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Saturday, August 26, 2006

IEVTUCHENKO 1990

1-1 - 90-08-16-ls> leituras selectas do ac - ievtuchenko-2-ls> 2572 caracteres

LEITURAS DE VERÃO(**) - RETORNO A IEVTUCHENKO

[90-08-16] - Serve esta novela «Ardabiola»(*), que mais não seja, para retomar contacto com Ievgueni(Eugénio) Ievtuchenko, um poeta soviético da era Krutchev que, na segunda metade dos anos sessenta, abalou os meios editoriais e políticos do Ocidente, empunhando a bandeira do anti-estalinismo, nomeadamente com o livro «Autobiografia Prematura», que as Publições Dom Quixote de então editaram em língua portuguesa. Que saudades.
Acontece que esse livro, típico da era Krutchev e suas ambiguidades, não fica esquecido nem ofuscado por esta novela, que de certo modo acusa a transição para a era Korbachev... E de era em era, de degelo em degelo, se consome uma vida que o escritor talvez tivesse desejado diferente. Creio poder surpreender-se, muito em surdina e nas entrelinhas, essa nostalgia, nas páginas de «Ardabiola», a inconsistente história do cientista que quer descobrir uma planta anti-cancerígena, com base na mistura genética de outras plantas que a tradição popular demonstrou possuirem altas virtudes terapêuticas. Já era então possível, na URSS, fazer o elogio da ciência popular, sem se ser acusado de reaccionário ao serviço da burguesia. Progressos.
Hoje com 57 anos - uma boa idade para começar tudo do zero - , Ievtuchenko foi o típico intelectual oferecido em holocausto à nação soviética pelos arautos do 20º Congresso e talvez tivesse esgotado, com «Autobiografia Prematura», o essencial do que tinha para dizer como funcionário do Partido. Menos optimista agora (com «Ardabiola») do que então ( com a «Autobiografia»), relativamente aos frutos da revolução bolchevique (onde isso tudo já vai), Ievtuchenko deixa transparecer, nesta história, em estilo pobre e pouco fulgurante, dúvidas e mágoas que na época de Krutchev já seriam abusivas mas que faziam prever a época Gorb.
Sem o impacto que a outra sua obra teve, mesmo em Portugal, onde a «Autobiografia» ainda motivou uma visita do autor a Lisboa, a novela «Ardabiola», já com muito pouco de confessional, transmite uma sensação de esterilidade e mesmo de senilidade que entristece, atendendo à mensagem vibrante e calorosa que o poeta, então sob o signo de Maiakovsi e Essenine nos deixara.
Se esta novela servisse para reactivar o interesse do público português por Ievtuckenko e estimular a reedição , em língua portuguesa, da «Autobiografia», que a Dom Quixote publicou em 1967, seria com certeza um dos seus mais apetecíveis méritos.
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(*) «Ardabiola», de Ievgueni Ievtuchenko, Ed. Difusão Cultural
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(**) In «A Capital» , «Leituras de Verão», 16 (23?)-8-1990
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S.JOÃO DA CRUZ 1990

cantico > notas de leitura - leituras de verão

JOÃO DA CRUZ EM «COMPACT»

16/8/1990 - Conta a lenda que o bíblico «Cântico dos Cânticos» teria servido de inspiração ao monge João da Cruz, mais tarde canonizado santo, para escrever este « Cântico Espiritual», que alguns classificam como o maior poema da língua hispânica e que foi agora publicado em português pela Assírio & Alvim(*), quatro séculos depois da morte do autor(1591) e quase outros tantos depois da primeira edição em língua castelhana(1627).
Vários níveis e sedimentos geológicos, entre o céu e a terra, se encontram nestas estrofes, que logo se tornam imperativas pela força que emitem, pela densidade do seu conteúdo informacional... João da Cruz tê-las-ia escrito quando, após um enclausuramento preventivo, movido pelos vigários da época, no convento carmelita de Toledo (onde não viu, durante meses, a luz do dia), recebeu finalmente a compaixão de um carcereiro amigo, que lhe arranjou papel e esferográfica.
«Estes textos, que parecem ter jorrado do êxtase, foram longamente amadurecidos» - garante o crítico francês Pierre Emmanuel. Na época do «compact disc» pode compreender-se melhor a vantagem e utilidade de explosivos concentrados místico-espirituais como este que, na edição formato bolso da Assírio e Alvim, pode perfeitamente concorrer com os da Patrícia Highsmith, uma das senhoras que, actualmente, consegue queimar mais tempo, noites de sono e energias por minuto ao desprevenido leitor de livros.
Este volume das «Poesias Completas», denso que nem uma constelação, permite um primeiro contacto, corpo a corpo, um encontro imediato do segundo grau muito funcional e directo, com a dimensão mística da vida - a mais nobre que, em terras profanas do Ocidente e em plena sociedade do consumo esquizofrénico, se consegue, antes de claudicar na miséria da abjecção contemporânea.
João da Cruz, nas prosas da «Subida do Monte Carmelo» mas principalmente nos cânticos deste seu «Cântico», é um dos mais altos cumes dessa cordilheira andina que se chamou, na literatura hispânica, «siglo de Oro» e que os portugueses, de voo muito mais rasteiro e terra a terra, vão tendo oportunidade de cheirar, graças à porfiada acção dessa equipa excepcional e verdadeiramente providencial de «místicos contemporâneos» que são o tradutor José Bento e o editor Hermínio Monteiro (não confundir nunca e em caso algum, com Martinho).
Graças a eles, é muito menos humilhante o sentido retrógrado que todo o progresso assume em Portugal, sabe-se lá porque ancestrais culpas do nosso colectivo: por aqui e por enqunto, não são os doutores místicos da Igreja, como S. Juan de la Cruz, quem impera, mas os da Mula Ruça.
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(*) «Poesias Completas», S. João da Cruz, tradução de José Bento, ed. Assírio & Alvim
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Friday, August 25, 2006

A. MOLES 1971

1-2 - moles-1-ls> terça-feira, 24 de Dezembro de 2002-scan

EQUÍVOCOS DA ESTÉTICA INFORMACIONAL (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, bastante medíocre graças a Deus, foi publicado duas vezes: em «Notícias do Futuro», jornal «Notícias da Beira», Moçambique, 15-10-1971 e no semanário «O Século Ilustrado», Lisboa, «O Futuro em Questão», 2-10-197131-8-1971

- Entrevistado por Lionel Richard, em Magazine Littéraire, Abraham Moles declara, ao definir a estética informacional de que ele e Max Bense (este na Alemanha Federal) se consideram principais teorizadores:

"Sob as nossas influências, aliás muito indirectas, ocorreu a ideia de juntar aos computadores os diversos elementos de composição de uma obra: foi o nascimento do que designei por “estética permutacional", uma arte combinatória. Eis, essencialmente, onde o nosso trabalho teórico veio desaguar. Os alunos de Max Bense dispersaram-se um pouco por toda a parte. Os meus também. O que está em vias de se desenvolver, a partir daí, é uma arte "estruturalista."

Vem esta longa citação de Abraham Moles por causa de uma coisa.

O anacronismo dos que se julgam na mais avançada vanguarda estética - só porque falam, falam muito de inventos electrónicos e de avanços tecnológicos - torna-se mais sensível no momento em que a crítica mais avançada põe totalmente em questão toda uma estrutura cultural - a Tecnocracia - que tem nos computadores e na tecnologia dos computadores mas também no Átomo e na bomba atómica, na poluição e nas endemias mortais, os seus máximos, típicos representantes, símbolos ou expoentes (como soe dizer-se).

Quer dizer: no momento em que a Contestação põe em dúvida os fundamentos de uma tipologia cultural, os defensores da arte cibernética, construtivista, experimentalista e, em suma, estruturalista, fazem dessa cultura, dessa tipologia e seus típicos produtos o nec plus ultra. O pretenso progressismo estético toca assim o mais crasso reaccionarismo, certa vanguarda não é assim mais do que o pior academicismo.

Por outro lado, os teóricos que falam em nome do estruturalismo pretendem - como afirma Abraham Moles - considerar "a estética como um ramo de psicologia da percepção" - quando exactamente a psicologia da percepção está a dar as últimas - o que, se bem os entendo, significa não emitir juízos de valor sobre uma obra e tão só juízos de facto.

Quer dizer, e citando ainda Abraham Moles: "a arte é uma mensagem, isto é, releva da teoria geral das comunicações. Dizemos que a partir daí existe um emissor, que é o artista, um canal (a vista, a audição, etc) e um receptor, que é um homem vulgar (sic) encontrado entre a massa, com o seu stock de "cultura", a sua formação, os seus gostos, os seus preconceitos. Reside nisso o fundamento da estética informacional.»

De maneira que, para esta estética informacional, todo o produto é, em princípio, obra de arte e não há diferença entre Joyce, Carolina Invernisio, Paço d'Arcos ou Alves Redol.

Aparentemente este niilismo estético vai ao encontro de um Jean Dubuffet que preconiza a destruição de todos os cânones, deseja que peguem fogo aos museus e defende o kitsch, a arte bruta, a anti-arte. Mas só aparentemente: no fundo, situam-se em pontos antípodas. Enquanto a estética informacional de Moles e Max Bense pressupõe um aceitamento e acatamento de toda a estrutura (digamos estrutura A) cultural vigente, o "vandalismo" de Jean Dubuffet abre
-se a todas as estruturas possíveis de A a Z e exerce-se, precisamente, contra os limites asfixiantes da estrutura A.

Desta aparente afinidade, mas só aparente, retira o construtivismo, em última instância, vantagens, já que só o construtivista - que tanto diz prezar a razão A, aristotélica e tudo - beneficia da confusão e dos confusionionismos.

Vendo nós em exercício, críticos que a si mesmo se consideram da escola estruturalista, não se lhes nota apenas essa contradição. Eles caracterizam-se, aliás, por um permanente. estado de incoerência lógica em relação aquilo que dizem defender e comparado ao que os vemos praticar.

Ora as contradições, ao entrarem na polémica e ao tentarem justificar-se, transformam-se em sofismas e do sofisma à vigarice intelectual vai um ápice. Das incoerências e dos incoerentes, há que esperar tudo. E tem-se visto que de tudo um pouco daí vem.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, bastante medíocre graças a Deus, foi publicado duas vezes: em «Notícias do Futuro», jornal «Notícias da Beira», Moçambique, 15-10-1971 e no semanário «O Século Ilustrado», Lisboa, «O Futuro em Questão», 2-10-1971

Wednesday, August 23, 2006

T. MANN 1991

1-1 - 91-08-29-ls> 0 leituras selectas do ac - mann> 748 caracteres

29-08-91

«A MORTE EM VENEZA» - THOMAS MANN - LUCHINO VISCONTI

Com sinfonias de Mahler, novela de Thomas Mann e outros expedientes audio-visuais (a carinha do actor, por exemplo), tenta Visconti tapar-nos a vista para a falta de cinema que este cinema tem. De uma óptica não teatral, nem literária, nem musical, nem de profissional de decoração, que fica?
A novela de Mann, que lida terá mais sabor a fruta fresca do que vista através destas lentes e desta cenografia balofa, barroca. Quem cai em olhares de carneiro mal morto, em ademanes e convites esteticistas tão caros à senilidade helenista de Visconti, mas tão inúteis e crassos para quem procura cinema no cinema e só lá encontra palha? (Estreado em Lisboa no Satélite, crítica AC na «Vida Mundial»)

GURDJIEFF 1963

1-2 - gurdjieff-2-ls= leituras selectas domingo, 22 de Dezembro de 2002-scan

À MARGEM DO LIVRO «MONSIEUR GURDJIEFF»:
A DOENÇA DA CIVILIZAÇÃO (*)

[29–8-1963 , in «Diário de Notícias» (Lisboa) ] - A neurose ou nevrose generalizada de que sofre toda ou quase toda a humanidade dita civilizada traduz-se principalmente e em ultima análise na doença da vontade, na sua como que atrofia secular, agravada pelo peso e pesadelo de uma educação cada vez mais atrofiante e de uma guerra de nervos à escala mundial cada vez mais aterradora ou terrorística. A vontade não é vontade, mas um simulacro de vontade.
Como diria Gurdjieff, nós não temos vontade, temos desejos, que, por sua vez, não passam de hábitos disfarçados. Algo nos move, não somos nós que nos movemos. Por isso auto-móveis são os propriamente ditos e não nós...
O principal problema que o médico alienista ( psiquiatra, psicanalista) hoje defronta é, pois, o da vontade, que foi e continua sendo um objecto de estudo e nada mais; estuda-se, subdivide-se, fazem-se tratados e filosofa-se sobre a vontade, sabe-se tudo ou quase tudo acerca dela menos como usá-la, menos como ter vontade.
« A cette époque, il me semblait que la manque de volonté était la «bête noire» dans le traitement des nevroses.» - afirma, em 1927, o doutor Young, discípulo de Jung. E é a seu propósito que Louis Pauwels escreve na página 182 do livro(1) que estamos referindo: «alguns anos após de aprofundamento e aplicação da psicanálise, ele (refere-se a Young) põe a única questão importante, aquela que Jung não ousa enfrentar, nem, por maioria de razão, Freud: a questão da vontade.
Não se trata, evidentemente, desta vontade descrita nos manuais de psicologia clássica, mas se assim se pode dizer, da vontade da vontade, ou, noutros termos, da mola número um da libertação do homem.»

NEVROSE GENERALIZADA

A nevrose generalizada é um facto conhecido e reconhecido pelos médicos alienistas.
«Toda a gente sofre dos nervos» - seria a expressão comum com que se banalizou uma das mais trágicas realidades do nosso tempo, realidade contra a qual pouco podem as forças até agora desencadeadas para a combater. A ciência médica parece que teria continuado aliás empenhada em defender dogmas teóricos do que em curar doentes, a fazer fé no que afirma ainda o dr Young na página 181 do livro «Monsieur Gurdjieff»:
«Eu estava, sem dúvida, um pouco desencorajado pela inconsistência e ambiguidade dos resultados da terapêutica analítica, comparados aos resultados concretos da cirurgia que eu próprio tinha praticado bastante, antes e durante a guerra.
«Este desencorajamento profundo era agravado pelos cantos de júbilo dos sectários
obtusos que aclamavam uma técnica esclerosada logo que inventada, e também pelas discussões dos meus confrades analistas, mais preocupados em defender pontos de vista dogmáticos do que em curar os doentes. A cura, para os mais eminentes, parecia ter-se tornado um problema imediatamente sem interesse e eu começava a encontrar-me, com desespero, entre os cépticos que modificando os termos da brincadeira clássica: «A operação foi um êxito mas o paciente morreu», lançavam a fórmula: «A análise foi um êxito, mas o paciente suicidou-se.» Em resumo, a psicologia moderna parecia-me pretender muito corno ciência e por aí se Gomava ridícula e muito pouco como arte - e por aí se tornava ridícula – e muito pouco como arte – e por aí se empobrecia.»

Perante este e outros testemunhos, é que parece justificada uma crescente sensação de logro perante a medicina oficial. O grande e maior problema, a grande e maior doença, é a da vontade. No entanto a ciência até hoje nada fez, nada faz , nada consta que esteja resolvida a fazer, de prático, de efectivo, de realmente eficaz na sua terapêutica. Espécie de peste do nosso tempo, a « epidemia» neurótica, ao lado do cancro generalizado pela progressiva viciação do ar respirável - eis as doenças da Hipercivilização contra as quais a ciência hipercivilizada continua impotente.

Não se pretendendo recusar à ciência revelada, oficial ou académica os poderes que efectivamente tem para debelar outros tipos de doença que não sejam as «doenças da civilização» cremos que, quanto a estas, ia sendo tempo de pedir à ciência académica que abrisse os olhos e percebesse que outros caminhos, extra-académicos , se terão de abrir.
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(') Louis Pauwels , «Monsieur Gurdjieff,» - documentos, testemunhos, textos e comentários sobre uma sociedade iniciática contemporânea - Editions, du Seuil, Paris, 1954.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas pela antecipação das intuições fulcrais, foi publicado no suplemento literário do «Diário de Notícias», dirigido então por Natércia Freire que lá me acolhia os textos. Foi publicado no dia 29 –8-1963

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J. UPDIKE 1991

1-1 - 91-08-29-ls> = leituras selectas - updike> 2459 caracteres

PRÉMIO PULITZER NÃO PERDE TEMPO - VISÃO SATÍRICA DA CONVERSÃO MÍSTICA

[29-8-1991]

Prémio Pulitzer em 1990, o escritor norte-americano John Updike já é conhecido do público português, através de várias traduções dos seus romances, nomeadamente «As Bruxas de Eastwick» (Gradiva), «O Centauro» (Europa-América), «Escola de Música»(Civilização) e «Uma Questão de Confiança» (Difel).
Mas a obra agora publicada(*), pelo tema que aborda, será das que podem suscitar maior interesse das novas gerações, à procura de um estilo de vida e de uma concepção existencial menos sofisticada, inquietação que a sociedade de consumo nunca conseguiu satisfazer.
John Updike tem consciência da transição necessária para a «terceira vaga» mas encara com algum cinismo as correntes místicas que, para a geração dos anos sessenta, constituíram resposta à contestação juvenil e hoje estão a ser laboriosamente recicladas sob a designação genérica de «New Age».
O sistema recupera sempre o que o combate e ninguém melhor do que Updike para o saber: escrita sob forma epistolar (que também parece estar na moda), esta história agora traduzida em português, conta como Sara Worth, perfeitamente integrada no «way of life» americano, com esposo e filhos, decide entrar para um «ashram» místico de um guru indiano. Não hesita em viajar para o deserto do Arizona, na costa ocidental dos Estados Unidos, e é precisamente com essa viagem, contada por Sara nas suas cartas à família, aos amigos, ao psiquiatra, ao dentista e ao advogado(!) que o romance começa.
Baseando-se num esquema já de si estereotipado, é então que Updike decide estereotipar ainda mais, até à caricatura, obtendo assim um retrato disforme mas extremamente eficaz, como arma destrutiva, contra as eventuais alternativas que se colocam ao «establishment». Moral implícita da história: a sociedade de consumo tem defeitos, mas não há hipótese de fugir à sua lógica corrupta. Ele ganhou o Pulitzer, porque consegue, através de um estilo eficaz e de uma narrativa tão verosímil como interessante, «demonstrar» que esses gurus não passam de uns oportunstas com os mesmos vícios dos chefes (e)das religiões ocidentais...
Vemos assim que no convívio com os outros «sannyasins» (peregrinos), Sara irá aprender as dificuldades que existem para dominar o «ego» e alcançar a «moksha» (salvação). Mas que o «ego» faz muita falta e acaba sempre por violar. Desta nomenclatura exótica, de que o livro fornece um glossário no final, retira também o romancista efeitos satíricos, contundentes.
Sara Worth, ao mesmo tempo que vai criando um mundo novo para si própria, procura manter em ordem aquele que deixou. Assim, a sua luta pela conquista de um mundo espritual novo é transmitida em cartas que, em conjunto, podem também constituir uma visão sobre a condição feminina na América dos nossos dias.
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«S» -- John Updike -- Ed. Livros do Brasil
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F. DURRENMAT 1991

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29-8-91

CRIME PERFEITO MAIS SÉRIO DO QUE PARECE - QUEM ESPIA QUEM OU A QUESTÃO DO CONHECIMENTO

Nada melhor do que o esquema policial clássico -- com uma pitada de espionagem e outra de aventuras para, sem armar ao filosófico e sem afugentar leitores, conduzir uma investigação epistemológico de fundo, sobre o objectivo e os limites do conhecimento humano. Em tempo de audio-visuais, há que lançar a dúvida metódica sobre a omnipotência desses meios como acesso à realidade.
Foi o que fez o escritor suíço Friederich Durrenmat, recentemente falecido, com a história traduzida para português e que se chama «A Missão»(*).
Uma equipa de televisão tem a seu cargo -- dentro do que a «intriga» estabelece -- representar a «construção da realidade» através da câmara, que só vê o que os olhos humanos também vêem. Observadores são, por sua vez, observados, numa espécie de pescadinha de rabo na boca que formula sérias questões filosóficas. De facto -- sugere implicitamente o autor -- a realidade, a verdade, está sempre para lá do que os sentidos alcançam e por mais máquinas que aparentem ampliá-los. Cruzando-se com a intriga policial e a história de espionagem, o que prevalece é o jogo de esconde-esconde, o ludíbrio como método político e diplomático.
Uma repórter, na vertigem dos acontecimentos, procura manter o pé firme, tentando a bissectriz deste caos contraditório -- o que não é, evidentemente, fácil. Como fácil não é (embora seja fascinante) acompanhar o jogo do gato e do rato que nos é proposto nesta novela (nem sequer muito longa) de Durrenmat, o malogrado escritor de que os editores portugueses se poderiam agora, post mortem, abeberar, com vantagem, com novos títulos traduzidos e publicados. Além de «A Missão», temos também editado em português pela Relógo d'Água, «A Justiça».
Como diz o próprio autor, este é um livro escrito em «prosa experimental», que se lê como quem escuta um monólogo ininterrupto de capítulo para capítulo, assim como «se alguém receasse perder a respiração». Em «A Missão» -- cuja acção gira à volta da mulher de um diplomata suíço -- tudo se joga num labirinto de equívocos e aparências. O interesse em saber mais sobre esta mulher leva uma realizadora de cinema e televisão a um país árabe, palco de complicadas intrigas de poder, onde a violência e a morte se misturam debaixo do sol abrasador das areias do deserto. «De certa forma -- adverte ainda o autor -- esta narrativa constitui um símbolo e uma representação do mundo, em que o motivo de observação forma como que o labirinto onde se esconde o deus do nosso tempo. O deus de homens e mulheres que vivem procurando ser simultaneamente observadores e observados, para reencontrarem um sentido da existência».
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(*) «A Missão ou da Observação do Obervador dos Observadores» -- Friedrich Durrenmat -- Ed. Presença
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Tuesday, August 22, 2006

J.A. DE ALMEIDA 1964

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A PROPÓSITO DO ROMANCE «BAGACEIROS» DE JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA

[(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias», Porto, em 27-8-1964 ]

A descoberta do Brasil continua... No romance, floresta equatorial por explorar, onde o europeu em geral e o português em particular rara-mente penetra, ou se perde se lá entra, rompendo o obstáculo de apenas 3 ou 4 nomes celebrados pelos jornais, o leitor, de vez em quando, «descobre» um novo livro, um novo nome e conclui, entre outras coisas e espantos, que o processo da literatura neo-realista não está de modo nenhum completo nem sequer encetado.
O realismo brasileiro fundamenta-se a si mesmo, sem antecedentes, e está em vias de vitalizar os estéreis neo-realismos, de tradução e importação. Em casos como o de José Américo de Almeida, a poesia não é um talhe posterior dado, por desfastio, às cópias do natural: nasce da terra, das situações, da vida mas principalmente de uma linguagem ao calor da qual tudo se transforma e recria.
É principalmente uma nova Babel em que idiomas particulares se fundiram para resultar um idioma único: é depois um aproveitamento excepcionalmente fe-liz das peculiaridades regionais que por via desse idioma transitam ao universal.
Relativamente à língua portuguesa, mostra-nos este romance, e este romancista que o português clássico já lá vai e que uma nova língua portuguesa aí está a nascer intempestivamente. Por isso a literatura portuguesa de Aquém Atlântico terá de olhar com quantos olhos tiver para o novo romance brasileiro, indo além de casos discutíveis como o de Erico Veríssimo e Jorge Amado, ou do pioneirismo de Graciliano e Machado de Assis. Ali parece estar a decidir-se o futuro de uma língua e portanto de uma literatura, sem atlânticos a separá-la. Ali se está exercitando desde a origem um novo génesis em que apetece mergulhar. Decididamente a «descoberta» do Brasil continua e é lá que está o nosso futuro literário. Não deve afinal a vitalidade dos progenitores aquilatar-se pela vitalidade da progénie?
Nesse caso, só temos de que nos envaidecer com o que em matéria de revolução literária os brasileiros estão fazendo. Bravo, moços!
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias», Porto, em 27-8-1964
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UNAMUNO 1990

1-2 - 91-01-07-ls> leituras do ac - Unamuno> -3060 caracteres

UM POVO DE SUICIDAS(*)

[7-1-1991]

(***) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», «Leituras de Verão», 27-8-1990

Criar perspectiva crítica para nos entendermos como povo nacional distinto de outros povos, no contexto da Península Ibérica, é um dos melhores benefícios que se podem colher desta obra(*) de Miguel de Unamuno, que a Assírio & Alvim resolveu, em boa hora, mandar traduzir e publicar.
«Por Terras de Portugal e da Espanha» impunha-se, como um dever patriótico.
Entre os artigos que o célebre catedrático de Salamanca (alma gémea de Teixeira de Pascoaes, como em vida de ambos puderam confirmar) consagra a Portugal, figura aquele que, radicalmente, nos denuncia no nosso mais persistente complexo colectivo, aquele que nos classifica, em estilo de anátema, como «um povo suicida». A mais recente história contemporânea, sem falar da antiga, parece que bem comprova a tese de Unamuno. Haverá quem considere este diagnóstico um estigma demasiado radical, outros dirão que ainda é pouco e outros que não tem nada a ver com a chula minhota ou o corridinho algarvio, tão alegres coitadinhos.
Em qualquer dos casos, acompanhado à guitarra da ditadura ou a toque de pífaro democrático, o nosso destino coincide com a visão realista de Unamuno, queiram ou não os optimistas profissionais, que vivem distribuindo óculos cor-de-rosa ao povo.
O autor de «Sentimento Trágico da Vida» (**) encontrava, em Portugal, como é óbvio, um bocado da sua própria alma, pouco dada a quimeras. E desse encontro ele falou, dessa sintonia deu testemunho. Se os portugueses conseguissem olhar-se com metade da atenção e da lucidez com que Miguel de Unamuno nos psicanalisa, não andaríamos talvez tão perdidinhos de nós próprios, das nossa raízes e da nossa identidade, com os escritores todos da moda à procura da «portugalidade» perdida nos areais marroquinos do desejado.
Ninguém é profeta na sua terra e muito menos analista dos seus próprios defeitos e qualidades. Sempre com o nariz no ar, à procura dos outros - povos, terras e negócios - os portugueses têm tido, no entanto, a sorte de haver quem sobre eles se debruce, com o carinho de um irmão, a severidade de um pai e a lucidez de um mestre. Miguel de Unamuno, significa para nós esse olho clínico que nos ajuda, pela consciência do que não queremos assumir (o gosto da morte), a realizar o nosso próprio diagnóstico.
Em «Por Terras de Portugal e da Espanha» ele examinou-nos e deu o veredicto: nem tudo está perdido, ainda vamos a tempo de nos encontrar. É só questão de olho.
Dizer que é José Bento o responsável pela tradução, notas e prefácio, significa só por si um atestado de qualidade desta edição com que a Assírio & Alvim se honra e, como povo ibérico, nos honra.
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(*) «Por Terras de Portugal e da Espanha», Miguel de Unamuno, tradução de osé Bento, ed. Assírio & Alvim
(**) Existem duas edições em português desta obra de Unamuno: uma de 1953, em tradução de Cruz Malpique, na editora Educação Nacional; e uma muito recente, de Artur Guerra, lançada pelo Círculo de Leitores
(***) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», «Leituras de Verão», 27-8-1990
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