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Wednesday, July 19, 2006

TESTAMENTO PÓSTUMO AC EM 1992

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TESTAMENTO LITERÁRIO-I

20/7/1992 - Se nunca tive paciência para construir um romance, se contos - com princípio, meio e fim - escrevi tantos como os dedos de uma só mão, se versos deixei de os produzir quando entrei para as galés (jornais), por incompatibilidade de registos e feitios entre poesia e quotidiano das notícias, se teatro nem lê-lo quanto mais fazê-lo, se qualquer coisa que se pareça com um poema épico só de pensar nisso me dá agonia, pergunto: como quero eu que perdurem os milhares de páginas que deixei escritas e que, em conjunto, pouco mais são do que diários e cartas, cartas e diários? Fui um escriba (acocorado) de cartas, apontamentos, ideias soltas (contam-se pelas duas dezenas os ensaios longos que me saíram da curta inspiração). Como posso eu aspirar a sobreviver para lá do momento, para lá do efémero? Como posso eu querer a imortalidade e que me editem?
No entanto, alguns casos há de infelizes sem talento como eu que me dão uma certa esperança. Eu gostaria que me publicassem, nem que fosse quando estivesse já a fazer tijolo. Tento comparar-me a esses eternamente póstumos que foram desenterrados muitos anos depois de mortos e fico mais animado: quando tempo terei eu, Oh! Cristo, de esperar debaixo da lousa para ressuscitar? Ajuda-me, Cristo, que sabes destas coisas. Se o Fernando Pessoa só publicou em vida a «Mensagem» e mesmo essa o júri de um prémio lha rejeitou. Se o Kafka lá em Praga só começou a ser digerido postumamente e o seu diário hoje, apesar de babujado pelo seu amigo Max Brod, é tão apresentável como as suas novelas de pesadelo. Se o Ivan Illich, embora subvertendo o sistema, acabou por ser tolerado e vem na Fontana Books, porque não hei-de eu, 30 vezes mais subversivo do que Illich, acabar por ser tolerado também na Enciclopédia do Círculo de Leitores?
Se o Jean Baudrillard tentou apanhar, como eu, o «movimento da abjecção» e a abjecção em movimento, mas não deixou de se ver em livro das edições pirata Galillée, porque não hei-de eu ter esperança ainda que remota de me lerem os ensaios sobre a Abjecção?
Se o Stanislaw Lem, depois de tantos romances canónicos conforme as regras, com princípio, meio e fim, ignorou os diálogos e escreve o anticanónico por excelência que é a «Biblioteca do século XXI», que nem um diálogo tem para amostra, e só pra chatiar, porque não hão-de os meus discursos sem diálogos, os meus cadáveres esquisitos e de non sense ser peças literárias antiliterárias apreciáveis?
Se a maior parte dos livros que Étienne Guillé cita na bibliografia estavam na minha biblioteca e se as intuições que eu alimentei a biberon baseadas nesses livros mostram afinal não ser fantasmas puros, porque não hão-de as centenas de páginas com as minhas malditas intuições ser comercializáveis, nem que seja na feira da Ladra?
Se postmortem o Antonin Artaud já vai em 20 volumes de obra completa, ele que nunca escreveu nada articulado nem uma linha sequer completa, e cuja prosa é - como a minha vida - um vómito, um desastre, um caos, porque não hei-de eu, embora esteja em Portugal e não haja cá nenhuma sucursal da Gallimard, vir a ter também direito a OK (Obras Kompletas) de 20 volumes fora os trocos na casa Hachette de Lisboa?
Se o Fialho de Almeida, sendo a vergonha da minha família como eu, seu primo irmão de Vila de Frades, conseguiu encher 6 volumes com prosas jornalísticas (e o Ramalho 14) porque raio as minhas prosas jornalísticas, reportagens de ficção, críticas, crónicas, não hão-de dar direito também a uns volumes airosos na Clássica?
Se vejo agora em «A Conspiração Aquariana», de Marilyn Ferguson, que há 40 anos tenho razão, fora os trocos, porque não hei-de já agora continuar a ter razão por mais 40 e a ser lido quando as minhas teses agora malditas entrarem nas escolas primárias e quiçá nas secundárias, ou puderem editar-se em histórias aos quadradinhos? O Estado, hoje, em que isto se encontra, não perdoa a quem pensa, mas pode tolerar amanhã, morto, quem o dispensou toda a vida.
Se o Urbano Tavares Rodrigues, o David Mourão, o Vasco PVC, o MEC da Silva, o Nuno Brederode Santos, o António Mega Ferreira, mal aprontam uma crónica em semanário já a dão à estampa em livro, mal saem no hebdomadário logo se vêm em livro, porque diabo não hei-de, daqui a doze anos, ver meus doze anos de semanal Crónica do Planeta Terra (as célebres CPT que me puseram em várias listas Negras do Poder) ver um dia em livro?
12 anos todas as semanas, é suficientemente sado-masoquista para um editor se tentar: 12 x 52 dá 624 prefixas, o que é uma soma aterradora. Mas mesmo assim não foi o Ramon Lull (que descobri aos 57 anos) acusado de escrever mais de quatrocentas obras e empalado por isso? Serei eu menos do que ele? E em matéria de êxtase místico não podem as minhas cartas de amor pedir meças ao «Livro do Amigo e do Amado»? O próprio Camilo, não acabou por publicar os restos da novelística, apontamentos, aforismos, cartas, notas soltas, bilhetes de eléctrico, esse estendal verdadeiramente obsceno de prosa pura genial sem géneros nem cânones?
É certo - reconheço tímido - que diários e cartas só merecem o custo de um livro quando os autores mataram alguém ou mostraram ter outros talentos igualmente canónicos: ou porque lhes saiu uma peça teatral de preferência em 3 actos, ou porque o romance obedecia às sete regras recomendadas pela OMS e obrigatórias, ou pelo manual de estilo do David Mourão Ferreira, ou porque o conto gozava de um desfecho feliz e todos os críticos, sim senhor, disseram muito bem, que aquilo tinha talento.
Mas não poderei eu, depois de morto, conseguir apanhar esses críticos da literatura distraídos e impingir às massas críticas, diários, cartas e reportagens que produzi em abundância?
É claro que há exemplos aterradores. O José Bacelar, por exemplo, autor de uma obra prima - «Razão e Absoluto» - caiu de tal modo no poço do esquecimento que mais ninguém se lembrou de que foi o editorialista seareiro da resistência anti-ditadura. Mas já o Miguel Unamuno, com esse ensaio elegíaco que se chama «El sentimiento trágico de la vida», tão ao gosto elegíaco dos meus ensaios elegíacos, teve outra sorte e dá-me uma certa esperança de vir, ainda que existencialista, a ser tragável no século XXI.
Manuel Laranjeira é o paradigma que eu mais invejo: quando os direitos caíram no domínio público (eufemismo que quer dizer, no domínio dos editores), os editores pareciam Abutres a reeditar-lhe prosas, cartas, diários e até as listas para a lavandaria lhe publicaram. Haja deus, que listas de lavandaria também eu tenho, das melhores e não é pra me gabar. E sou quase tão pessimista como o Laranjeira e tenho uns focinhos quase tão feios como os dele. E graças a deus escrevo quase tão mal como ele.
E essa miserável coitada da Irene Lisboa, minha irmã de infortúnio? Então não é que a Paula Morão acaba por receber o prémio que nunca deram à Irene com o livro que escreveu sobre os livros que apesar de tudo isso Irene ainda publicou com o único prémio da sua consciência?... Tomara eu: esta capa laranja com a 1ª edição das «Crónicas da Serra, esta reedição dos contarelos, este folheto da Seara sobre «educação» que me comove até às lágrimas. Irene Lisboa: se eu fosse o Soares de Passos ou um poeta lírico que sofresse dos intestinos, diria que vou, com flores, depositar as minhas lágrimas na tua campa.
Se eu viesse a ser condenado à morte, mais do que já estou , teria fortes probabilidades de imitar o Caryl Chessman e de ter cá fora, cartonados, quatro livros filmantes com as minhas desastradas confissões , quatro que bem podiam ser dezenas pois material de queixa e protesto não me falta . E eis a Europa América a publicar-me, com a lombada mal colada, «O Rapaz da Lanterna Amarela», a «Cela 545», a «Camorra de Vida», «Os «Quatrocentos Passos para a Guilhotina».
Não conseguiu o Faustino Cavaco, assassino dos nossos jornais, ver-se publicado pelo Rogério Rodrigues? E escreve bem o Faustino. Quase tão bem como eu. Mas que diabo! Nossa senhora! - não poderei eu ter algumas páginas também como as dele, sentidas, a contar como gostava de ficar no regaço morno da Mãe?
Mas quem diz Faustino Cavaco, de quem eu tenho uma inveja louca, diz Thomas Bernhard, mesmo ao meu gosto. Farto de diálogos, por causa do teatro que o obrigaram a escrever, vingou-se e nem um único discurso directo para a amostra em «Betão» e «O Náufrago». Se tudo aquilo tresanda a autobiográfico, porque não havia também a minha interminável autobiografia, devidamente transliterada, passar por boa iludindo os polícias da alfândega literária (críticos e críticos ou vice-versa).
E esse escandaloso caso de popularidade e mundanismo que foi o meu co-irmão Albino Forjaz de Sampaio, cronista que de cronista nunca passou? Mas ele e Brito Camacho e Fialho e Ortigão de cronistas não passaram: vieram, pelos vistos, em época mais propícia: a ditadura do romance era ainda uma democracia musculada e ainda não vigorava como vigoram hoje em dia, tentando competir com as fábricas de romanesco que são as telenovelas, o filme, o serial e o vídeo.
E Salazar? Não se viu ele publicado quase na íntegra em vida? E não lhe foram exumar as cartas íntimas que escreveu à governanta? E não descobriu um historiador Rosas que ele posava no diário para a posteridade como se já adivinhasse que iria ficar célebre e figurar na galeria histórica dos Grandes Figurões? Piscadelas de olho à posteridade, lá isso não falta nos meus manuscritos escritos à máquina, nas minhas dactilografias escritas à mão.
E o malcriado Férdinand Céline, não consegue ele com essa pura autobiografia que é «Morte a Crédito» fingir que escreve romance? Porque não hei-de eu, fingir também? E ver-me publicado em livro que é o meu sonho de impoluto republicano e democrata? Mas reconheça-se que bem me tenho esforçado e em má criação, em linguagem de carroceiro e de caserna, de certeza que sou bem melhor do que o MEC, e posso ombrear se é que não sou mil vezes melhor, que os carroceiros todas da nossa praça literária? E essas crianças antologiadas pela minha querida Maria Rosa Colaço em «Nós, Irmãos»? Não sou eu tal qual elas?
Não roo eu a ponta da caneta e mudo o aparo já com ele rombo? Que terá uma redacção da terceira classe a mais que eu não tenha? Quantas redacções da terceira classe não escrevi eu? Mas quantas centenas não me deixaram escrever?
Falando de manifestos polémicos - meu forte de fraco - irrita-me ver o Theodore Roszak, que só escreve manifestos, a passar por ensaísta, incensado pelos «hippies» e eu, que incensei os hippies, fiquei reduzido ao estúpido anonimato. Mais: cheguei a escrever cartas sobre cartas à nova geração a que chamei cartas para o apocalipse. Pronto, foi quanto bastou, com um título desses, para ir parar ao tacho do mais ignominioso silêncio. E os 5 volumes da «Conta-Corrente» do Dr. Virgílio Ferreira? Onde é que ele é melhor anticomunista do que eu? O meu diário tem dez vezes mais denúncias do Cancro Totalitário, com os nomes todos escarrapachados. Porque conquistou ele a Glória e eu gemo nas masmorras de todas as listas negras? Que raio de azar o meu.
Deste Raul que se chama Brandão há que dizer rapidamente o complexo de amor-ódio que me liga a ele. Memoriou como eu memoriaria, quando recolheu à reforma e não tenho dúvidas que o terei por amparo de cabeceira. Mas chateia-me o estilo barroco (eu que sou barroco) com que falou dos pescadores como um pintor e aí acho que não faz o meu estilo, que fui sempre, como pintor, uma nódoa negra. Acho que a falar de gente boa podia fazer melhor figura do que ele. Sem ofensa. O Gebo, esse Gebo que o assombrou, é que me fica inveja de não fazer igual ou parecido. Até porque tem no meu pai o modelo real desse personagem. Era esse gebo, meu Raul e meu Brandão, a exacta figura do meu velho, eterno calado, eterno sofredor no seu degredo humano que nunca entendeu, eterno preterido das bodas de Canã, eterno ser pedindo eternamente desculpa de existir. Foi essa imagem submissa do meu pai que sempre me revoltou e que Brandão deixou no Gebo, honesto até ao fim, ingénuo até ao fim e quando honesto, em todo o Universo, já era só ele. Esta teimosia na Ombridade em homem anticlerical, republicano, com um ódiozinho muito saudável aos padrecas (ele que tinha a figura do Padre Cruz em cima da secretária). O democrata sem alardes que era meu pai, é o gebo do Raul Brandão. E só por isso. Mas pelas memórias também, e pelo diário - eu acho que gostaria de ver o meu livro ilustrado com esta capa de «Os Pobres», Livrarias Aillaud e Bertrand, de 1925.
Preparo o salto e meço forças com essa obra-prima da simplicidade, os textos de crianças até aos 10 anos escolhidos por Maria Rosa Colaço. À parte as dezenas de versos barrocos que tive a infelicidade de escrever - se não morria de indigestão - não seria eu capaz de restaurar o sublime da simplicidade em 10 ou 20 apontamentos poéticos da minha vida sem poesia? Porque hei-de desesperar? Recriar os dez anos de idade é tarefa ciclópica mas até aos noventa tenho esperança de o conseguir.
«De profundis», escrito por Oscar Wilde com excrementos feitos na prisão e algum sangue, mas no essencial com muitas lágrimas, sobrevive porque Wilde escreveu peças de teatro, contos e um romance? Ou sobreviveria se tivesse sido a obra única - prima - que é? Se o Lorde não o tivesse queimado, escreveria ele o que escreveu e como escreveu? Não é bem o meu caso, até porque aqui não há lordes, mas os sapos vivos que me fizeram comer, laranjas e alfacinhas, no Poço e no Cabo, não serão afinal matéria de testemunho tão interessante que me dê o direito ao meu «De profundis»? revisto e aumentado para as escolas? Excrementos, sangue e (algumas) lágrimas, não faltam nas minhas prosas e se duvidam posso apresentar análise clínica. Lá isso pode a D. Ramira estar certa. Há escritores que me seduziram, mas aos quais eu sei que nunca chegaria, nem sequer aos calcanhares. Falo dos romancistas congénitos que admiro mas que, simultaneamente, e exactamente por isso, invejo de uma inveja incurável. Como eles tinham paciência para escrever romances de 500 páginas! Chiça. E cito logo o D.H. Lawrence, onde soa e ressoa o génio infindável herdado dos deuses. Depois o Nikos Kazantzaki, o Carlo Coccioli: mas no Carlo Coccioli, uma obra não hesitaria em imitar e duvido que mal, não falo do «Fabrízio» mas de o «Journal».
O Panait Istrati, o Lawrence Durrell, o Dostoiewsky, o Tolstoi, o Guimarães Rosa. Graças a deus, deixei muitos escritores de romance longo na prateleira, pois a inflação romanesca da ficção e a inflação da ficção na literatura é o fenómeno entrópico que não cessa de me asfixiar.
Acho também que saberia ter sido o Strindberg de Paço de Arcos, se não fosse já haver aqui vários e se não fosse o talento trágico do animal para as peças (de teatro) geniais. Ah! Que inveja! Como é que um vulgar como eu - ou ainda melhor - consegue estruturar peças tão sublimes? E o Ibsen? E o Herman Hess ? que à primeira vista é fácil de imitar mas que depois desnorteia com essa filigrana de paciência evangélica que é o místico «Colar das Contas de Vidro»? Inatingível, sempre, foi e será Dostoiewsky, arquitecto de uma humanidade disforme em estado real de alucinação como a que eu sinto mexer-me na barriga. Mas a sua «Voz Subterrânea» - além do seu «O Grande Inquisidor» - (desculpa lá, Fiodor) fui eu que os escrevi quando ele estava distraído e que depois plagiei de mim próprio, em 2ª via, através de Chestov, nesse livro que me saiu do peito ou da barriga (desculpa, leão) que é «Revelações da Morte», indecentemente babujado na edição da Moraes pelo Jorge de Sena. Eu renego tudo o que for preciso. Mas das «Revelações da Morte» não abro mão: Chestov copiou-me indecentemente. Se ele conseguiu chegar à Europa escrevendo em uma língua bárbara como é a eslava, porque não hei-de eu chegar à Europa escrevendo na língua bárbara mas tão folclórica que é o português acordado no Acordo com o homem dos computadores brasileiro.
A propósito de plágios: passava eu as minhas noites e os meus dias com o Ramon Lull, quando a Luísa Costa Gomes, sorrateira, senhora de uma bolsa marsupial do falecido Instituto do Livro, o foi visitar em Maiorca. Nunca mais tive sossego. Uma das minhas únicas chances de vir a ser conhecido - como descobridor do Ramón - perdia-a no momento em que a Luísa se me antecipou. De qualquer modo, já o disse neste testamento mas volto a dizer: «O Livro do Amigo e do Amado» fui eu que o escrevi a mando da mulher e é muito meu e não há luísas, nem costas, nem gomes que mo roubem.
E muito menos um Abel Barros Queirós Baptista que acorda sempre mal disposto e escreve no «Público».Eu não escrevo no «Público» mas também não acordo mal disposto. Publicista na gíria do Prof Coelho seria o Roger Garaudy. A verdade é que filosofar assim à vista de toda a gente, sem ter que ir fazer exame ao Prof Coelho, também eu fazia. E não me parece que defendeu pior o Teilhard de Chardin do que eu o defenderia.
«Diário de um Ladrão», eu? Não sei porquê, embora imaginar-me nessa pele me seja um pouco difícil, mas o que custa é que deus agradece e talvez, quem sabe, arranjasse editor. Fiz por isso o Diário de um proscrito, bastante mal escrito graças a Deus, o que não é menos obsceno e meritório, no sentido em que Henry Miller, copiando-me, o desenvolveu. Aliás, se há sofrimentos cuja beleza não me importava de imitar, o de Jean Genet é um deles. Daria cabo do Sartre era se ele me tivesse chamado «comediante e mártir». Comediante seria a tia dele . Nem mártir nem comediante, teria respondido ele ao Sartre. E ficou-se por aí.
Se Willhem Reich conseguiu fazer esquecer a estopada das obras científicas e o Órgone com esse «Escuta Zé Ninguém», porque não hei-de eu, Zé Ninguém que não escuta ninguém, que escrevi vários zé ninguéns, que inflaccionei o mercado de zés ninguéns, e ainda por cima não escrevi maçadoras obras filosóficas ou científicas, ter um lugarzinho no podium estrelado da posteridade? No mínimo exijo que tratem da minha obra com o respeito que merece um Zé Ninguém. Por exemplo:«O Barredo», escrito pelo meu irmão de armas e de berço Padre Américo. E os restantes capítulos de «O Barredo», todos igualmente fanáticos de deus, se quiserem saber a diferença: só nunca consegui imitar desse gajo a frase curta que invejei sempre tanto como invejo a de Marguerita Duras. Só que o Américo fala de gente minha, de gente miúda, dos trocos, os pobres meus avatares, reincarnações futuras de budas passados, do meu espírito Santo, dos Meus Pobres. O que é uma chatice, convenho. Nem sei onde é. Ao lado do Américo, as fioretti de Francisco, aguardam o momento em que eu as possa roubar sem que o Prof Coelho dê por isso, para isso ele é fiscal de costumes.
Como te amei sempre! Só por medo e vergonha não pedi para entrar na tua Ordem mas quando o Padre Armindo Pereira me convidou para escrever sobre ti no livro in memorian sobre Francisco, foi um dos dias mais gloriosos da minha vida gloriosa. Desculpa, denunciei-te e denunciei o teu truque. Mas deixa lá: pouca gente ou ninguém leu esse livro editado pela Imprensa Nacional quando o Vasco da Graça Moura estava a dormir a sesta ou distraído a escrever a peregrinação do fernão mendes pinto . Ou a preparar-se para a expo98. E sendo assim, eu serei lembrado, pelo menos, por ter escrito sobre a tua alma de Luz, querido, amado Francisco, natural de Assis. Com o Walt, Whitman de apelido, a coisa muda um tanto de figura. Toda a vida a imitá-lo, em vão, e só consegui uma rude «paráfrase de Walt Whitman». Mas se tu vingaste o grande umbral e ainda és lido, com esse cadáver esquisito que são as fioretti, descendente dos surrealistas ortodoxos, porque não hei-de eu, aderente ao pânico do Arrabal e metido no país português, ter ao menos uma chance?
Quanto ao Gauguin temos falado: pedra angular da «antologia da ambiguidade» que nunca me convidaram para fazer, o texto «Noa Noa» deu-me cabo de mais esse projecto. É todo ele antológico e Ambíguo. Aníbal Fernandes traduziu. O Aníbal aliás é, no meu entender, a voz dos deuses e tenho por ele a ternura que se tem pelo contra regra que comanda todo o espectáculo sem nunca ninguém o ver, que se tem por mim próprio e a que se tem pelos eternos apagados atrás dos holofotes dos eternos iluminados.
Eu estive mais vezes em mais listas negras do que ele. Mas também é verdade que nunca traduzi com a genialidade com que ele traduziu. Gauguin seria ultrapassado em velocidade, não em beleza, pelo terremoto pós sida que é Tobias Schneebaum (Antígona editora), o nome mais esquisito de escrever.

A.C. ***

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MODERNIDADE 1990

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QUAL O PAPEL DO CALÃO ESCATOLÓGICO NA MODERNIDADE LITERÁRIA? - O UMBIGO DO MUNDO - A METÁFORA ORGÂNICA

Lisboa, 20/Julho/1990 - 5 horas manhã, sexta-feira - «Pantagruel» é o mais moderno dos romances e Rabelais, seu lendário autor, um escritor pioneiro da mais importante Intuição contemporânea.
Se tudo, nesta sociedade da Indigestão, passa pela comida, pelos intestinos e pelo cu, é tempo de se saber até onde vai a grande metáfora «pantagruélica» e de que maneira, entre pitoresca e trágica, científica e empírica, Rabelais nos legou o Arquetipo desta sociedade e desta civilização, onde domina e predomina, como Ética e como Estética, o sindroma da «grande farra».
Curiosamente mas talvez não paradoxalmente, a mesma sociedade que empanturra as vítimas do banquete, vai abrir clínicas de emagrecimento e investe todos os artifícios sintomatológicos e medidas «a posteriori», para desfazer banhas e barrigas. É o negócio do século -- e Pantagruel continua, portanto, a constituir o mito mais contemporâneo do futuro.
Na acepção taoísta dos contrários complementares, esta pletora é o outro lado da Fome que grassa no Terceiro Mundo, que grassa em Moçambique, o país mais pobre do Mundo - ou não tivessem por lá passado os portugueses, povo de rapinas rapaces, agora celebrando a gesta descobridora, colonizadora, destruidora de povos e culturas.
Enquanto a Publicidade, qual Pantagruel, continuar a constituir a principal refeição espiritual do Mundo contemporâneo, o Deus ex-máquina ao qual milhões de crentes se ajoelham, o Moloque que engole vidas, almas, vergonha, moral, justiça,as formas orgânicas do Espírito são as que Rabelais descreve no prólogo do seu «Pantagruel».
A partir daqui, tudo tem uma causa. E se a causa é Superalimento, os efeitos são, com certeza, indigestão. Há sinais de que a literatura - até a arte - tenha compreendido a intuição de Rabelais. O pintor Herman Boch eternizou os seus burgueses enterrados em merda à mesa dos grandes banquetes e «A Grande Farra» («La Grande Bouffe») ficou entre os filmes-padrão da cinematografia moderna.
Em «Terras do Poente», William Borroughs volta ao tema que já tratara, com a virulência repulsiva do vómito, em «Naked Lunch» («O Almoço Nu»).
E é quando a famigerada Poluição se trata em termos de excremento (por baixo ou por cima) que a pantagruélica mentira das ecologias de aviário assume a sua dimensão verdadeiramente orgiástica e apocalíptica.
Se a metáfora da contaminação orgânica prolifera hoje por videoclips e filmes de terror da série Z, é porque irrompe desse magma de repugnância física invencível que torna a poluição das chaminés um fenómeno até certo ponto menor, secundário e liofilizado.
Como se sabe, é na proliferação orgânica - de onde a informação «cibernética» desapareceu - é na metástase galopante, é na imunodeficiência generalizada que o mundo contemporâneo encontra os seus padrões de vida, os seus modelos, os seus estilos de vida. É nas suas «pestes medievais» que esta avançada civilização se define.
Tudo isto e muito mais se encontra contido nessa Bíblia do Estômago (centro ou umbigo do Mundo) que se chama «Pantagruel», do genial Rabelais. Procurem-na sob qualquer tradução, mas se tiverem a sorte de encontrar a que Jorge Reis fez para a Prelo Editora, com desenhos de Júlio Pomar, felicitem-se. É um triplo manjar do céu. E desforrem a barriguinha de misérias.
*
A «terapêutica do vómito» pode assinalar-se em duas outras obras cinematográficas, que são «Os 120 Dias de Sodoma» (P.P. Pasolini) e «O Último Tango em Paris» (B. Bertolucci).
São pontos de um percurso que assinala de trampa o nosso tempo, merda não reciclada mas vertida em torrente sobre os próprios que a produzem, sinais de uma intuição que continua implícita (mas involuntária e inconsciente) na maior parte do discurso literário que não tem coragem de se assumir como denúncia global, deste-tempo-e-mundo. Tempo de indigestão, que só resta Vomitar.
***

CPT 1978

1-3 - estela-1- polémicas ac com o meio ambiente

OS INTELECTUAIS E A ECOLOGIA (*)

(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 5/Agosto/1978

20/7/1978 - A perspectiva literária de encarar a Ecologia, de tão anacrónica tem os seus encantos e o artigo de Maria Estela Guedes, no "Diário Popular" de quinta-feira (20/7/78), se nada diz sobre o pretexto que lhe serve de base - a revista "A Urtiga” sobre a qual especula - diz muito e de maneira lapidar sobre a atitude típica de um niilismo moral e filosófico, de um decadentismo neo-romântico e boémio - irónico quantum satis - daquilo enfim que Baudelaire (já ele) terá chamado "os literatos do absinto".
Que o anacronismo não nos desvie a atenção do essencial:  A mito-psicologia latente é a mesma. E os intelectuais que não fizeram, pelo niilismo existencialista e surrealista, a sua ultrapassagem (reciclagem) encontram-se hoje, face à Ecologia, na mesma encruzilhada dos decadentistas .
Maria Estela Guedes revela no seu artigo do "Diário Popular", a posição típica de uma intelectualidade e de um esteticismo que, recusando responsabilidades históricas, se refugia em pré-conceitos de classe: é assim que a vemos incapaz de perceber n' “A Urtiga” e na alternativa ecológica algo mais do que protecção à Natureza, respeito zoófilo pelos passarinhos e toda a mitologia moral inerente ao padrão romântico e ultra-romântico da Natureza já em vigor no tempo de Almeida Garrett.
E pseudo-ironicamente "goza” com tudo isso, como se retardatário e anacrónico fosse o ecologista radical. Incapaz de perceber o que é Ecologia crítica (a falta de informação dos nossos escritores é proverbial mas eles fazem disso um medalhão), assume a atitude sobresuficiente a respeito de uma pseudo-Ecologia que inventa e que, por incapacidade, por anacronismo, é impotente para perceber nas suas implicações mais prementes e actuais. Goza com um por ela suposto anacronismo nosso (os ecologistas radicais...) quando o anacronismo é dela e , de maneira geral, dos estetas que se recusam a ir além da visão literária do Mundo.
O artigo de Estela Guedes tem a vantagem de explicitar o que centenas de literatos e artistas pensam hoje da Ecologia, sem no entanto terem a coragem de se confessarem.
O curioso do escritor é que se quer sempre à la page e na crista da vaga. Estela Guedes chega a recomendar um livro da Seuil sobre energia do sol... não fosse a malta d' “A Urtiga” , metida cá na província, ignorar o que a sempre luminosa cultura de Paris tem para nos dar.
É o fenómeno do provincianismo mental que Fernando Pessoa diagnosticou. Mesmo quando ultrapassado, não só pelos acontecimentos - facto que acontece a todos os que se julgam colocar à margem deles - mas por alguns outros compatriotas que , não estando na dependência colonial de Paris, viram em Portugal dez anos antes o que em Paris só se veria 10 anos depois - é curioso observar as piruetas a que o lítera recorre para mostrar que afinal também tinha apanhado o comboio da Ecologia. Só que o apanharam no apeadeiro errado: o do proteccionismo, conservacionismo ou museologia de Natureza.
Neste campo, aliás, têm aqui na Arrábida um precursor que também não é bonito tentar ultrapassar ou omitir: Sebastião da Gama, fundador da Liga para a Protecção da Natureza, deve ser respeitado pelos confrades, embora não esteja filiado na Associação da Rua do Loreto e não seja, portanto, oficialmente escritor português. Receio que Herculano e Fialho também não. Seria feio esquecer o poder visionário e poético (profético...) do vate Sebastião de Gama.
Mas a protecção da Arrábida é hoje a política de Ambiente conservacionista que, numa perspectiva eco-radical, serve apenas para permitir ao buldozer da destruição arrasar com mais à vontade e apetite o que lhe der na gana. Essa arqueologia de Natureza pouco ou nada tem a ver com a Ecologia d'”A Urtiga” e da corrente ecológica mundial de vanguarda.
Por mais pitosga que o escritor português se mostre a tal respeito, e por muito que ele queira agora mostrar que está super-informado, ao ponto de nos indicar bibliografia exaustiva, trata-se, num radicalismo ecológico, de estar atento não só à morte lenta e à extinção das espécies mas, acima de tudo, denunciar a morte deliberada e provocada do nosso vil quotidiano diário, chamada ora Ecocídio, ora exploração e manipulação de homem pelo homem.
Enquanto o tecnocrata-robot desvia as atenções para o lixo e a vassoura municipal chamada anti-poluição, eis que o escritor também se faz desentendido e conclui que a morte é sempre lenta e todos temos de morrer (Maria Estela dixit).
O que estes intelectuais não querem assumir nem perceber é que há um abismo entre a morte de que se morre e a morte "matada", como dizia o vosso confrade Cabral de Melo Neto. A isto chamamos nós, que não somos poetas líricos nem novelistas de talento, Eco-etnocídio, guerra civil ou luta de classes no Reino Vivo, luta ou guerra que distingue os movimentos românticos pró-Natureza - com sabor a niilismo e absinto - de uma consciência eco-revolucionária da Natureza.
O intelectual julga poder ficar sempre de fora e proclamar que não suja as mãos. "Au dessous de la melée” como queria Julien Benda e Raul Proença, já na época, fez questão de criticar apontando a pretensão.
Por onde a inteligência portuguesa ainda anda, António Sérgio!
Como é comovedor ver como a ilusão do suicídio - e de que o suicídio liberta - continua vigente, quatro décadas depois de Vachet e outros que tais.
Mitologias românticas e neo-românticas, antes das quais a D. Estela Guedas nos quer arrogantemente colocar, como se ela fosse na vanguarda e nós para aqui perdidos na selva das inconsciências.
Como dizia Cesariny, toda esta gente quer a imortalidade por dois tostões. Eu diria: talvez a Iluminação também. Em qualquer dos casos, a vanguarda ecológica já percebeu que a luta ecológica é apenas a consciência pré-iniciática e pré- (com)unitária da História, a fase avançada de uma consciência dialéctica que acompanha o movimento da realidade em vez de se deixar cavalgar por ele.
"Condenados a existir" - até Sartre o disse - nascemos para a morte quando nascemos e para a vida quando morremos.
Só que esta morte não tem nada a ver com a deliberada e provocada morte "matada” do tecno-horror.  
A morte, de facto, é a suprema ilusão e o maior equívoco que a  filosofia ocidental podia ter inventado para uso de intelectuais .

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(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 5/Agosto/1978

Tuesday, July 18, 2006

S.LEM 1972

lem-3> scan - quinta-feira, 20 de Junho de 2002

UM ESCRITOR SEM ESPERANÇA (*)

No número 17 da revista Le Nouveau Planète (Julho de 1970), Jacques Bergier publica um estudo sobre a obra de Stanislas Lem, autor polaco de ficção científica, jornalista de profissão e cujo pessimismo radical o distingue de quase todos os autores do género.
Jacques Bergier, que diz discordar das teses materialistas de Stanislas Lem não deixa de lhe reconhecer um formidável talento de escritor e uma rara bagagem de cientista. Totalmente desconhecido em Portugal, Stanislas Lem tem várias obras traduzidas para o francês
Retour das étoiles
L'Invasion venue d'Aldébaran ;
Edem;
L'Invincible ;
La Formule du professeur Limvatar.
Ed. Denoel : Journal das étoiles ; Le Livre des robots ; La Cybériade ; Solaris
Ed. Gallimard : Feu Vénus.
Resumindo as teses de Lem, podemos dizer que elas convergem sempre em um ponto: o universo é inexplicável e o homem vive mergulhado numa absoluta solidão cósmica, da qual não há saída nem esperança. Da qual não há futuro possível.
Ao contrário do postulado optimista que o racionalismo do século XIX divulgou até aos nossos dias, e segundo o qual o universo é cognoscível -só questão de dados adquiridos, pois mais cedo ou mais tarde o homem decifrará todos os enigmas que o cercam - Lem coloca as suas personagens perante barreiras intransponíveis. Principalmente barreiras de comunicação.
«O cérebro contém um calculador analógico podendo construir nos seus circuitos um modelo do universo que se deixa em seguida interpretar e que faz com que o universo possa sempre ser compreendido».
Este postulado, segundo Jacques Bergier, nem sempre é formulado tão nitidamente mas está sempre presente no espírito do cientista e constitui a sua razão de viver. Pensa-se que, se com a ajuda de máquinas extremamente caras, fornecermos ao cérebro humano dados suficientes sobre as partículas últimas da matéria, o cérebro humano poderá então compreender a matéria e, a partir desta matéria, tudo o resto.
Sempre, portanto, a mesma fé, a mesma convicção, a mesma crença: o cérebro é uma máquina que pode decifrar todo o universo, compreender tudo, sob a única condição de possuir dados. Precisará de computadores para compreender estes dados, relacioná-los e interpretá-los. mas a vitória final está assegurada.
Ora Stanislas Lem contesta radicalmente essa crença, esse postulado e essa vitória. É mesmo - segundo Jacques Bergier - o primeiro escritor de science-fiction a rejeitar o que toda a ciência oficial tem como indiscutível e inabalável. E não o faz em volumes filosóficos de restrita audiência mas através de romances apaixonantes cuja tiragem global atinge milhões de exemplares em um grande número de línguas.
Stanislas Lem como o professor Jacques Monod, prémio Nobel francês, como o professor Pierre Auger e como muitos outros espíritos, deve pensar que os limites da imaginação estão muito próximos e sofre com isso. Não retira nenhuma alegria do aspecto feérico e fantástico do Universo. Está bem longe da mentalidade do biologista inglês J.B.S. Haldane (materialista e marxista, também e todavia) que dizia: «Colecciono o que é realmente bizarro em química e física e nunca neglicencio nada».
O choque de pensamento entre posições opostas como as de Jacques Bergier (um teilhardiano convicto) e Stanislas Lem (um marxista pouco ortodoxo) é não só um curioso espectáculo de tolerância intelectual mas um fascinante exemplo a seguir para quem deseja avançar em novas direcções a caminho do desconhecido : seja ele, o futuro, possível ou impossível.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «Mar Alto», na rubrica Temas de Amanhã, em 19-7-1972
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Monday, July 17, 2006

FRITJOF CAPRA 1987

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O DESAFIO DE FRITJOF CAPRA - INVESTIGAR O FUTURO(*)

(*)Este texto de Afonso Cautela, indubitavelmente 5 estrelas, foi publicado no jornal «A Capital», «Crónica do Planeta Terra», em 18 de Julho de 1987

[18-7-1987, in «A Capital»] - Investigadores, bibliotecários e arquivistas do passado, queixam-se do abandono a que foi votado o património documental do País.
As maiores autoridades no domínio da arquivística pronunciaram-se no colóquio realizado durante a 57.ª Feira do Livro de Lisboa, a respeito da indiferença geral que reina sobre os nossos maiores tesouros documentais, fontes históricas insubstituíveis, sem as quais o País perde a sua memória colectiva e, portanto, a identidade.
Sem as quais o País se desintegra. Após muitos anos em que Estado e governos ignoraram olimpicamente uma parte importante da nossa própria existência como povo e como País (a outra é o território físico, não menos deitado aos bichos) parece agora esboçar-se, com a reorganização da Torre do Tombo, a cuja comissão preside o prof. José Mattoso, uma viragem nesta situação de catástrofe. É possível que ainda vamos a tempo de salvar do dilúvio universal alguns arquivos e documentos importantes.
Encaminhada a recuperação da nossa memória colectiva, com a ajuda da informática, ocorreu-me que não seria talvez gratuito aparecer alguém, entre investigadores, bibliotecários, e arquivistas do futuro, a reivindicar também uma acção urgente com o objectivo de não perdermos o nosso sentido de orientação como povo: A Imaginação Criadora, na qual se deve considerar incluída, por definição, a Investigação Cientifica.
Talvez o material de trabalho destes investigadores não se encontre, como o dos outros (os do passado), encaixotado algures num barracão, nem sejam tão nítidas as fronteiras do que importa preservar e salvaguardar para que, diante do apocalipse, a linha de rumo não se perca.
Talvez as balizas que delimitam os arquivos do futuro não sejam tão nítidas (e com certeza não são) como aquelas que definem os arquivos do passado.
Mas isso não retira importância à Historiografia Prospectiva ou Ciência do Futuro, e ao material arquivístico que é necessário coordenar para sistematizar esse novo campo da Ciência.
É que, de repente, tudo o que as ficções mais ou menos científicas tinham colocado num limbo de relativa (in)verosimilhança ou (im)probabilidade, torna-se um facto brutalmente instalado na nossa vida real quotidiana.
Com a crise ecológica e a ameaça de holocausto nuclear, o inverosímil torna-se verosímil e o improvável torna-se provável.
A verdade quase comezinha, quase lapaliciana, é de repente posta sem que muitos tenham tido tempo ainda de a assimilar: pode não haver futuro, o tempo e a história deixaram de poder ser considerados uma realidade inesgotável em expansão infinita.
Ora, se não houver futuro, de nada serve preservar o passado, de nada serve a memória conservada, no Tombo ou algures. Destruído o futuro, eis que o passado é também automaticamente destruído, diria o senhor de Lapalisse.
Não sei, porém, se esta realidade comezinha e lapaliciana já terá tocado verdadeiramente os chamados cérebros responsáveis do nosso tempo, que vemos continuarem agindo como se tivessem a eternidade à sua frente e o apocalipse não estivesse já inscrito, na história dos acontecimentos, como hipótese a considerar. A Hipótese.
Mas para que o fim da história não se torne uma noção paralisante das pessoas e dos povos, tão paralisante como o excesso de passadismo, teremos de cultivar, em primeira prioridade, não só a memória do que foi mas a imaginação do que pode ser.
Sem imaginação eco-alternativa, que nos permita ultrapassar, como espécie humana, o impasse da tecnocracia moderna (que só pode conduzir à autodestruição do Planeta, como a Termodinâmica demonstra de maneira física irrefutável), arriscamo-nos a perder o precioso passado que tantos investigadores, arquivistas e bibliotecários justamente tanto acarinham.
Mesmo que essa tecnocracia se afadigue, por óbvio mercenarismo, a informatizar "up to date", a microfilmar e a reduzir a ficha automática milhões de documentos até agora inacessíveis, talvez convenha não confundir essa feérica e febril actividade com o nosso futuro e sobrevivência.
Por mais que se informatize o passado, terá que se desinformatizar bastante o futuro para que este simplesmente venha a ser possível. Sem a desintoxicação de tecnologia informática e de computadores, o planeta sucumbirá e com ele a humanidade.
Os «arquivistas do futuro», como lhes chamei, descobriram e sentem que a humanidade, finalmente, vive a prazo e que o futuro já não é inesgotável (tal como se descobriu que as grandes massas oceânicas ou a estratosfera ou atmosfera não eram inesgotáveis).
Tal como um doente incurável, a Humanidade terá de reorganizar o seu espaço em função do tempo que ainda lhe resta.
Arquivistas do futuro são aqueles investigadores que procuram descobrir onde foi o ponto de rotura, onde é que esta «civilização» entre aspas, que traz o rei na barriga e a destruição na alma, errou.
Não há ainda uma editora especializada nesta área temática, a que, à falta de melhor, chamaremos de «novo underground»: mas multiplicam-se os testemunhos e as obras-chave que apontam para a nova consciência planetária de auto-conservação da espécie, campo aberto que poderíamos designar por Ciências Holísticas, quer dizer, as ciências que, embora aprofundando recintos particulares, o fazem sempre em referência ao todo, ao global (do globo terrestre) e ao universal (do universo imenso das galáxias).
Tal como o professor José Mattoso dizia dos arquivos do passado, «é cada vez mais nítida e generalizada a consciência de que os nossos problemas começam estruturalmente muito antes», também o arquivista do futuro poderá declarar: «É cada vez mais nítida e generalizada a consciência de que os nossos problemas começam estruturalmente muito depois de nós."
Sem dúvida que para explicar o presente podemos pedir explicação ao passado. Mas para agir no presente, teremos que pedir explicações ao futuro.
Na medida em que o presente tende a afunilar-se num beco sem saída, não podemos estar entregues exclusivamente a interrogar o passado: antes de explicarmos o que somos, pode ser que deixemos de ser, pura e simplesmente.
Evitá-lo é o objectivo fundamental do pensamento eco-alternativo, apoiado em todas as ciências da área holística ou ciências holísticas, movimento e pensamento estes provocados pelo imperativo categórico da crise ecológica
Se chegámos a ela e à eventualidade de um holocausto, que pode até não ser nuclear, que poderá mesmo ser climático, holocausto que acabaria não só com o presente mas com todos os vestígios do passado, a primeira prioridade de uma cultura não suicida, de um povo não suicida, de uma edição não suicida, é saber o que nos levou a esta crise e como ultrapassar dialecticamente o património ideológico que, através dos séculos, filosofias e sistemas, lá (cá) nos conduziu.
Entre os arquivistas do futuro que sistematizaram as causas passadas destes efeitos críticos, está Fritjof Capra, que podemos hoje apontar como o teorizador e diagnosticador da Doença estrutural chamada Civilização Tecno-Industrial.
É em edição brasileira que o vamos encontrar, nas suas duas obras de fundo: «O Tao da Física» e «O Tempo da Transformação».
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(*) Este texto de Afonso Cautela, indubitavelmente 5 estrelas, foi publicado no jornal «A Capital», «Crónica do Planeta Terra», em 18 de Julho de 1987
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HETERODOXIA 1959

1-7 -segunda-feira, 14 de Outubro de 2002-prontíssimo para edição on line sem medo - na fase literária – escritos da juventude – não esquecendo associar ao meu ensaio sobre o livro sobre fernando pessoa - dcm59>19.937 caracteres - patologª> Revisão: Domingo, 23 de Agosto de 1998

sábado, 17 de Junho de 2006-> inédito ou não, o que eu já sabia (e já esqueci) nos meus verdes 26 anos!

1959

ARTE E PATOLOGIA

[ensaio apócrifo de Eduardo Lourenço, no tempo - 1959 - em que ele, heterodoxamente falando, ainda escrevia coisas que se percebiam...]
# Sobre alguns cadáveres (esquisitos) locais
# A minha experiência surrealista
# Inéditos eternos censurados pelo estalinismo
# Memórias do Gulag literário
# Manifesto literário pela PERSPECTIVA DE ESCALA (essência da Modernidade)
# [Intuições de 1959 - há 33 anos! - premonitórias do ADN-Guillé: não hei-de eu sentir-me inchado e orgulhoso!!!]


+ 4 PONTOS

Porto, 18/7/1959 - O facto de se discutirem as relações entre «arte e patologia» prova de que algum motivo existe para considerar o problema, a importância do problema. O presente artigo, não querendo assumir uma posição polémica sobre o opúsculo do Dr. Viriato de Gouveia - «Arte e Patologia», separata dos «Anais do Clube Militar Naval» - é apenas uma análise tanto quanto possível crítica pressupondo a simpática aceitação preliminar do trabalho analisado. Entre os libelos contra a «arte moderna» (o que se vai generalizando sob o designativo de «arte moderna») o Dr. Viriato de Gouveia apresenta uma tese que reputamos digna de atenção e controvérsia.
«Se a bizarria de atitudes que cada um de nós livremente pode assumir, conferisse valor proporcional ao indivíduo, a maioria da humanidade seria constituída por pessoas de talento» - escreve Viriato de Gouveia. Mas - digo eu - o inverso também é verdadeiro: se o atributo de «besta sadia que procria» (no verso feliz de Fernando Pessoa) conferisse a alguém a qualidade de artista, a maioria da humanidade seria composta de artistas. Advém disto uma conclusão: a doença, só por si, não é parâmetro que explique o talento criador; mas a saúde também não. Quer isto dizer que o critério patológico não se mostra suficiente para legitimar ou ilegitimar uma obra de arte. Aquilo que, superficialmente, se possa tomar como relação de causa e efeito (a doença ou saúde como causa de obra de génio) não passa de coincidência ou concomitância,
Não seria já a primeira vez que, no domínio da verificação experimental, se toma a nuvem por Juno, se considera como efeito de uma causa o que não passa de coincidência entre o que se supõe causa e o que se supõe efeito.
Ninguém contesta que a obra de arte anda de facto ligada a uma assimetria psíquica, a uma anormalidade psicosomática, que, sem fazer do artista, por definição, um psicopata ou um neurótico, o coloca fora da linha normal de comportamento, se é que alguma vez está definido o que é e o que não é normal. Se a nossa noção de «saudável» coincidir com a noção de «normal» e médio», e se a noção de «doente» coincidir com a de «bizarro» e «excêntrico (como em regra acontece entre pessoas de formação universitária - cartesiana, kantista ou positivista ) consideramos sintomas mórbidos os sintomas de anormalidade e até de excepcionalidade características do artista, naturalmente desfasado em relação ao homem-padrão, homem comum, médio, normal ou saudável. Todavia, a doença, ainda quando abusivamente se considera sinónima de anormalidade, não pode considerar-se causa: unicamente um factor concomitante.
Eis a conclusão que interessa, por agora, reter:
Ainda os que mais duramente combatem o «subjectivismo», não deixam de reconhecer a individualidade (aquilo que normalmente se entende por individualidade criadora) como um dos factores inerentes ao artista. Se o «estilo é o homem», com muito mais forte razão se dirá que o «estilo é o poeta». Ora esse «estilo», essa «individualidade», essa personalidade, como se obtém? Como se distingue um poeta dos restantes mortais? E um poeta de outro poeta? Sendo a «individualidade criadora» a suprema razão de um poeta, como iremos negar-lhe o direito á individualidade? Nenhum indivíduo, ainda o mais desclassificado, se dispensa, na ordem moral, de ter carácter e, na ordem profissional, personalidade. Como poderá o poeta, onde ética e estética se confundem, dispensar esse carácter que é também personalidade? Fisicamente, não há dois indivíduos iguais, e para isso é que o bilhete de identidade regista as impressões digitais. Como poderemos aceitar que os haja iguais psicologicamente? E como poderemos aceitar que os haja entre aqueles indivíduos que, por natureza, por condição, por fatalidade, fundamentam a sua existência no «culto da individualidade criadora» - os criadores, os poetas, precisamente?
Eis, pois, outra conclusão que o Dr. Viriato de Gouveia certamente me não impedirá de tirar: o poeta é, essencialmente, a sua individualidade criadora. Aquilo que noutras vocações poderá representar uma deficiência mais ou menos grave - a individualidade - é, na vocação artística, o princípio, o meio e o fim, é tudo.
Dir-se-á: mas a individualidade manifesta-se na «forma». O poeta diferencia-se de outro pela forma como subjectiva uma realidade objectiva. Quantos pintores não têm pintado girassóis e quantas formas não têm sido dadas à mesma realidade girassol? A matéria objectiva «girassol», tratada pela individualidade, pela subjectividade criadora de Van Gogh tomou aquela forma única. Mas por aqui entramos num dos intermináveis debates da estética moderna, a chamada «questão do fundo e da forma», sobre que nada se pode concluir. Tentemos, por isso, ver o problema do ângulo em que o Dr. Viriato de Gouveia o coloca - o da «arte e patologia» - e talvez nos seja possível adregar algum contributo.
Segundo o Dr. Viriato de Gouveia, «nem Baudelaire, nem Verlaine, nem Gérard de Nérval, construíram durante o período do seu internamento qualquer obra-prima.» Embora a afirmação necessite de ser comprovada e embora pudesse ter acontecido que nenhum deles criasse uma obra-prima durante o internamento porque nem todos os dias se criam obras-primas - e aceitando no entanto a afirmação, aceitemos que sim, que esses poetas nada produziram nos períodos de internamento em manicómios. Mas o que o Dr. Viriato de Gouveia não deixa de verificar é que eles estiveram internados. E que dezenas de outros exemplos - o de Van Gogh, o de António Nobre, o de Edgar Poe, o de Verlaine, o de Proust (e tantos que não cita mas poderia citar) nos poderiam informar afinal de que existe entre a doença física ou mental e a criação, um estranho, extraordinário paralelismo, diríamos mesmo sincronia, diríamos até condicionalismo, embora não digamos causalismo.
Aceito a opinião, discutível, de que no próprio período da doença, os poetas nada produzissem, mas não há dúvida de que um poeta, fora dos instantes de criação, é quase sempre um doente.
De positivo e indiscutível, o que deveremos concluir desta coincidência? É que a doença, entre outras causas do sofrimento físico ou espiritual, marca as individualidades ou vocações já predispostas, com experiências que, pelo menos, as vão sensibilizar e tornar, digamos, mais vibráteis, mais impressionáveis, mais particularmente assinaláveis pela «realidade objectiva». É claro que a doença não dota ninguém de habilidade artística e não se descobre a pólvora ao afirmá-lo: tão peregrino nos parece que haja alguém a defender uma tal ideia, como a combatê-la. Mas (não há dúvida) desperta, aviva, afina e provoca capacidades, tendências, instintos, faculdades inatas mas adormecidas, estados sensíveis. E muitos, visíveis, verificáveis, são os motivos pelos quais isso acontece. Vejamos quais.
A violenta introspecção que um estado mórbido provoca, o mundo particular (o «seu» mundo) que o doente, por uma instintiva defesa, forma contra o mundo dos outros e o mundo das realidades naturais, a insociabilização imposta ao doente, particularmente por doenças contagiosas que o obriguem a afastar-se do convívio habitual e, finalmente, a obsessiva deformação do mundo objectivo, absolutamente compreensível em quem sente, com mais agudeza, os traumas da dor física («objectiva») sobre uma subjectividade indefesa mas reactiva.
Concluindo: a doença não cria poetas, mas não custa aceitar que os descubra ou provoque. Como corolário da conclusão e como contributo «à questão da forma e do conteúdo», parece-me claro que a individualidade não é mera questão formalista (em sentido descarnado e abstracto da palavra «formal») visto que a forma especial por que o poeta vê e subjectiva a realidade, já é o somatório de experiências tão objectivas, tão profundamente enraizadas no comportamento individual, tão estreitamente relacionadas com o temperamento e o sangue, os músculos e os nervos, como são todas as experiências do sofrimento, em especial o advindo da doença. Sim, o sofrimento não cria poetas. E não somos a defender que o poeta sofra. Creio mesmo que a sociedade deveria preparar ao poeta a estabilidade social indispensável para o acto de criação: mas antes e depois do instante em que o poeta cria, todas as experiências, ainda as mais atrozes, deviam ser-lhe permitidas. Não acredito que um poeta possa escrever com fome, na maior abjecção moral e material, deprimido e oprimido, ferido, maltratado e miserável; a fome real, experimentada, vivida, deu-nos obras como a de Knut Hamsun e a do nosso Leão Penedo no romance «A Raiz e o Vento». Mas tanto Hamsun como Penedo, não os poderiam escrever certamente com fome.
II
Particularmente no que se refere à chamada «arte moderna», o problema das relações entre «arte e patologia» só adquire maior acuidade porque o problema correlato da «individualidade» também redobrou de virulência. Não creio que na «arte moderna» - «os absurdos frutos de um pensamento enfermo ou transviado» que são, na opinião do Dr. Viriato de Gouveia, o fauvismo, o dadaísmo, o cubismo, o futurismo e o surrealismo - haja, mais do que na arte clássica, um culto monomaníaco pelas manifestações patológicas. O que houve, sim, foi o deslumbramento da descoberta; o mundo subconsciente e inconsciente, os pélagos do irracional, as regiões inlocalizáveis e inverificáveis do subterrâneo humano. A psicanálise que, de terapêutica clínica, quase se transformou em método lógico, psicológico e epistemológico, declarou, no entanto, à moralidade vigente nas tribos ocidentais, aos hábitos familiares e íntimos, aos tabus religiosos e sexuais, às convenções, aos conceitos e preconceitos burgueses, aristocráticos, hierárquicos, tradicionais, uma guerra santa. Hoje, nenhum cientista, nenhuma mentalidade adulta nega a importância de Freud e da sua revolução, até mesmo dentro dos limites acanhados da ortodoxia de Viena, sem irmos às escolas dissidentes. Ora pela «psicanálise tudo se explica». Até ela, só a zona racional da consciência existia, só ao homem social e diurno era dado o direito de cidade. Depois de Freud, até um escolar sabe que o motor principal da vida consciente, da vida biológica e anímica, é a vida subconsciente. Não digo que a razão sossobrasse, porque foi a razão que, desta vez, deu a mão à palmatória, indo além de si própria, reconhecendo contra Descartes, para lá do mundo das ideias claras, o oceano incomensurável da não-claridade não cartesiana. Um espírito imparcial, só pode reconhecer nisto, mesmo em termos de progresso ocidental-racional-cristão, um avanço, um bem. Restituía-se ao homem uma dimensão obliterada, ignorada, esquecida, perdida. Regredindo-se na aparência ao tempo das teogonias, das idades mitológicas e pré-lógicas da humanidade, provava-se que as mitogonias representaram no processo da evolução humana, não um elo subalterno mas interno e eterno, estrutural e dinâmico. A razão construíra o Parténon e o Ciclotrão gigante. Mas fora da razão o homem criara os bizontes de Altamira ou descobrira o «universo infantil». Em pleno século da exploração interplanetária, dos voos astrais e siderais, a criança, ao pé de nós, estava por descobrir e foi descoberta. (Montessori?)
Foram todos estes abismos e encontros, no tempo e no espaço, todas estas súbitas associações, afinidades, origens, que deram à modernidade o aspecto de deslumbramento, de «fascinação» (Ernesto Sampaio fala de «Cultura fascinante»). O mundo da criança, o mundo dos primitivos, o mundo dos infinitamente grandes, o mundo dos infinitamente pequenos, o mundo da consciência, o mundo da subconsciência, o mundo planetário, o mundo interplanetário, o mundo da razão, o mundo do instinto, o mundo social, o mundo individual - todos aparecem com o mesmo direito de ter voz e de se exprimirem, todos eles formam o que se pode chamar o «sistema planetário do homem moderno». O homem viu-se, simultaneamente, no centro de contradições simultaneamente vitais e mortais, viu-se um absurdo vivo, matou Cristo e Anti-Cristo, matou deuses e Deus, viu-se com as inesperadas proporções e dimensões do Símio e do demiurgo: de um lado a biogenética assegura-lhe a sua origem de antropopiteco; do outro, Einstein recompõe, reconstitui o universo à maneira de Jeová. O homem moderno viu que todas as possibilidades se cruzavam no seu coração, na sua inteligência, na sua vontade. Contemporâneo dos aviões a jacto e da cirurgia plástica, das centrais atómicas «para a paz» e dos horrores de Hiroxima, contemporâneo de Hitler e de Gandhi, de Estaline, Mussolin e de Montessori, da revolução proletária e de Rockfeller, o homem compreendeu o que significava ser moderno. O culto do absurdo que pode existir na modernidade, não é um grito de abjecção, não é um libelo contra o homem. É talvez, no tempo das últimas abjecções, no tempo de Anne Franck e de Bergen-Belsen, de Estaline, de Budapeste, das tiranias e dos Reflexos Condicionados - um grito sadio de liberdade. Antes de perguntarmos se compreendemos um quadro ou um poema «modernista», devemos perguntar se compreendemos a história moderna. E talvez no seu crucial, inenarrável absurdo, encontremos «explicação» para o absurdo da «arte moderna».
Patológica? Resultado de uma demência particular do poeta ou da demência colectiva da História contemporânea? Devemos nós culpar o artista, espelho límpido, testemunha fiel, repórter íntegro da demência e dos seus fautores? Pode culpar-se de tudo o «artista moderno»; menos de que construiu este mundo e esta abjecção. O poeta não forma nem reforma o mundo: acusa-o. Não o explica - replica contra ele. Não o defende - defende-se dele e protesta. Não constrói a história, cria a anti-história.
Será mórbida a forma de o poeta hoje se expressar? Mas retiraremos nós aos mórbidos o direito de se expressaram? Será patológico? Mas retiraremos nós aos doentes o direito à existência? E aos incuráveis, cuspimo-los da sociedade? Porque se considera então o poeta, «doente incurável», com menos direito à existência e ao asilo nesta sociedade asilar onde ele deve sentir-se, necessariamente, um asilado e um exilado? Exigir um arte sadia, proporcional, serena, de duas uma:
1º - ou é exigir que o poeta actue como um mentiroso (numa sociedade que não é sadia, nem proporcional, nem serena)
2º - ou exigir ao poeta que se evada da sociedade, que a não represente e - mais - que, como um deus, crie e exprima ele o que não pode exigir-se a nenhum mortal: que seja permanentemente sádio, proporcional e sereno.
Pergunto: à conta de «combater a arte moderna», não estaremos colaborando, como o avestruz, na pior forma de hipocrisia que é predicarmos a instauração de uma moralidade de deuses (só praticável por deuses) que nós, predicadores, homens iguais aos outros, começamos e acabamos por não cumprir?
Que um poeta é, na verdade, um ser anti-social, não o contesto. Anti-social enquanto poeta, evidentemente, sem necessitar, nas ruas de toda a gente, de andar aos tiros contra toda a gente. A sua missão - creio - é a de manter e perpetuar a liberdade humana individual. Há no poeta uma dualidade inconciliável: o homem social e sociável que é, que quer e tem de ser e o homem a-social ou insociável que a responsabilidade de homem livre, de individualidade criadora lhe exige. O artista que verdadeiramente viva este drama, não tem com certeza tempo para mistificar o próximo. E só isso importa: a lúcida, desperta, activa consciência que representa o poeta para quem a poesia não é vaidade, nem adorno, nem brinquedo: é uma questão de vida ou de morte.
III
Outro sobreaviso para quem queira de facto manter uma atitude inteligente perante a «arte moderna»: um poeta não pode avaliar-se e pesar-se por obras isoladas, o que quase sempre acontece e nas censuras violentas sobre os «modernismos». O crítico de poesia sabe que só um cotejo constante entre muitas criações do mesmo artista e entre criações de vários, pode:
1º - habilitá-lo a distinguir a mistificação da verdade
2º - habilitá-lo a descobrir a chave que explique a individualidade de cada poeta
A poesia é, principalmente, um processo de totalização e de síntese e o poeta uma totalidade onde todas as partes entram em funcionamento recíproco, deixando, se as separamos, de funcionar.
Isto, se é básico, se é fundamental, na arte clássica de qualquer tempo, mais ainda o é na arte moderna, na arte de hoje, onde cada artista, só por si, é um estilo e uma técnica - uma individualidade. Desligar um quadro do processo que o origina, condiciona e explica, não conduz a resultados nenhuns. Referindo-se a arte figurativa, em regra, a cânones, a estatutos prévios de beleza, a uma lei externa e fixa, natural é que o movimento do observador se desse do quadro para os referidos cânones, para a referida lei. Referindo-se a arte moderna, essencialmente, à lei interna do poeta, a uma extrema e última e íntima subjectividade, natural é que o movimento compreensivo se faça do quadro para o núcleo criador do poeta. No primeiro caso, trata-se até certo ponto de compreender «logicamente», pelo menos canonicamente: no segundo não se pode exigir compreensão lógica ou canónica da obra, mas sim de compreender, na totalidade, o poeta. Quando não o compreendemos, é a novas produções do poeta que devemos pedir «explicação». E não, e nunca, a nada ou a ninguém fora dele.
IV
De «lesões ou excitações que ao incidirem a (sic) certas zonas do cérebro poderão provocar ricos estados alucinatórios, revivescências de linguagem arcaica e preciosa, filmes de extraordinário colorido e beleza» - é o próprio Dr. Viriato de Gouveia que nos fala. Mas se reconhece o contributo excepcional de «beleza» que os estados anormais, alucinatórios e tóxicos podem dar ao poeta na criação do seu peculiar universo de «visões», arrojos e truculências, porque se negará ao poeta moderno o direito de usar com risco até da própria saúde e da própria vida, experiências patológicas provocadas ou espontâneas, de ordem médica ou onírica? Alguém, ainda o mais renitente, contestará que os sonhos são, só por si, infinitamente mais belos do que o prosaico mundo da vigília? Não aceita o positivista a ilogicidade da lógica onírica? Porque nega ao poeta o direito de explorar um domínio que ele próprio reconhece mais belo? Sendo o método onírico um dos que os surrealistas aplicam, limitando-se a usar um recurso tão velho como a humanidade, de quê e porquê os acusaremos? Desde sempre que os sonhos alimentam a imaginação humana. Como podia o poeta, criador do imaginário, repudiar esse caminho? Não se diga que foi a psicanálise que deu voga aos sonhos. A psicanálise, quando muito, inverteu o conceito de que o sonho, o mito, o inconsciente sejam «funções inferiores» da psique humana. Pois porquê inferiores? Não completam e explicam o homem? Se não queremos o primado do instinto, também não queremos o da razão - proclamou o psicanalista. Se não queremos o primado do imaginário, também não queremos o primado da razão - disseram por sua vez os surrealistas. Queremos, sim, a harmonia do homem, a sua integração cósmica, que é talvez a sua desintegração física, social e...nuclear. E nisto, neste princípio, se encontram todas as correntes da «arte modernista». A arte, explorando os recantos abandonados pela ciência, não vinha subverter a ordem social nem negar a ciência. Mas vinha apenas reclamar um lugarzinho para si, na preocupação (talvez demasiado ambiciosa) de restituir o homem a si próprio.
Porto, 17/18 de Julho de 1959
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