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Saturday, June 17, 2006

FRITJOF CAPRA 1987

1-3 - 87-07-18-ls> quinta-feira, 19 de Dezembro de 2002

O DESAFIO DE FRITJOF CAPRA - INVESTIGAR O FUTURO(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, indubitavelmente 5 estrelas, foi publicado no jornal «A Capital», «Crónica do Planeta Terra», em 18 de Julho de 1987

[18-7-1987, in «A Capital»] - Investigadores, bibliotecários e arquivistas do passado, queixam-se do abandono a que foi votado o património documental do País.
As maiores autoridades no domínio da arquivística pronunciaram-se no colóquio realizado durante a 57.ª Feira do Livro de Lisboa, a respeito da indiferença geral que reina sobre os nossos maiores tesouros documentais, fontes históricas insubstituíveis, sem as quais o País perde a sua memória colectiva e, portanto, a identidade.
Sem as quais o País se desintegra. Após muitos anos em que Estado e governos ignoraram olimpicamente uma parte importante da nossa própria existência como povo e como País (a outra é o território físico, não menos deitado aos bichos) parece agora esboçar-se, com a reorganização da Torre do Tombo, a cuja comissão preside o prof. José Mattoso, uma viragem nesta situação de catástrofe. É possível que ainda vamos a tempo de salvar do dilúvio universal alguns arquivos e documentos importantes.
Encaminhada a recuperação da nossa memória colectiva, com a ajuda da informática, ocorreu-me que não seria talvez gratuito aparecer alguém, entre investigadores, bibliotecários, e arquivistas do futuro, a reivindicar também uma acção urgente com o objectivo de não perdermos o nosso sentido de orientação como povo: A Imaginação Criadora, na qual se deve considerar incluída, por definição, a Investigação Cientifica.
Talvez o material de trabalho destes investigadores não se encontre, como o dos outros (os do passado), encaixotado algures num barracão, nem sejam tão nítidas as fronteiras do que importa preservar e salvaguardar para que, diante do apocalipse, a linha de rumo não se perca.
Talvez as balizas que delimitam os arquivos do futuro não sejam tão nítidas (e com certeza não são) como aquelas que definem os arquivos do passado.
Mas isso não retira importância à Historiografia Prospectiva ou Ciência do Futuro, e ao material arquivístico que é necessário coordenar para sistematizar esse novo campo da Ciência.
É que, de repente, tudo o que as ficções mais ou menos científicas tinham colocado num limbo de relativa (in)verosimilhança ou (im)probabilidade, torna-se um facto brutalmente instalado na nossa vida real quotidiana.
Com a crise ecológica e a ameaça de holocausto nuclear, o inverosímil torna-se verosímil e o improvável torna-se provável.
A verdade quase comezinha, quase lapaliciana, é de repente posta sem que muitos tenham tido tempo ainda de a assimilar: pode não haver futuro, o tempo e a história deixaram de poder ser considerados uma realidade inesgotável em expansão infinita.
Ora, se não houver futuro, de nada serve preservar o passado, de nada serve a memória conservada, no Tombo ou algures. Destruído o futuro, eis que o passado é também automaticamente destruído, diria o senhor de Lapalisse.
Não sei, porém, se esta realidade comezinha e lapaliciana já terá tocado verdadeiramente os chamados cérebros responsáveis do nosso tempo, que vemos continuarem agindo como se tivessem a eternidade à sua frente e o apocalipse não estivesse já inscrito, na história dos acontecimentos, como hipótese a considerar. A Hipótese.
Mas para que o fim da história não se torne uma noção paralisante das pessoas e dos povos, tão paralisante como o excesso de passadismo, teremos de cultivar, em primeira prioridade, não só a memória do que foi mas a imaginação do que pode ser.
Sem imaginação eco-alternativa, que nos permita ultrapassar, como espécie humana, o impasse da tecnocracia moderna (que só pode conduzir à autodestruição do Planeta, como a Termodinâmica demonstra de maneira física irrefutável), arriscamo-nos a perder o precioso passado que tantos investigadores, arquivistas e bibliotecários justamente tanto acarinham.
Mesmo que essa tecnocracia se afadigue, por óbvio mercenarismo, a informatizar "up to date", a microfilmar e a reduzir a ficha automática milhões de documentos até agora inacessíveis, talvez convenha não confundir essa feérica e febril actividade com o nosso futuro e sobrevivência.
Por mais que se informatize o passado, terá que se desinformatizar bastante o futuro para que este simplesmente venha a ser possível. Sem a desintoxicação de tecnologia informática e de computadores, o planeta sucumbirá e com ele a humanidade.
Os «arquivistas do futuro», como lhes chamei, descobriram e sentem que a humanidade, finalmente, vive a prazo e que o futuro já não é inesgotável (tal como se descobriu que as grandes massas oceânicas ou a estratosfera ou atmosfera não eram inesgotáveis).
Tal como um doente incurável, a Humanidade terá de reorganizar o seu espaço em função do tempo que ainda lhe resta.
Arquivistas do futuro são aqueles investigadores que procuram descobrir onde foi o ponto de rotura, onde é que esta «civilização» entre aspas, que traz o rei na barriga e a destruição na alma, errou.
Não há ainda uma editora especializada nesta área temática, a que, à falta de melhor, chamaremos de «novo underground»: mas multiplicam-se os testemunhos e as obras-chave que apontam para a nova consciência planetária de auto-conservação da espécie, campo aberto que poderíamos designar por Ciências Holísticas, quer dizer, as ciências que, embora aprofundando recintos particulares, o fazem sempre em referência ao todo, ao global (do globo terrestre) e ao universal (do universo imenso das galáxias).
Tal como o professor José Mattoso dizia dos arquivos do passado, «é cada vez mais nítida e generalizada a consciência de que os nossos problemas começam estruturalmente muito antes», também o arquivista do futuro poderá declarar: «É cada vez mais nítida e generalizada a consciência de que os nossos problemas começam estruturalmente muito depois de nós."
Sem dúvida que para explicar o presente podemos pedir explicação ao passado. Mas para agir no presente, teremos que pedir explicações ao futuro.
Na medida em que o presente tende a afunilar-se num beco sem saída, não podemos estar entregues exclusivamente a interrogar o passado: antes de explicarmos o que somos, pode ser que deixemos de ser, pura e simplesmente.
Evitá-lo é o objectivo fundamental do pensamento eco-alternativo, apoiado em todas as ciências da área holística ou ciências holísticas, movimento e pensamento estes provocados pelo imperativo categórico da crise ecológica
Se chegámos a ela e à eventualidade de um holocausto, que pode até não ser nuclear, que poderá mesmo ser climático, holocausto que acabaria não só com o presente mas com todos os vestígios do passado, a primeira prioridade de uma cultura não suicida, de um povo não suicida, de uma edição não suicida, é saber o que nos levou a esta crise e como ultrapassar dialecticamente o património ideológico que, através dos séculos, filosofias e sistemas, lá (cá) nos conduziu.
Entre os arquivistas do futuro que sistematizaram as causas passadas destes efeitos críticos, está Fritjof Capra, que podemos hoje apontar como o teorizador e diagnosticador da Doença estrutural chamada Civilização Tecno-Industrial.
É em edição brasileira que o vamos encontrar, nas suas duas obras de fundo: «O Tao da Física» e «O Tempo da Transformação».
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(*) Este texto de Afonso Cautela, indubitavelmente 5 estrelas, foi publicado no jornal «A Capital», «Crónica do Planeta Terra», em 18 de Julho de 1987
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V. DE GOUVEIA 1959

1-7 -segunda-feira, 14 de Outubro de 2002-prontíssimo para edição on line sem medo- na fase literária – escritos da juventude – não esquecendo associar ao meu ensaio sobre o livro sobre fernando pessoa - 19.937 caracteres Revisão: Domingo, 23 de Agosto de 1998

sábado, 17 de Junho de 2006-> inédito ou não, o que eu já sabia (e já esqueci) nos meus verdes 26 anos!

1959

ARTE E PATOLOGIA

[ensaio apócrifo de Eduardo Lourenço, no tempo - 1959 - em que ele, heterodoxamente falando, ainda escrevia coisas que se percebiam...]
# Sobre alguns cadáveres (esquisitos) locais
# Ensaios sobre o Obsceno
# A minha experiência surrealista
# Inéditos eternos censurados pelo estalinismo
# Memórias do Gulag literário
# Manifesto literário pela PERSPECTIVA DE ESCALA (essência da Modernidade)
# [Intuições de 1959 - há 33 anos! - premonitórias do ADN-Guillé: não hei-de eu sentir-me inchado e orgulhoso!!!]

+ 4 PONTOS

Porto, 18/7/1959 - O facto de se discutirem as relações entre «arte e patologia» prova de que algum motivo existe para considerar o problema, a importância do problema. O presente artigo, não querendo assumir uma posição polémica sobre o opúsculo do Dr. Viriato de Gouveia - «Arte e Patologia», separata dos «Anais do Clube Militar Naval» - é apenas uma análise tanto quanto possível crítica pressupondo a simpática aceitação preliminar do trabalho analisado. Entre os libelos contra a «arte moderna» (o que se vai generalizando sob o designativo de «arte moderna») o Dr. Viriato de Gouveia apresenta uma tese que reputamos digna de atenção e controvérsia.
«Se a bizarria de atitudes que cada um de nós livremente pode assumir, conferisse valor proporcional ao indivíduo, a maioria da humanidade seria constituída por pessoas de talento» - escreve Viriato de Gouveia. Mas - digo eu - o inverso também é verdadeiro: se o atributo de «besta sadia que procria» (no verso feliz de Fernando Pessoa) conferisse a alguém a qualidade de artista, a maioria da humanidade seria composta de artistas. Advém disto uma conclusão: a doença, só por si, não é parâmetro que explique o talento criador; mas a saúde também não. Quer isto dizer que o critério patológico não se mostra suficiente para legitimar ou ilegitimar uma obra de arte. Aquilo que, superficialmente, se possa tomar como relação de causa e efeito (a doença ou saúde como causa de obra de génio) não passa de coincidência ou concomitância,
Não seria já a primeira vez que, no domínio da verificação experimental, se toma a nuvem por Juno, se considera como efeito de uma causa o que não passa de coincidência entre o que se supõe causa e o que se supõe efeito.
Ninguém contesta que a obra de arte anda de facto ligada a uma assimetria psíquica, a uma anormalidade psicosomática, que, sem fazer do artista, por definição, um psicopata ou um neurótico, o coloca fora da linha normal de comportamento, se é que alguma vez está definido o que é e o que não é normal. Se a nossa noção de «saudável» coincidir com a noção de «normal» e médio», e se a noção de «doente» coincidir com a de «bizarro» e «excêntrico (como em regra acontece entre pessoas de formação universitária - cartesiana, kantista ou positivista ) consideramos sintomas mórbidos os sintomas de anormalidade e até de excepcionalidade características do artista, naturalmente desfasado em relação ao homem-padrão, homem comum, médio, normal ou saudável. Todavia, a doença, ainda quando abusivamente se considera sinónima de anormalidade, não pode considerar-se causa: unicamente um factor concomitante.
Eis a conclusão que interessa, por agora, reter:
Ainda os que mais duramente combatem o «subjectivismo», não deixam de reconhecer a individualidade (aquilo que normalmente se entende por individualidade criadora) como um dos factores inerentes ao artista. Se o «estilo é o homem», com muito mais forte razão se dirá que o «estilo é o poeta». Ora esse «estilo», essa «individualidade», essa personalidade, como se obtém? Como se distingue um poeta dos restantes mortais? E um poeta de outro poeta? Sendo a «individualidade criadora» a suprema razão de um poeta, como iremos negar-lhe o direito á individualidade? Nenhum indivíduo, ainda o mais desclassificado, se dispensa, na ordem moral, de ter carácter e, na ordem profissional, personalidade. Como poderá o poeta, onde ética e estética se confundem, dispensar esse carácter que é também personalidade? Fisicamente, não há dois indivíduos iguais, e para isso é que o bilhete de identidade regista as impressões digitais. Como poderemos aceitar que os haja iguais psicologicamente? E como poderemos aceitar que os haja entre aqueles indivíduos que, por natureza, por condição, por fatalidade, fundamentam a sua existência no «culto da individualidade criadora» - os criadores, os poetas, precisamente?
Eis, pois, outra conclusão que o Dr. Viriato de Gouveia certamente me não impedirá de tirar: o poeta é, essencialmente, a sua individualidade criadora. Aquilo que noutras vocações poderá representar uma deficiência mais ou menos grave - a individualidade - é, na vocação artística, o princípio, o meio e o fim, é tudo.
Dir-se-á: mas a individualidade manifesta-se na «forma». O poeta diferencia-se de outro pela forma como subjectiva uma realidade objectiva. Quantos pintores não têm pintado girassóis e quantas formas não têm sido dadas à mesma realidade girassol? A matéria objectiva «girassol», tratada pela individualidade, pela subjectividade criadora de Van Gogh tomou aquela forma única. Mas por aqui entramos num dos intermináveis debates da estética moderna, a chamada «questão do fundo e da forma», sobre que nada se pode concluir. Tentemos, por isso, ver o problema do ângulo em que o Dr. Viriato de Gouveia o coloca - o da «arte e patologia» - e talvez nos seja possível adregar algum contributo.
Segundo o Dr. Viriato de Gouveia, «nem Baudelaire, nem Verlaine, nem Gérard de Nérval, construíram durante o período do seu internamento qualquer obra-prima.» Embora a afirmação necessite de ser comprovada e embora pudesse ter acontecido que nenhum deles criasse uma obra-prima durante o internamento porque nem todos os dias se criam obras-primas - e aceitando no entanto a afirmação, aceitemos que sim, que esses poetas nada produziram nos períodos de internamento em manicómios. Mas o que o Dr. Viriato de Gouveia não deixa de verificar é que eles estiveram internados. E que dezenas de outros exemplos - o de Van Gogh, o de António Nobre, o de Edgar Poe, o de Verlaine, o de Proust (e tantos que não cita mas poderia citar) nos poderiam informar afinal de que existe entre a doença física ou mental e a criação, um estranho, extraordinário paralelismo, diríamos mesmo sincronia, diríamos até condicionalismo, embora não digamos causalismo.
Aceito a opinião, discutível, de que no próprio período da doença, os poetas nada produzissem, mas não há dúvida de que um poeta, fora dos instantes de criação, é quase sempre um doente.
De positivo e indiscutível, o que deveremos concluir desta coincidência? É que a doença, entre outras causas do sofrimento físico ou espiritual, marca as individualidades ou vocações já predispostas, com experiências que, pelo menos, as vão sensibilizar e tornar, digamos, mais vibráteis, mais impressionáveis, mais particularmente assinaláveis pela «realidade objectiva». É claro que a doença não dota ninguém de habilidade artística e não se descobre a pólvora ao afirmá-lo: tão peregrino nos parece que haja alguém a defender uma tal ideia, como a combatê-la. Mas (não há dúvida) desperta, aviva, afina e provoca capacidades, tendências, instintos, faculdades inatas mas adormecidas, estados sensíveis. E muitos, visíveis, verificáveis, são os motivos pelos quais isso acontece. Vejamos quais.
A violenta introspecção que um estado mórbido provoca, o mundo particular (o «seu» mundo) que o doente, por uma instintiva defesa, forma contra o mundo dos outros e o mundo das realidades naturais, a insociabilização imposta ao doente, particularmente por doenças contagiosas que o obriguem a afastar-se do convívio habitual e, finalmente, a obsessiva deformação do mundo objectivo, absolutamente compreensível em quem sente, com mais agudeza, os traumas da dor física («objectiva») sobre uma subjectividade indefesa mas reactiva.
Concluindo: a doença não cria poetas, mas não custa aceitar que os descubra ou provoque. Como corolário da conclusão e como contributo «à questão da forma e do conteúdo», parece-me claro que a individualidade não é mera questão formalista (em sentido descarnado e abstracto da palavra «formal») visto que a forma especial por que o poeta vê e subjectiva a realidade, já é o somatório de experiências tão objectivas, tão profundamente enraizadas no comportamento individual, tão estreitamente relacionadas com o temperamento e o sangue, os músculos e os nervos, como são todas as experiências do sofrimento, em especial o advindo da doença. Sim, o sofrimento não cria poetas. E não somos a defender que o poeta sofra. Creio mesmo que a sociedade deveria preparar ao poeta a estabilidade social indispensável para o acto de criação: mas antes e depois do instante em que o poeta cria, todas as experiências, ainda as mais atrozes, deviam ser-lhe permitidas. Não acredito que um poeta possa escrever com fome, na maior abjecção moral e material, deprimido e oprimido, ferido, maltratado e miserável; a fome real, experimentada, vivida, deu-nos obras como a de Knut Hamsun e a do nosso Leão Penedo no romance «A Raiz e o Vento». Mas tanto Hamsun como Penedo, não os poderiam escrever certamente com fome.
II
Particularmente no que se refere à chamada «arte moderna», o problema das relações entre «arte e patologia» só adquire maior acuidade porque o problema correlato da «individualidade» também redobrou de virulência. Não creio que na «arte moderna» - «os absurdos frutos de um pensamento enfermo ou transviado» que são, na opinião do Dr. Viriato de Gouveia, o fauvismo, o dadaísmo, o cubismo, o futurismo e o surrealismo - haja, mais do que na arte clássica, um culto monomaníaco pelas manifestações patológicas. O que houve, sim, foi o deslumbramento da descoberta; o mundo subconsciente e inconsciente, os pélagos do irracional, as regiões inlocalizáveis e inverificáveis do subterrâneo humano. A psicanálise que, de terapêutica clínica, quase se transformou em método lógico, psicológico e epistemológico, declarou, no entanto, à moralidade vigente nas tribos ocidentais, aos hábitos familiares e íntimos, aos tabus religiosos e sexuais, às convenções, aos conceitos e preconceitos burgueses, aristocráticos, hierárquicos, tradicionais, uma guerra santa. Hoje, nenhum cientista, nenhuma mentalidade adulta nega a importância de Freud e da sua revolução, até mesmo dentro dos limites acanhados da ortodoxia de Viena, sem irmos às escolas dissidentes. Ora pela «psicanálise tudo se explica». Até ela, só a zona racional da consciência existia, só ao homem social e diurno era dado o direito de cidade. Depois de Freud, até um escolar sabe que o motor principal da vida consciente, da vida biológica e anímica, é a vida subconsciente. Não digo que a razão sossobrasse, porque foi a razão que, desta vez, deu a mão à palmatória, indo além de si própria, reconhecendo contra Descartes, para lá do mundo das ideias claras, o oceano incomensurável da não-claridade não cartesiana. Um espírito imparcial, só pode reconhecer nisto, mesmo em termos de progresso ocidental-racional-cristão, um avanço, um bem. Restituía-se ao homem uma dimensão obliterada, ignorada, esquecida, perdida. Regredindo-se na aparência ao tempo das teogonias, das idades mitológicas e pré-lógicas da humanidade, provava-se que as mitogonias representaram no processo da evolução humana, não um elo subalterno mas interno e eterno, estrutural e dinâmico. A razão construíra o Parténon e o Ciclotrão gigante. Mas fora da razão o homem criara os bizontes de Altamira ou descobrira o «universo infantil». Em pleno século da exploração interplanetária, dos voos astrais e siderais, a criança, ao pé de nós, estava por descobrir e foi descoberta. (Montessori?)
Foram todos estes abismos e encontros, no tempo e no espaço, todas estas súbitas associações, afinidades, origens, que deram à modernidade o aspecto de deslumbramento, de «fascinação» (Ernesto Sampaio fala de «Cultura fascinante»). O mundo da criança, o mundo dos primitivos, o mundo dos infinitamente grandes, o mundo dos infinitamente pequenos, o mundo da consciência, o mundo da subconsciência, o mundo planetário, o mundo interplanetário, o mundo da razão, o mundo do instinto, o mundo social, o mundo individual - todos aparecem com o mesmo direito de ter voz e de se exprimirem, todos eles formam o que se pode chamar o «sistema planetário do homem moderno». O homem viu-se, simultaneamente, no centro de contradições simultaneamente vitais e mortais, viu-se um absurdo vivo, matou Cristo e Anti-Cristo, matou deuses e Deus, viu-se com as inesperadas proporções e dimensões do Símio e do demiurgo: de um lado a biogenética assegura-lhe a sua origem de antropopiteco; do outro, Einstein recompõe, reconstitui o universo à maneira de Jeová. O homem moderno viu que todas as possibilidades se cruzavam no seu coração, na sua inteligência, na sua vontade. Contemporâneo dos aviões a jacto e da cirurgia plástica, das centrais atómicas «para a paz» e dos horrores de Hiroxima, contemporâneo de Hitler e de Gandhi, de Estaline, Mussolin e de Montessori, da revolução proletária e de Rockfeller, o homem compreendeu o que significava ser moderno. O culto do absurdo que pode existir na modernidade, não é um grito de abjecção, não é um libelo contra o homem. É talvez, no tempo das últimas abjecções, no tempo de Anne Franck e de Bergen-Belsen, de Estaline, de Budapeste, das tiranias e dos Reflexos Condicionados - um grito sadio de liberdade. Antes de perguntarmos se compreendemos um quadro ou um poema «modernista», devemos perguntar se compreendemos a história moderna. E talvez no seu crucial, inenarrável absurdo, encontremos «explicação» para o absurdo da «arte moderna».
Patológica? Resultado de uma demência particular do poeta ou da demência colectiva da História contemporânea? Devemos nós culpar o artista, espelho límpido, testemunha fiel, repórter íntegro da demência e dos seus fautores? Pode culpar-se de tudo o «artista moderno»; menos de que construiu este mundo e esta abjecção. O poeta não forma nem reforma o mundo: acusa-o. Não o explica - replica contra ele. Não o defende - defende-se dele e protesta. Não constrói a história, cria a anti-história.
Será mórbida a forma de o poeta hoje se expressar? Mas retiraremos nós aos mórbidos o direito de se expressaram? Será patológico? Mas retiraremos nós aos doentes o direito à existência? E aos incuráveis, cuspimo-los da sociedade? Porque se considera então o poeta, «doente incurável», com menos direito à existência e ao asilo nesta sociedade asilar onde ele deve sentir-se, necessariamente, um asilado e um exilado? Exigir um arte sadia, proporcional, serena, de duas uma:
1º - ou é exigir que o poeta actue como um mentiroso (numa sociedade que não é sadia, nem proporcional, nem serena)
2º - ou exigir ao poeta que se evada da sociedade, que a não represente e - mais - que, como um deus, crie e exprima ele o que não pode exigir-se a nenhum mortal: que seja permanentemente sádio, proporcional e sereno.
Pergunto: à conta de «combater a arte moderna», não estaremos colaborando, como o avestruz, na pior forma de hipocrisia que é predicarmos a instauração de uma moralidade de deuses (só praticável por deuses) que nós, predicadores, homens iguais aos outros, começamos e acabamos por não cumprir?
Que um poeta é, na verdade, um ser anti-social, não o contesto. Anti-social enquanto poeta, evidentemente, sem necessitar, nas ruas de toda a gente, de andar aos tiros contra toda a gente. A sua missão - creio - é a de manter e perpetuar a liberdade humana individual. Há no poeta uma dualidade inconciliável: o homem social e sociável que é, que quer e tem de ser e o homem a-social ou insociável que a responsabilidade de homem livre, de individualidade criadora lhe exige. O artista que verdadeiramente viva este drama, não tem com certeza tempo para mistificar o próximo. E só isso importa: a lúcida, desperta, activa consciência que representa o poeta para quem a poesia não é vaidade, nem adorno, nem brinquedo: é uma questão de vida ou de morte.
III
Outro sobreaviso para quem queira de facto manter uma atitude inteligente perante a «arte moderna»: um poeta não pode avaliar-se e pesar-se por obras isoladas, o que quase sempre acontece e nas censuras violentas sobre os «modernismos». O crítico de poesia sabe que só um cotejo constante entre muitas criações do mesmo artista e entre criações de vários, pode:
1º - habilitá-lo a distinguir a mistificação da verdade
2º - habilitá-lo a descobrir a chave que explique a individualidade de cada poeta
A poesia é, principalmente, um processo de totalização e de síntese e o poeta uma totalidade onde todas as partes entram em funcionamento recíproco, deixando, se as separamos, de funcionar.
Isto, se é básico, se é fundamental, na arte clássica de qualquer tempo, mais ainda o é na arte moderna, na arte de hoje, onde cada artista, só por si, é um estilo e uma técnica - uma individualidade. Desligar um quadro do processo que o origina, condiciona e explica, não conduz a resultados nenhuns. Referindo-se a arte figurativa, em regra, a cânones, a estatutos prévios de beleza, a uma lei externa e fixa, natural é que o movimento do observador se desse do quadro para os referidos cânones, para a referida lei. Referindo-se a arte moderna, essencialmente, à lei interna do poeta, a uma extrema e última e íntima subjectividade, natural é que o movimento compreensivo se faça do quadro para o núcleo criador do poeta. No primeiro caso, trata-se até certo ponto de compreender «logicamente», pelo menos canonicamente: no segundo não se pode exigir compreensão lógica ou canónica da obra, mas sim de compreender, na totalidade, o poeta. Quando não o compreendemos, é a novas produções do poeta que devemos pedir «explicação». E não, e nunca, a nada ou a ninguém fora dele.
IV
De «lesões ou excitações que ao incidirem a (sic) certas zonas do cérebro poderão provocar ricos estados alucinatórios, revivescências de linguagem arcaica e preciosa, filmes de extraordinário colorido e beleza» - é o próprio Dr. Viriato de Gouveia que nos fala. Mas se reconhece o contributo excepcional de «beleza» que os estados anormais, alucinatórios e tóxicos podem dar ao poeta na criação do seu peculiar universo de «visões», arrojos e truculências, porque se negará ao poeta moderno o direito de usar com risco até da própria saúde e da própria vida, experiências patológicas provocadas ou espontâneas, de ordem médica ou onírica? Alguém, ainda o mais renitente, contestará que os sonhos são, só por si, infinitamente mais belos do que o prosaico mundo da vigília? Não aceita o positivista a ilogicidade da lógica onírica? Porque nega ao poeta o direito de explorar um domínio que ele próprio reconhece mais belo? Sendo o método onírico um dos que os surrealistas aplicam, limitando-se a usar um recurso tão velho como a humanidade, de quê e porquê os acusaremos? Desde sempre que os sonhos alimentam a imaginação humana. Como podia o poeta, criador do imaginário, repudiar esse caminho? Não se diga que foi a psicanálise que deu voga aos sonhos. A psicanálise, quando muito, inverteu o conceito de que o sonho, o mito, o inconsciente sejam «funções inferiores» da psique humana. Pois porquê inferiores? Não completam e explicam o homem? Se não queremos o primado do instinto, também não queremos o da razão - proclamou o psicanalista. Se não queremos o primado do imaginário, também não queremos o primado da razão - disseram por sua vez os surrealistas. Queremos, sim, a harmonia do homem, a sua integração cósmica, que é talvez a sua desintegração física, social e...nuclear. E nisto, neste princípio, se encontram todas as correntes da «arte modernista». A arte, explorando os recantos abandonados pela ciência, não vinha subverter a ordem social nem negar a ciência. Mas vinha apenas reclamar um lugarzinho para si, na preocupação (talvez demasiado ambiciosa) de restituir o homem a si próprio.
Porto, 17/18 de Julho de 1959
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Wednesday, June 14, 2006

LEITURAS 1970

1-1 - 70-06-14-ls1> segunda-feira, 9 de Dezembro de 2002-scan

A RAZÃO DE OUTRAS RAZÕES (*)

14-06-1970 - Não seria difícil encontrar os pontos comuns que aproximam os vários testemunhos compilados neste livro (1): pensamento de vanguarda, em todos eles existe a preocupação de analisar e criticar o presente, visionando, contudo, as necessidades e virtualidade de amanhã.
Um ponto há comum a quase todos: a relatividade cultural.
Quer dizer: cada vez se compreende melhor que o homem, na acepção de espécie ou raça humana, não é apenas o ocidental, segundo os padrões e modelos que foi mais ou menos impondo a todo o mundo.
Há o direito e a urgência de dar voz a outras vozes, de fazer entrar na História outros tipos culturais (outras "epistemologias", diria Foucault) e a antropologia, finalmente ciência porque universal, abre-se às novas formas do humano, conhecidas e por conhecer, até agora menosprezadas ou ignoradas, porque a espécie se apresenta de facto una mas diversa, susceptível de diversos padrões de comportamento que são outros tantos universos culturais.
Especialmente Desmond Morris, Arthur Koestler e Michel Foucault, acentuam a urgência de dar razão às outras razões que não apenas a greco-latina, romana, judaica e adjacentes.
Caminhar-se-á, de facto, para um mundo de tolerância, embora através de intolerâncias e violências sem conta?
Haverá um equilíbrio universal, de que muitas vezes nos não apercebemos, dentro da nossa óptica forçosamente limitada porque humana, mas que testemunhos como alguns dos que aqui divulgamos nos ajudam a consciencializar, lenta e penosamente como todo o processo gestativo?
Sempre que observamos uma hipertrofia, um desequilíbrio ou um paroxismo, não haverá sempre, algures e em surdina, em silêncio e anonimamente, o seu contraponto positivo, o seu termo de correcção, o seu contrário dialéctico?
Sem esta esperança de três interrogações, a História, de facto, apodreceria sem remédio e à espécie humana não restaria mais do que uma asfixia gradual, nas carências primeiro, na abundância e no tédio, por último.
Não foi por acaso que ao termo alienação - que figura no título dessa breve antologia - quisemos adiantar o de liberdade. Se são mais intensos, audíveis e trágicos os sinais da primeira, não deixam, porém, de ouvir-se já, através de alguns porta-vozes ou mais lúcidos, ou mais sensíveis, ou mais prospectivos, os sinais da segunda.
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(1) - "Alienação e Liberdade no Pensamento Contemporâneo", textos de John Robinson, Arthur Koestler, Michel Drancourt, Alfred Fabre-Luce, Jean William Lapierre, André Amar, Desmond Mor-ris, Michel Foucault e Raymond Aron. Colecção "Cadernos do Século", nº 7, Ed. "O Século", Lisboa, 1970.
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70-06-14-ls2> segunda-feira, 9 de Dezembro de 2002-scan

IMAGE+ACTION = IMAGINACTION OU A FILOSOFIA CONTRA A TECNICIDADE

14/Junho/1970 - Curioso fenómeno de transfert é o que se verifica nas atribuições específicas hoje preconizadas, em face das possibilidades abertas pela tecnologia ao fabrico do que antes se entendia criado.
Quer dizer: enquanto a música se abeira, sistematicamente, não só do cálculo matemático mas dos ordenadores - que tomam o lugar executivo do compositor, ficando este embora com o encargo de pensar a obra, de a ditar -, enquanto os poetas entregam também aos computadores o encargo de fabricar as endechas que eles já desistiram de criar, os cientistas e filósofos da ciência, talvez desiludidos com o que estarrece e fascina os não técnicos (sempre somos um pouco pacóvios e provincianos em relação às especialidades dos outros...) aplicam-se aos campos da imaginação criadora - tradicionalmente feudo privado de escritores, artistas, poetas e demais "reveurs".
É uma espécie de intercâmbio, segundo a lei das compensações: os artistas vão sujeitar-se à disciplina positiva das matemáticas; o filósofo, o técnico, o economista procuram exorbitar dessa disciplina e reganhar o imaginário, quer dizer, a experiência-vivência não permitida pelo uso e abuso da máquina. A máquina faz tudo por nós...
Alguns dos artigos aqui inseridos são viva prova disso: homens saídos dos áridos campos da Economia, da Política, da Sociologia, da Ecologia, afirmam-se entusiastas de uma Prospectiva que é, nem mais nem menos, do que a imaginação aplicada em campos de onde tradicionalmente se considerava avessa e arredia. Josué de Castro ilustra o que dizemos.
Prodigioso génio da síntese e criador vertiginoso do essencial, do que importa, do que marca, até pela clareza expositiva do seu estilo ele é bem um artista, um criador, um agente activo da cultura.
Com ele, o cientista deixa de ser um técnico mas sem abandonar a mais estrita tecnicidade para ser o que faz o permanente intercâmbio entre as especialidades parcelares e as generalidades globais.
Edgar Morin é outro exemplo do investigador "possesso" de imaginação e de poder criador. Mesmo como filósofo (e porque vive a dialéctica em ver de unicamente a teorizar) Edgar Morin cria, quer dizer, nele são indissociáveis Imaginação e Acção.
A ele se aplica, com propriedade, o feliz neologismo de que Alfred Willener fez centro e título da sua última Obra: Image-Action de la Société ou la Politisation Culturelle (Ed. Seuil). Image+Action = Imaginaction: aqui se contém todo um programa.
A imaginação no poder, que André Malraux, na entrevista à Der Spiegel aqui reproduzida, considera uma utopia, é de facto uma utopia: simplesmente para a nova geração de pensadores, acção, poesia, dialéctica e pensamento parecem estar a viver um processo de perfeita simbiose. Já ia sendo tempo de vermos a dialéctica passar dos livros ao único lugar. onde existe: a vida, seja ela, a das coisas seja a dos símbolos.
A música e a poesia por computadores apenas transferem para outros campos os problemas da hiper-análise que antes pareciam exclusivo das ciências e técnicas. Apenas adiam os problemas.
Tempo virá em que o músico e o poeta "como técnicos" sintam a mesma necessidade de religação à unidade ou totalidade vivencial, a mesma urgência de reidentidade que toca o homem alienado (desidentificado consigo) necessariamente sente.
Talvez o reencontro seja então decisivo: nessa altura já todos - artistas e investigadores - atravessaram a trágica experiência do parcelamento, da desintegração, da hiper-reificação. E então, também aí a dialéctica em acção e a acção dialéctica será um processo irreversível.
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70-06-14-LS3> segunda-feira, 9 de Dezembro de 2002-scan

SÍNTESE NA EXPERIÊNCIA

[14-6-1970] - A necessidade de síntese é outro leit-motiv dos artigos ali apresentados. A vivência ou experiência apresenta-se a quase todos como parte integrante e vital de um novo, de um próximo, de um futuro humanismo. A síntese realiza-se, desta feita, no laboratório de cada um. Ensaiar o pensamento é apresentar um itinerário, pontuado de datas, um diário de pesquisas e inquietações.
O verdadeiro pensador contemporâneo do futuro não notifica o pensar alheio ( o imprescindível para prefaciar o seu) ou as alheias experiências. Não vive nem pensa por procuração. Realiza em si, por necessária assimilação, a síntese de todas as análises. Recria a ordem a partir do caos de conhecimentos a que a divisão das ciências reduziu o homem moderna.
Falar de si é sempre e afinal mais importante (porque original e global) do que falar de algo exterior e estranho. Testemunhar parece o caminho de um filosofar prospectivo, que cada vez mais desdenha o discurso erudito, a oração de sapiência, o cadeirão académico, que se recusa a mimetizar e a reproduzir. No caos das ciências subdivididas e multiplicadas, o conhecimento humaniza-se pela prática ("connaitre" é “nascer com"), a teoria vitaliza-se.

ACTORES DA HISTÓRIA

Pensar a História e comparticipar simbolicamente da acção, eis o consciente ou inconsciente objectivo do que procura trocar o laboratório, a cátedra ou o gabinete pelo mundo a transformar.
A primeira civilização que se contesta a si própria (André Malraux) é também a civilização em que se perdeu a "identidade entre o homem e o cosmos, entre o Homem e Deus" (ainda segundo Malraux) .
Pela filosofia e seus teóricos, procura-se a unidade ou identidade perdidas. Mas a filosofia, enquanto linguagem, é ainda símbolo desligado das coisas. O filósofo novo procura, pois, (Malraux exemplifica ao fazer das suas anti-memórias uma suma filosófica) reunificar o mundo através da experiência-vivência, da qual não pode nem quer desligar a teoria.
Mais ou menos, este índice é comum aos escritores apresentados: filosofam pela experiência e, tendo a noção explícita ou implícita da dualidade filosofia-história, pensamento-acção, teoria-prática, procuram a unidade sendo actores e agentes dessa história. No acto e na acção de escrever.
Pensam a História enquanto comparticipam simbolicamente da acção.
Maio de 1968 serve de exemplo à vaga de síntese (o essencial do essencial) que caracteriza, por causa e por efeito, o pensamento de uma circunstância revolucionária. Todo o supérfluo e analítico se substituem, então, por força da eficácia requerida na acção, da urgência na síntese.
Na vasta literatura inerente, se há casos de psitacismo inútil, podem no entanto ver-se outros típicos da palavra-experiência, do pensamento-acção. Especialmente, é claro, se nos reportarmos aos líders, aos actores, e não aos comentaristas ou aproveitadores do sucesso,
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1-2 - 70-06-14-ls4> segunda-feira, 9 de Dezembro de 2002-scan

VOCAÇÃO DIALÉCTICA

14-06-1970 - Fundamentalmente questão de equilíbrio - logo de movimento - a dialéctica nunca poderá ser operação simplesmente mental.
O seu uso e exercício depende, como qualquer outra arte, de uma técnica inicial e logo de uma aprendizagem, mas também de pendor inato, de certo talento e, digamos o chavão metafísico, de vocação.
Adquire-se e aprende-se a técnica e ciência que nela haverá, mas virá a depender muito da arte que nela se puser. Arte, quer dizer, de intuição, de poder imaginário, de espontâneo raciocínio, etc.
Porque ser dialéctico na acção é relacionar tudo constantemente com tudo, detectar afinidades, superar antinomias, unir campos desavindos, contrapor teses ou teorias antagónicas, reconciliar termos antinómicos, o que não se consegue por operações analíticas sucessivas mas por sucessivas operações de síntese.
Agir no pensamento e pensar na acção (como provam hoje os liders mundiais da dialéctica) exige, não há dúvida, vocação... Assim as circunstâncias históricas a coadjuvem e vê-la-emos nascer, florir, frutificar.
Compreender, compreender, compreender.

PENSAMENTO DE ENCRUZILHADA

O encontro de Marx e Freud significa nos pensadores da Escola de Frankfurt (Fromm, Adorno, Marcuse, Benjamim) um esforço de aproximação que, mesmo quando não reconhecido de boa vontade, fez recuar os "handicaps" da tecnicidade e avançar, portanto, o espírito vivo do humano, sobreposto às antinomias dilacerantes.
Quando Sartre critica a razão dialéctica, e escreve o seu famoso prefácio sobre a questão do Método, abre caminho a uma faina capital do homem contemporâneo: tentar o entendimento, convívio e aggiornamento do colectivo e do existencial, digamos, entre marxismo e existencialismo.
Já agora, não se menospreze o que tem sido o braço estendido de Garaudy às alas mais progressivas do pensamento católico, e o que tal significou de heresia para os ortodoxos mais ortodoxos... Mas a verdade ou o caminho a caminho dela, não será sempre herética?
Althusser e Lucien Sebag seriam, já agora, momentos assinaláveis do encontro estruturalismo-marxismo.
Dir-se-á que resulta de tudo isto um inquietante ecletismo? Ou uma abertura à reconciliação do homem consigo próprio, dividido nas teorias que o tentam explicar?
Contributo a uma panorâmica no campo teórico, devem citar-se os Encontros Internacionais de Genebra que anualmente fazem a mise au point dos temas e problemas capitais. Os que ali concorrem, não vão para mudar de opinião ou teoria, mas o confronto e vivo debate entre elas servem ao leitor, visam uma pedagogia não do ecletismo mas da síntese.
Lugar onde do pensamento e ponto de encontro de pensadores, os Encontroa de Genebra não fazem nenhuma revolução mas antecipam a mentalidade planetária, ecuménica e universalista de amanhã. A Civilização do Universal será um título de René Maheu, director-geral da UNESCO.

NOVA RELIGIÃO OU A GRANDE SÍNTESE QUE SE PROCURA?

Fala-se de uma nova religiosidade que, sob formas mais ou menos disfarçadas, estaria a invadir o campo do ateísmo generalizado. Mas o que talvez esteja a suceder não será bem um retorno (nunca se retorna) a formas de religiosidade, mas à reintegração num estado psíquico essencial e totalizante que a devoção religiosa em certa medida preenchia, após já a degradação da unidade que a experiência mágica muito melhor possibilita.
A metafísica teria falhado nessa tarefa de substituir Deus no coração dos homens. E hoje se procuraria o "ponto central" ou a grande síntese, parecendo tudo isso (por ser parecido) a mesma coisa - mas não sendo. Na espiral da evolução, algo se assemelha sempre a algo e tudo é diferente de tudo.
Reabilitando a magia, o surrealismo sabe porque o fez: a magia é à sua maneira uma dialéctica mais completa do que a dos livros, uma técnica de exorcismar forças e forçar a realidade a obedecer-lhes, uma forma de (sub)-entendimento entre o homem e o mundo muito mais eficaz do que a religião ou a metafísica.
A técnica, fórmula evoluída de magia e processo de dominar a natureza, apenas lhe falta para ser uma grande coisa em vez de uma coisa perniciosa, aplicar-se onde a magia natural e espontaneamente se aplicava: o poder do homem sobre si próprio. À técnica apenas lhe falta descobrir a(s) da homem sobre si próprio.

DIALÉCTICA DA IMAGEM

A metáfora é a dialéctica da imagem.
Nem outra foi a importância do surrealismo em geral e das suas descobertas em particular: o discurso automático, o non-sense, o humor negro, a colagem, permitindo associações a distância de todos os tipos, permitiam e fomentavam o encontro dos desavindos, a aproximação dos distantes, o confronto dos contrários.
A metáfora ou imagem poética deixa então de ter uma função de embelezamento ( função da escola romântica) para passar à categoria de conhecimento.
O pensamento analógico desafia então o pensamento lógico para saber qual dos dois traduz com maior fidelidade o movimenta da vida, a multiplicidade do mundo, a complexidade do homem.
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1-2 -70-06-14-ls> leituras do ac - 4100 caracteres -calao>literatu>manifest>[grelha aberta] terça-feira, 3 de Dezembro de 2002

CALÃO E LINGUAGEM POÉTICA - CALÃO E VANGUARDA LITERÁRIA - OS MECANISMOS E DISPOSITIVOS DA IMAGINAÇÃO

14/Junho/1970 - A cada grupo sociocultural (e até a cada estrato ou classe) corresponde uma linguagem ou estrutura linguística.
O calão usado por certos escritores, como James Farrell, é uma das grandes descobertas (poéticas) feitas pela literatura de vanguarda, a pop-literatura que não deve confundir-se com as vanguardas elitistas de experimentalismos, novos romances e que tais. Enfim, com os muitos neo-academicismos de que está cheio o campo da chamada e alegada Modernidade literária.
Assim como a criança, o louco, o toxicodependente ( do café à cocaína, do uísque à lactomania, do ---) têm as suas estruturas linguísticas próprias, os seus uni-versos ou unidades culturais, também o «lumpen-proletariat» pode ter a sua.
«Linguagem de caserna» se costuma dizer do calão próprio do soldado. Mas quem diz o soldado, diz o criminoso, o desportista, o drogado, qualquer dos comportamentos que pouco ou nada tenham a ver com o discurso dominante.
Allen Ginsberg, ao citar escritores de quem se sente mais influenciado, refere Jean Genet e o seu poder de usar o calão como forma literária.
James Farrel teria sido, na obra---, um dos primeiros americanos a explorar o grande campo «pop» do calão e a força literária de raiz que dele se extrai.
Pelo calão, compreendemos como a experiência literária é indesligável de uma experiência existencial, humana, socio-cultural (se se quiser usar o calão sociológico corrente...). E não é por acaso que os grandes escritores do Obsceno (da estética do Obsceno), tenham sido também os de mais dura experiência nos bas-fonds da sociedade próspera e confortável, nos subterrâneos do consumo e da sociedade consumista.
Henry Miller, Jean Genet, Violette Leduc, Albertine Sarrasin, Carlo Emidio Gada, James Baldwin, Pier Paolo Pasolini, Caryl Chessmann, Jerzy Kosinski, William Burroughs, vieram quase todos do cano de esgoto.
Pelo calão se sabe também como o conceito de Obsceno (de estética do Obsceno) anda tão perto do máximo de originalidade, de imaginação e de criação poéticas, do mínimo de ênfase e estrato cultural.
Calão é uma variante da linguagem poética e pode colocar-se ao lado de outros mecanismos que accionam e fomentam a imaginação: colagem, discurso automático, humor, associação a distância, experiência alucinogénica, etc.
Através do calão, o escritor como que vomita tudo quanto a sociedade lhe impõe de convencional, através dos estratos ditos morais, cultos, superiores, elegantes, decentes. Vomita o Bem, o Belo e o Bom.
Recorde-se o que significa para Georges Bataille este corpo-a-corpo do escritor com o Mal e o que ele entendia da literatura e o que a literatura deveria, em essência, ser (embora utilitariamente possa ser muitas outras coisas): o tal corpo-a-corpo com a Heresia. O calão é uma das linguagens da Heresia.
Reivindicando uma literatura malcriada, está-se a bolir com os estratos de vencidos, de humilhados e ofendidos -- o Quarto Mundo do «underground» -- que não têm maneiras nem palavras polidas, que não têm mesmo palavras (já se falou no «silêncio do subdesenvolvimento» através de três filmes recentes: «A Ilha Nua», de Kaneto Shindo, «Vidas Secas» de ---------e «Remparts d'Argile» de Bertuccelli), indivíduos e povos que não têm maneiras educadas, morais, decentes, elegantes da classe possidente, a classe que empurra para o esgoto os detritos humanos que vai subproduzindo, a classe que aferrolha os indesejáveis em guetos da periferia, a classe que enche os cárceres e os hospitais com as vítimas que vai fazendo.
É triste ver como, em certo sentido, certo neo-realismo não fez mais do que linguajar à pipas, à fina, à classe dominante.
Exemplos portugueses de «literatura malcriada» há poucos mas ainda há alguns: Fialho de Almeida, Raul de Carvalho, António José da Silva, Gil Vicente, Camilo, Luís Pacheco, Virgílio Martinho, Cesariny, Gomes Leal, Afonso Cautela (UFFFFFFFFFFF!).
14/Junho/1970
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O.LEWIS 1970

1-5 -70-06-14-ls-5> =leituras selectas - sexta-feira, 6 de Dezembro de 2002-scan

DEPOIS DO MAGNETOFONE - LITERATURA DESCOLONIZADA OU À (RE) DESCOBERTA DO QUOTIDIANO -
QUESTÃO DE PRIORIDADES

14-Junho-1970 - Escreve Oscar Lewis, antropologista americano que se tornou mundialmente famoso com a publicação, há quase dez anos, de uma obra hoje célebre também entre nós: «Os Filhos de Sanchez»:
"O magnetofone utilizado para registar as narrativas deste livro, tornou possível o advento de um novo género de realismo social em literatura. "
Perdoa-se o chauvinismo da afirmação mas, salvo o devido respeito ao ilustre antropologista, e o que pode sempre haver de bizantino, de questionável ou de melindroso nestas questões de prioridades ( qual nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?), outros exemplos se conhecem para reprodução ipsis verbis da realidade.
Não falando de um precursor que todos conhecem e que foi best-seller na sua época - Emile Zola, claro, e porque não? - ocorrem-nos, para já e pelo menos, os casos de Carlo Coccioli, onde a ficção (O Céu e a Terra por exemplo, seguido de O Seixo Branco) se fundamenta numa realidade existente e em que a construção do livro obedece mesmo aos rigores do inquérito, da investigação, da reportagem directa, in loco, e ao propósito de documentar essa realidade, de forma a descobri-la.

LUMPEN-PROTELARIAT E LITERATURA DE MARGINADOS

O lumpen-proletariat assume personalidade quando se confessa e confessa-se para assumir personalidade(única possibilidade ou oportunidade para ele de emancipação). Especialmente se na prisão, onde já o marquês de Sade encontrara não digo o melhor ambiente mas tempo para escrever e folgas para meditar.
Neste capítulo de literatura marginal apetece então citar aqueles que nem magnetofone tiveram a quem confiara a voz. E por isso a confiaram ao papel (mais barato) e à esferográfica (mais à mão de semear).
Condenado à cadeira eléctrica e vivendo o "suspense" arquetípico da nossa época de assassinos (''Voici les assassins", visionara Rimbaud ), Caryl Chessmann escreveu 2455, Cela da Morte, Condenado em Nome da Lei, A Face da Lei, O Garoto era um Assassino e mais escrevera se a corrente eléctrica o não guilhotinara. E foi best-seller, um dos mais espantosos best-seller de todos os tempos.
Só com uma perna mexível, humilhada pela dor física e alucinada pelos pseudo-calmantes químicos, Albertine Sarrazin tem tempo, antes de uma morte serena, merecida e tão longamente esperada, de escrever L’ Astragale.

Violette Leduc vinga-se da fealdade com que um "destino cruel" a marcou - condição ou alienação inelutável ao lado de tantas outras - e escreve um dos maiores romances (romance?) da literatura contemporânea (literatura?): A Bastarda.
Também Danilo Dolci, no seu Inquérito em Palermo, realizara uma "enquête" social que parece de tão largo alcance como o livro de Oscar Lewis.

A ARCAICA TEORIA DOS GÉNEROS LITERÁRIOS

Abandonando, de momento, a bizantina questão de quem saiu ou descobriu primeiro este "novo género literário" (mas será género? Mas será literário? Ou estamos perante o advento do anti-género e do anti-literário?) - e à parte aquilo em que a personalidade de cada um pode ter diferenciado as diversas obras, não estaremos, afinal, perante o fenómeno muito mais lato - e desta vez à escala planetária - da "literatura descolonizada"?
Dar voz aos que até agora a não tiveram, será descoberta recente e exclusiva de Oscar Leis, só porque usou o magnetofone?
Creio que essa experiência, para bem se entender, deverá enquadrar-se no fenómeno muito mais vasto (universal) de emancipação que o terceiro mundo conhece, com raiz e ponto de arranque na literatura.
Literatura aparece então assim e como queriam os surrealistas, com a função de arma. Literatura é assim acção. Contra a literatura dividida em ridículos géneros literários, tão queridos aos académicos e academicistas de todos os matizes (tão virulentos, ainda, por aí, nesta época de modernidades), eis a literatura como acto absoluto e, enquanto tal, como pura subversão.

DOCUMENTO NO MAIS LATO E RIGOROSO SENTIDO

Quando a "nova vaga" francesa descobriu o cinema-verdade, já a reportag semi-confessional fora o caminho de Louis Ferdinand Céline, André Gide, Jean Genet, James Baldwin, - nomes estes colhidos completamente ao acaso da memória mas a que se poderiam acrescentar, em consciência, muitos outros cuidadosamente elegidos.
Mesmo na literatura norte-americana não faltam exemplos de pioneiros, que são bem mais do que precursores, da literatura anti-literária e descolonizada que é a de Oscar Lewis: "Moby Dick”, de Herman Melville, “O Mundo Que eu Não Fiz”, de James Farrell - será abusivo considerá-los exemplares fidedignos de literatura documental, casos em que a Sociologia (ou qualquer outra coisa) transparece da literatura e reciprocamente? Casos em que a literatura parece negar-se exactamente quando e porque se renova, se revoluciona, se metamorfoseia?
Mas - ousando generalizar um pouco mais - Henry Miller não teria nascido escritor, aos 40 anos e sem magnetofone, quando decidiu exorcismar, através da "literatura", os demónios da sua angústia ?
Para um americano talvez seja inédito o processo de Oscar Lewis em Os Filhos de Sanchez ou de Truman Capote em «A Sangue Frio». Mas um europeu relativamente informado sabe que a literatura não foi (voluntária e conscientemente, a partir de certa data, digamos há quarenta e tal anos com os manifestos do surrealismo) mais do que uma anti-literatura e, nos seus momentos anti-académicos, não uma deliberada ficção ou fantasia mas um rigoroso documento sociológico: social no contexto, individual na expressão.

INTEGRAR PARA COMPREENDER

Extrapolando um pouco mais, e tentando não forçar muito a nota, cite-se um best-seller do mercado português do livro e, tentando ainda não ir além do verosímil, veja-se em que consiste: A Criança e A Vida textos de crianças sem magnetofone recolhidos por Maria Rosa Colaço.
Trata-se também de dar voz a um colonizado: a criança. E a injusta, malévola, despeitada suspeita que muitos fizeram recair sobre o livro - de "inautenticidade” se falou e até de "textos forjados" - demonstra ainda quão longe estamos do que o futuro conterá como certezas. Só perfilha tais suspeitas, quem não esteja acostumado a visionar os fenómenos na sua totalidade e no seu constante intercâmbio. Só quem não esteja habituado a pensar. Só quem não esteja habituado a compreender.
Tudo se liga a tudo: se soubéssemos isso, veríamos A Criança e A Vida com os mesmos olhos e dentro do mesmo processo universal que assegura direitos de cidade a Os Filhos de Sanchez, A Sangue Frio, Inquérito em Palermo.

O “CALÃO'' - SINAL INDICATIVO

Os filões de cassiterite podem ser relativamente fáceis de localizar se as populações da zona estiverem educadas para não destruir os sinais do minério que à superfície se encontram, indicativos do filão que existe em profundidade. Um pouco a mesma história do iceberg.
O calão funciona, em literatura, como os indícios de cassiterite e a parte emersa do iceberg. Em relação à literatura que se chamará documental, na fronteira da sociologia.
Do calão, são exemplos James Farrell, Henry Miller, Jean Genet, Céline, expoentes do que já alguém considerou os anti-escritores. Com o calão, e conforme assinala Jean Le Marchand para Oscar Lewis, a linguagem reencontra a sua soberania, o seu uso primordial. Também com o discurso automático, faltaria acrescentar.
Isto já se sabia e largamente praticava antes de Oscar Lewis.
A questão estará em que especialista muito melhor apetrechado de erudição e aparelho crítico queira empreender o que aqui apenas deixamos, em jeito mais do que ensaístico, à guisa de sugestões, como hipóteses de trabalho para a investigação que se impõe.
Ao que sabemos, e tivemos ocasião de confirmar através da informação ultimamente divulgada na imprensa portuguesa sobre romance latino-americano, o "terceiro mundo" da literatura começa a ter aí o seu universo e até a sua fábrica de génios. E nós, como Colombos que nos prezamos de ser, já devemos chegar depois das chuvas. É natural, entre quem receia acima de tudo ficar “contemporâneo do futuro". Preferimos a tranquilidade cómoda do presente unanimemente aceite e reconhecido.
Lenta como todas as descolonizações, seria curioso (e ecuménico, muito ecuménico) não se limitar cada investigador ao seu campo restrito de observação, a tentar alguém a visão de conjunto, corrigida, de todas as partes convergentes interessadas.
Emancipar as “vozes dos sem voz” pode ser um programa aliciante, mas sem restrições racistas. Não interessa repetir vícios, mas evitá-los.

SURREALISMO OU REALISMO DE SINAL MAIS

Mário Cesariny escreveu em A Capital (????), a propósito de Buñuel um artigo particularmente elucidativo sobre a suposta incompatibilidade entre surrealismo (fantasista, quimérico, romântico, irreal, etc etc ) e realismo. Le Chien Andaluz e Les Hurdes seriam, na óptica (míope) de alguns, coisas impossíveis de conviver no mesmo espaço e até no mesmo autor.
Mário Cesariny demonstra que partem da mesma raiz. Real e surreal só não significam o mesmo quando àquele se sonega algo (muito, quase sempre) ou a este se acrescenta o que lhe não respeita. Só os observadores míopes teimam em ver aí um dualismo (mais um dualismo) que, na verdade, não existe.
O "quotidiano reabilitado" pode sê-lo por duas vias convergentes: realismo e surrealismo.
É ainda na literatura do terceiro mundo que iremos encontrar a grande síntese: Miguel Angel Asturias e seu "realismo fantástico" , Jorge Luís Borges e Gabriel Garcia Marquez, autor este também da simbiose: magia e realidade, passado e futuro, quotidiano e maravilhoso, morte e vida.

HIPÓTESES OU "BOUTADES"?

Extrapolando ainda mais, deixamos ao investigador apetrechado e competente, mais esta "louca" hipótese de trabalho e aproximação: saber se El Platero y Yo , de Juan Ramón Jiménez ou o Maránus, de Teixeira de Pascoaes, sendo tentativas de dar voz a vozes que a não têm (na emergência, um burrico e uma montanha...) poderão enquadrar-se no conceito de literatura descolonizada.
"Boutade" que se considere, pode ser que venha a servir, quando o tempo iluminar certas coisas ainda no limbo, por enquanto só entrevistas ou pressentidas. Porque ainda muito no futuro.
A recolha não folclórica efectuada por Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti, de canções "populares", pode ser mais uma curiosa peça a juntar ao processo em vias de estudo e revisão criadora.

INVESTIGAR = INVENTAR A REALIDADE

Todos os esforços, incluindo os da acção, e principalmente os da acção revolucionária, procuram a unidade: são operações de síntese, no sentido de que o homem seja outra vez o que é.
Vemos como Truman Capote, para rejuvenscer a literatura, elabora um estudo sociológico (A Sangue Frio) e parece revivificar a sociologia escrevendo um romance.
Le Nouveau Planète Nº 2 dedica ao assunto um curioso artigo de Jean Le Marchand, em que cita os exemplos de Oscar Lewis, Edgar Morin e Jean Duvignaud, concluindo que a Sociologia pode rivalizar com a Literatura e reciprocamente. Onde acaba uma e começa outra?
Ainda bem que as fronteiras se esbatem. Sempre que as fronteiras se esbatem, o homem progride. Ganha-se um bocado a si próprio. Conquista terreno sobre a angústia da divisão.
Um romance que não é romance e um ensaio que não é ensaio? Ainda bem.
Só o zoologista da literatura fica aterrado por os géneros se fundirem e confundirem. Quando os géneros se entrecruzam, é sinal de que os especialistas deste e daquele território cultural deixam de o ser, para comparticiparem de vários ao mesmo tempo (simultaneidade é uma noção tão importante, em prospectiva, como as de síntese, identidade, alienação e aceleração histórica).
Os "escritores de fronteira" que os críticos de catálogo não sabem onde incluir, são os que abrem vias novas à literatura porque vias novas à investigação, à. invenção da realidade: entre a poesia e a filosofia, entre romance e sociologia, entre novela e ensaio, quando o humano se está enriquecendo, difícil será atribuir exclusividades de campo. Todas as classificações (paragens no movimento perpétuo de tudo) se pulverizam e todas as fronteiras se esbatem. Caminho de liberdade = caminho de heresia = caminho da imaginação.

ALIENAÇÃO 1970

1-4 - 70-06-14-S&S>

A RAZÃO DE OUTRAS RAZÕES (*)

[(1) - "Alienação e Liberdade no Pensamento Contemporâneo", textos de John Robinson, Arthur Koestler, Michel Drancourt, Alfred Fabre-Luce, Jean William Lapierre, André Amar, Desmond Morris, Michel Foucault e Raymond Aron - Colecção "Cadernos do Século", n°. 7. - Ed. "O Século", Lisboa, 1970.]

14/Junho/1970

Não seria difícil encontrar os pontos comuns que aproximam os vários testemunhos compilados neste livro (1): pensamento de vanguarda, em todos eles existe a preocupação de analisar e criticar o presente, visionando, contudo, as necessidades e virtualidades de amanhã.
Um ponto há comum a quase todos: a relatividade cultural.
Quer dizer: cada vez se compreende melhor que o homem, na acepção de espécie ou raça humana, não é apenas o ocidental, segundo os padrões e modelos que foi mais ou menos impondo a todo o mundo.
Há o direito e a urgência de dar voz a outras vozes, de fazer entrar na História outros tipos culturais (outras “epistemologias", diria Foucault) e a antropologia, finalmente ciência porque universal, abre-se às novas formas do humanos conhecidas e por conhecer, até agora menosprezadas ou ignoradas, porque a espécie se apresenta de facto una mas diversa, susceptível de diversos padrões de comportamento que são outros tantos universos culturais.
Especialmente Desmond Morris, Arthur Koestler e Michel Foucault, acentuam a urgência de dar razão às outras razões que não apenas a greco-latina, romana, judaica e adjacentes.
Caminhar-se-á, de facto, para um mundo de tolerância, embora através de intolerâncias e violências sem conta?
Haverá um equilíbrio universal, de que muitas vezes nos não apercebemos, dentro da nossa óptica forçosamente limitada porque humana mas que testemunhos como alguns dos que aqui divulgamos nos ajudam a consciencializar, lenta e penosamente como todo o processo gestativo?
Sempre que observamos uma hipertrofia, um desequilíbrio ou um paroxismo, não haverá sempre, algures e em surdina, em silêncio e anonimamente, o seu contraponto positivo, o seu termo de correcção, o seu contrário dialéctico?
Sem esta esperança de três interrogações, a História, de facto, apodreceria sem remédio e à espécie humana não restaria mais do que uma asfixia gradual, nas carências primeiro, na abundância e no tédio, por último.
Tão foi por acaso que ao termo “alienação” - que figura no título dessa breve antologia - quisemos adiantar o de liberdade.
Se são mais intensos, audíveis e trágicos os sinais da primeira, não deixam, porém, de ouvir-se já, através de alguns porta-vozes mais lúcidos, ou vais sensíveis, ou mais prospectivos, os sinais da segunda.

SÍNTESE NA EXPERIÊNCIA

A necessidade de síntese é outro leit-motiv dos artigos ali compilados. A vivência ou experiência apresenta-se a quase todos como parte integrante e vital de um novo, de um próximo, de um futuro humanismo. A síntese realiza-se, desta feita, no laboratório de cada um. Ensaiar o pensamento é apresentar um itinerário, pontuado de datas, um diário de pesquisas e inquietações.
O verdadeiro pensador contemporâneo do futuro não notifica o pensar alheio (só o imprescindível para prefaciar o seu) ou as alheias experiências.
Não vive nem pensa por procuração.
Realiza em si, por necessária assimilação, a síntese de todas as análises. Recria a ordem a partir do caos de conhecimentos a que a divisão das ciências reduziu o homem moderno.
Falar de si é sempre e afinal mais importante (porque original e global) do que falar de algo exterior e estranho Testemunhar parece o caminho de um filosofar prospectivo, que cada vez mais desdenha o discurso erudito, a oração de sapiência, o cadeirão académico, que se recusa a mimetizar e a reproduzir.
No caos das ciências subdivididas e multiplicadas, o conhecimento humaniza-se pela prática ("connaitre" é "nascer com"), a teoria vitaliza-se.

ACTORES DA HISTÓRIA

Pensar a História e comparticipar simbolicamente da acção, eis o consciente ou inconsciente objectivo do que procura trocar o laboratório, a cátedra ou o gabinete pelo mundo a transformar. A primeira civilização que se contesta a si própria (André Malraux) é também a civilização em que se perdeu a "identidade entre o homem e o cosmos”, entre o “Homem e Deus" (ainda segundo Malraux). ,
Pela filosofia e seus teóricos, procura-se a unidade ou identidade perdidas. Mas a filosofia, enquanto linguagem, é ainda símbolo desligado das coisas. O filósofo novo procura, pois (Malraux exemplifica ao fazer das suas anti-memórias uma suma filosófica) reunificar o mundo através da experiência-vivência, da qual não pode nem quer desligar a teoria.
Mais ou menos, este índice é comum aos escritores apresentados: filosofam pela experiência e, tendo a noção explícita ou implícita da dualidade filosofia-história, pensamento-acção, teoria-prática, procuram a unidade sendo actores e agentes dessa história. No acto e na acção de escrever.
Pensam a História enquanto comparticipam simbolicamente da acção.
Maio de 1968 serve de exemplo à vaga de síntese ( o essencial do essencial) que caracteriza, por causa e por efeito, o pensamento de uma circunstância revolucionária. Todo o supérfluo e analítico se substituem então, por força da eficácia requerida na acção, da urgência na síntese.
Na vasta literatura inerente, se há casos de psitacismo inútil, podem no entanto ver-se outros típicos da palavra-experiência, do pensamento-acção. Especialmente, é claro, se nos reportarmos aos líderes, aos actores e não aos comentaristas ou aproveitadores do sucesso.

VOCAÇÃO DIALÉCTICA

Fundamentalmente questão de equilíbrio - logo de movimento - a dialéctica nunca poderá ser operação simplesmente mental.
O seu uso e exercício depende, como qualquer outra arte, de uma técnica inicial e logo de uma aprendizagem, mas também de pendor inato, de certo talento e, digamos o chavão metafísico, de vocação.
Adquire-se e aprende-se a técnica e ciência que nela haverá, mas virá a depender muito da arte que nela se puser. Arte, quer dizer, de intuição, de poder imaginário, de espontâneo raciocínio, etc.
Porque ser dialéctico na acção é relacionar tudo constantemente com tudo, detectar afinidades, superar antinomias, unir campos desavindos, contrapor teses ou teorias antagónicas, reconciliar termos antinómicos: o que não se consegue por operações analíticas sucessivas mas por sucessivas operações de síntese. Agir no pensamento e pensar na acção (como provam hoje os líderes mundiais da dialéctica) exige, não há dúvida, vocação... Assim as circunstâncias históricas a coadjuvem e vê-la-emos nascer, florir, frutificar.
Compreender, compreender, compreender.

O CANSAÇO TECNOCRÁTICO

Um certo pensamento de esquerda - um "socialismo de rosto humano" - insurge-se contra a tecnocracia, mas não alinha com os contestatários radicalistas dessa Tecno-burocracia, em globo considerada, desde que, aparentemente, os postulados da ciência e da técnica, como únicos vectores culturais possíveis para desembrulhar a História e fazer avançar o desenvolvimento, sejam também contestados.
Henri Lefèbvre, entre outros, apresenta a saída dialéctica que é sempre uma saída para o que saída talvez não tenha.
Quando António José Saraiva contesta a "civilização burguesa" e parece fazer o elogio de um neo-tribalismo rural, pré-industrial, os seus críticos apenas o entendem como um "reaccionário", porque eles apenas conhecem a alternativa "ou tecnocracia" ou "reacção", esquecendo-se que, como ninguém pode garantir a fisionomia do futuro, o progresso daqui a dez anos pode revestir exactamente esses aspectos que hoje nos parecem reaccionários, porque nós apenas temos padrões do passado para os imaginar.
Quero dizer: o futuro pode inventar formas sociais e culturais pós-industriais que, porque o são, parecem hoje aos curtos de vista pré-industriais.
Recusar a "ordem industrial" ou Tecno-burocracia, porque não há-de ser uma etapa pós-industrial e porque não há-de ser progresso o que profetas como Saraiva, Allan Watts, Cohn Bendit, Herbert Marcuse, Allen Ginsberg, preconizam, recusando a Indústria e a era pós-industrial?
Porque havemos de imaginar sempre uma sociedade Unitária, Monolítica, sem diálogo - em vez de uma sociedade onde coexistam Indústria e Tribalismo, Cidade e Campo, os funcionários da Tecno-Burocracia e os que apenas querem ser, amar, viver, existir?
Aliás, se a própria sociedade margina, pela exploração do homem pelo homem, os seus párias (em ghettos adrede preparados, em bairros da lata) porque é que hipocritamente não consente aqueles que se auto-segregam e rejeitam o paraíso da abundância que até (como se prova) nem é para todos e só para os funcionários arregimentados e obedientes da Ordem Estabelecida?
O cansaço do labirinto tecnológico e tecnocrático, só terá para os cretinos seus funcionários o sentido de um regresso à natureza, ao Rousseau, ao subdesenvolvimento, ao tribalismo, etc.)?
Porque não há-de ter como tem o sentido de um progresso? Porque se julgam monopolistas únicos do progresso, esses que seguem a vida e via da industrialização a todo o preço?
Neo-utopismo, neo-romantismo, neo-misticismo - eis três casos onde o prefixo “neo” se identifica com o conceito manifestado por Theodore Roszak, que, à Nova Cultura e à Revolução Cultural, prefere a expressão "contra-cultura", ao estudar o fenómeno que normalmente se designa por "contestação" jovem e que o autor prefere designar por "dissidência" juvenil.
Essa contra-cultura passa pela política mas não se fica por ela, porque visa a crítica de um círculo mais vasto e uma saída ou ruptura mais radical com o mais vasto círculo a traçar na cultura vigente e em causa.
Encontra-se essa contra-cultura com a antropolitica preconizada por Edgar Morin e, por certo, com a revolução não-violenta de Danilo Dolei.
Para um observador superficial, pode parecer que a contracultura ignora e omite problemas que, no entanto, estão no centro das suas preocupações: simplesmente se insere a sua crítica mais vasta a um mais vasto conjunto de problemas que geralmente não são lembrados (e mesmo omitidos, a pretexto de reaccionários ou decadentes) pelas chamadas esquerdas clássicas.
Daí uma nova esquerda profética norte-americana, afim da contra-cultura preconizada por Theodore Roszak mas que dela se distingue também por não abandonar a sociedade onde se insere.
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(1) - "Alienação e Liberdade no Pensamento Contemporâneo", textos de John Robinson, Arthur Koestler, Michel Drancourt, Alfred Fabre-Luce, Jean William Lapierre, André Amar, Desmond Morris, Michel Foucault e Raymond Aron - Colecção "Cadernos do Século", n°. 7. - Ed. "O Século", Lisboa, 1970.
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