necessário, para não quebrar o moral, a gente lembrar-se de que tem à mão, ali na estante, os bons amigos que têm ido fazendo menos solitária e angustiante esta peregrinação entre compatriotas, que têm, na fronteira da ciência e da imaginação, alimentado o sol à luz do qual depois todos - fricativos incluídos - se vão aquecer.
Se Jacques Monod se encontra nas estantes deste pobretana, deste auto-didacta, deste irrecuperável anti-doutor, não é porque ele tenha a petulância de dominar o pensamento científico de Jacques Monod, hoje o maior herege da Biologia, um dos tais pensadores de fronteira, um dos tais heterodoxos. É apenas porque alinha ao lado de outros hereges da ciência. Biologia e materialismo dialéctico, biologia e filosofia, eis o que o Aprendiz auto-didacta, eis o que se não deixou doutorar pelos colonizadores da inteligentzia, vai aprender em Jacques Monod. De modo a que lhe sirva para outros equilíbrios na corda bamba a que esta terra da doutores obriga todo o colonizado das triunfantes instituições da Intelligentzia em Portugal.

PORQUE SÃO ANTI-ECONÓMICOS OS ESQUEMAS DA ECONOMIA CLÁSSICA

17/12/1971 - Para se fazer entender dos que o hostilizam ou combatem, o herege terá que utilizar a linguagem e a estratégia do adversário (o conformista e funcionário de qualquer ordem estabelecida). Se os números estatísticos, as curvas de rendimento e o cálculo custo-vantagens são os argumentos que normalmente convencem o conformista, há que lhe falar em termos de rentabilidade, mesmo no que aos problemas de saúde e bem estar psicossomático das populações respeita.
No que à saúde pública importa, é muito mais barato prever do que prover. Precaver, por exemplo, mediante hábitos de higiene alimentar e de higiene geral uma epidemia de gripe, custa muito menos ao Estado - se o Estado se quiser incumbir disso - do que, depois da epidemia declarada, recorrer à vacina, à terapêutica e aos múltiplos panos quentes conhecidos, que não impedem os doentes de ficar dias e semanas na cama, dando rombo valente na Economia nacional... Isto sem falar nos prejuízos não propriamente contabilizáveis que até são mais importantes.
Regra geral, entende-se Medicina Preventiva principalmente como vacinação: mas digamos que a vacina já não é preventiva e que a verdadeira prevenção começa na higiene entendida como ataque à causa das causas.
Se um etnologista estudasse os diversos padrões culturais com o propósito de saber qual deles consubstancia o mais aperfeiçoado estádio de civilização e de progresso, talvez concluísse que o padrão tecnológico (ou tecnocrático?) não representa, de maneira nenhuma, um estilo definitivo e ideal de progresso, e isto à luz dos próprios critérios, da própria axiologia, das próprias filosofias de valor inerentes a esse padrão.
Há, de facto, desfasamentos tão gritantes na sua estrutura, que, desde logo, conclamam uma certa reserva, para não dizer uma certa hostilidade, por parte do etnologista, mormente se ele for também um pouco crítico e se teima em utilizar aquele tipo de raciocínio lógico que faz a glória e orgulho do tal supradito padrão cultural.
Os desfasamentos mais notórios, iríamos encontrá-los nos campos da saúde a da doença. Embora haja à vista medidas que se impõem como as mais aconselháveis pelo mais elementar bom senso, pela mais estrita lógica, uma incompreensível inércia continua a determinar tipos de comportamento aberrante, absurdo e até criminoso relativamente aos próprios conceitos de aberrante absurdo e criminoso engendrados dentro do supra-supra dito padrão.
No caso da gripe: estabelecido (pelas autoridades que emitem opinião) que seria relativamente fácil empreender campanhas higiénicas de prevenção, o observador imparcial, o tal etnologista com seu cheirinho de crítico, vai, ano após ano, verificando que a higiene é apenas um capítulo (morto) de certas disciplinas e manuais escolares e de que, na prática, os prejuízos se acumulam nas crises, deixando declarar-se (a gripe) o que podia e devia simplesmente evitar-se. Tal como as cheias no Ribatejo, ano após ano, os incidentes na linha do Estoril, os naufrágios na costa, os acidentes de viação, etc, etc. Continua a verificar-se o que podia pura e simplesmente evitar-se.
Digamos que o conceito de Higiene é um dos tais (muitos) a restabelecer em termos prospectivos, pois é bastante retrospectivo o que por enquanto permanece, nas referidas escolas e nos referidos manuais. Correspondendo ele - conceito de Higiene - a toda uma teoria geral da saúde, que por sua vez é consequência de toda uma teoria geral do mundo e da vida, se entendermos a teoria microbiana como relevante, é óbvio que os cuidados higiénicos continuarão a orientar-se exclusivamente no sentido de combater o vírus (ou a bactéria), relegando o resto para o secundário.
Um exemplo retirado ao quotidiano de todos os portugueses: mesmo a legislação em vigor impõe certos cuidados de "higiene" no fabrico do pão. O próprio público, insensivelmente "educado" pelos hábitos que lhe impõem, é levado a exigir um mínimo de limpeza, um pouco por intuição, um pouco por lenta subconsciencialização dessa necessidade. No entanto, o critério de Higiene a que me referia é bastante mais profundo e exigente. Mais lato. Se os cuidados de limpeza são óbvios, necessários, convenientes e desejáveis, muito mais importante para a Higiene como alguns outros (mais exigentes) hoje a entendem é, no que ao pão se refere, todo o processo de fabrico desde o teor da farinha (se de cereal biológico, se de cereal quimificado, se integral, se refinada) até ao (não ou sim) uso de fermentos industriais, grau de cosedura, misturas, etc.
Quer dizer: o conceito de higiene deixou de ser quantitativo para ser essencialmente qualitativo. Dependendo esse conceito de uma filosofia dietética mais geral e, por sua vez, de uma filosofia terapêutica: se causal como a naturopática, estará a higiene muito mais interessada no teor das farinhas do que na limpeza das padarias; se sintomática, muito mais interessada no micróbio do que nas causas profundas que determinam, através da alimentação, toda uma resistência orgânica das populações às endemias como a gripe e etc.
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