J.P.MULLER 1967
1967
AS PRÁTICAS NATURISTAS SERÃO REACCIONÁRIAS?
O PROGRESSO É UM PROCESSO DE CONSTANTE SIMPLIFICAÇÃO
REENCONTRAR A NATUREZA É UMA FORMA DE PROGRESSO
13/Setembro/1967 - Pelo que nos conta o dinamarquês J.P. Muller, autor de alguns livros muito divulgados em Portugal à volta de 1900 - «A Vida ao Ar Livre» e «O Meu Sistema» são os mais conhecidos - , o uso do chapéu constituía então hábito tão arreigado e coisa tão natural que ninguém se atrevia a bani-lo, com o receio de se ver votado ao desprezo e ostracismo sociais...
É bastante expressivo e vale a pena transcrever na íntegra o caso que Muller refere:
«Embora seja económico, agradável e salutar andar de cabeça nua, poucos se atreverão a fazê-lo, não só por ser moda como ainda por temerem chamar sobre si a atenção das gentes.
Este artigo foi-me inspirado por uma carta que me escreveu um jornalista muito conhecido em Copenhague, carta de que vou transcrever o seguinte trecho: «como o poeta Holger Drachmann, uso o chapéu como quero, isto é, passeio com a cabeça descoberta.
Mas, santo Deus, como - subentenda-se - os imbecis troçam de mim! Se me detenho um instante num cais ou numa ponte, é ver como uma ou mais dezenas de criaturas dos dois sexos lançam os seus olhares para a água a ver se lobrigam aí um chapéu que repousa, cheio de poeira, no meu armário.
Os garotos arreliam-se, as raparigas conhecidas sorriem-se para mim e batem várias vezes na testa com a extremidade do indicador, como quem diz : «Coitado, está maluco!» Verdade seja que este procedimento dos meus concidadãos me não faz a mais pequena mossa. É-me completamente indiferente o que Pedro ou Paulo pensam a meu respeito. Não lhe poderia , contudo, o meu amigo dizer num artigo que o uso da cabeça descoberta é verdadeiramente higiénico?»
A resistência às mudanças nos hábitos e costumes, até à mudança de simples modas, como se vê, é de todos os tempos e se não nos passa hoje pela ideia que o facto de usar ou não usar chapéu constituísse na Dinamarca de 1990 um sério problema, o facto é que o caso narrado por Muller, para lá de ser anedótico, poderá dar-nos uma imagem exacta da inércia que, em todos os tempos, os hábitos e costumes adoptados opõem às práticas que a higiene, a razão ou o simples bom senso muitas vezes aconselham a modificar.
O caso, com seus laivos de tragicomédia, revela-nos ainda que as conquistas da civilização hoje consideradas correntes, levaram bastante tempo e custaram muitos sacrifícios antes que pudessem enraizar-se nos hábitos normais de modo a tornarem-se evidências tão naturais que nelas já ninguém repara.
A quantos hábitos - tão inocentes e tão vulgares como o de não usar chapéu - não se continuará oferecendo ainda hoje uma estúpida e tenaz oposição, por mais que a higiene, a razão, a experiência ou o mero bom senso aconselhem mudança?
O caso, que hoje nos parece anedota, demonstra também que o progresso é, o fundo, e embora contra muitas aparências, feito de coisas simples e um processo de constante simplificação.
Os que avaliam a civilização pelo número de produtos e maquinismos que enchem o mundo do consumidor, consideram que complicar é progredir. Mas os que não confundem avanço tecnológico com o progresso humano, sabem que as técnicas, ao tornarem-se mais complicadas, deveriam ter exactamente por função simplificar a vida dos indivíduos, no seu trabalho e nos seus ocios.
Quando uma técnica, em vez de concorrer para poupar o esforço físico ou mental do indivíduo, ou para o libertar de ancestrais escravidões, ou para o enriquecer de novas experiências, ou para lhe desenvolver faculdades e capacidades de afecto, vontade, lucidez, concorre para o atrofiar nas suas virtualidades, para o empobrecer nas suas vivências, para o minguar de seus dons, para o prender a piores escravidões e constranger com mais fortes cadeias, então devemos desconfiar, não só da técnica mas do sistema económico que serve, da maneira como é aplicada na prática quotidiana e administrada pelos que directamente a utilizam.
As técnicas naturais de cura, mesmo quando preconizam, entre os seus mais ardentes prosélitos, um regresso total à Natureza ou se inspiram num utópico naturalismo à Rousseau, estão dentro da verdade e significam sempre um progresso porque procuram valorizar o indivíduo, desenvolver-lhe faculdades, curá-lo de mazelas, proporcionar-lhe uma existência
mais saudável, mais livre, mais feliz.
A cura pela natureza, mesmo para os movimentos mais radicais que a preconizam e defendem, não significa um retrocesso histórico para a idade das cavernas, para um primitivismo neolítico, para uma idade de ouro mítica, não significa que se deseje um êxodo em massa das cidades (ainda que ele fosse desejável...) nem uma recusa sistemática e radical a tudo quanto a ciência e a técnica (males que se tornaram a si mesmos necessários) proporcionam para possível e alegado conforto e benefício de quem habita os meios urbanos ou urbanizados.
A própria medicina natural deitará mão de processos, utensílios, aparelhos quando verifique que estes tornem mais eficazes as suas práticas, limitando-se a recusar tudo o que, na outra medicina, considera pernicioso, desnecessariamente complicado, ineficaz, paliativo ou mesmo criminoso.
Sempre e nas práticas terapêuticas também, trata-se de simplificar a existência, isto é, de libertar o indivíduo alienado a tantas e tantas forças negativas (de superstição, ignorância, má fé e obscurantismo) que não só hoje, dentro das cidades «civilizadas», mas sempre, mesmo quando habitava em cavernas, em contacto directo com a Natureza, o escravizavam.
Portanto, a doença, alienação ou escravidão do homem, não reside no facto de ele viver no campo ou na cidade, em contacto com a natureza ou dispondo apenas de produtos artificiais e de manufactura industrial.
Em um e outro habitat , o que define o seu grau de progresso (de saúde, de liberdade, de felicidade, como se prefira chamar- lhe) é o grau de independência em que se encontra, através dos recursos técnicos ao seu dispor, em relação ao meio que o cerca e às forças que tem de dominar ou neutralizar.
O erro dos que criticam a civilização em nome da natureza e dos que caluniam a natureza porque supõem o regresso a ela um retrocesso, o erro consiste em, nos dois casos, se supor o homem do campo mais livre (feliz, simples ou saudável como se preferir dizer) do que o da cidade, quando o que de facto se passa é haver no primeiro uma desproporção menor (logo uma menor alienação) entre as forças que o condicionam e as forças (psíquicas, morais, humanas) de que dispõe para enfrentar aquelas.
Em suma: proporcionalmente, o homem da cidade está mais desarmado frente a um meio mais hostil, a sua vitória é, portanto, mais fraca e sucede menos vezes do que a do campesino.
No entanto, deve referir-se a luta que este último tem que travar com os próprios elementos naturais adversos, para a qual se encontra muito mais desarmado, enquanto ao citadino os ventos, raios e chuvas nada ou pouco afectam, deles se encontrando (através do progresso técnico) muito mais defendido.
Eis, pois, como queríamos demonstrar: as práticas naturistas representam formas de progresso humano e social porque dotam o homem (do campo ou da cidade) com um meio eficaz de se revitalizar, de se revalorizar nas suas disponibilidades físicas e espirituais. Isto é: energéticas.
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