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*** MAGIC LIBRARY - THE BOOKS OF MY LIFE - THE LIFE OF MY BOOKS *** BIBLIOTECA DO GATO - OS LIVROS DA MINHA VIDA - A VIDA DOS MEUS LIVROS

Thursday, August 17, 2006

APRENDIZ 1955

1-1 - 55-08-20- escritos da juventude

AUTORIDADE E LIBERDADE
UMA PEQUENA PARCELA DA VERDADE

20-8-1955

Se comentamos mais um livro, típico de determinada atitude pedagógica e não de determinada facção ideológica, fazemo-lo para surpreender essa mesma atitude e não para rebater a doutrina conduzida por essa atitude. Não somos dos que coarctam aos outros o direito que para si próprios reconhecem: o de pensar como e o que quiserem.
Nem somos tão pouco dos que receiam a vitória e expansão de ideias e crenças contrárias às suas, sob pretexto de que desvariam a juventude e de que a "deseducam". Mas vitória será a de direito e não só a de facto, a que resultou duma dominação pela força sobre as consciências, duma autoridade sobre a liberdade de cada indivíduo que aliás nem vitória é mas simples prevalência.
Para nós, a única maneira da juventude se educar está em mostrar-lhe ou propor-lhe de tudo. Não nos preocupamos muito, portanto, em criticar as ideias (embora de vez em quando nos não sofra o ânimo se o fizermos) mas sim em denunciar aquela atitude típica, fonte de todas as corrupções, quer em matéria política quer em matéria puramente ideológica ou educativa, a atitude autoritária, despótica, mandona, com ar de decreto ou lei infalível e indiscutível.
E se de alguma coisa quero prevenir os jovens é de que distingam toda e qualquer atitude autoritária, de atitude libertária, sem que, no entanto, lhes aconselhe esta ou aquela. Que lhes aconselhe o seu temperamento, as suas virtualidades, as suas aspirações e, muito principalmente, os seu méritos. Nestes, sim, é que confio. E deles só pretendo ( se é que pretendo) a adesão às ideias que perfilho.
Não me interessa possuir correligionários medíocres; por isso nunca cairia na asneira de ir impor as minhas ideias, prova de que, se as tinha de impor, é porque não acreditava muito na sua presente ou futura vitória, na sua adesão pelos melhores.
Por estar certo de que a minha doutrina é a melhor(evidentemente que o tinha de estar, teor que sei não o estivesse não tinha escolhido essa mas outra) é que me limito a esperar que os melhores virão até ela. Por isso desportivamente desafio as outras a que se ponham em pé de igualdade e de liberdade de expansão com a minha. Assim se verá( e só assim )quem é digno de merecer a vitória final, quem tinha uma pequena porciúncula de verdade, da Verdade.
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NIETZSCHE 1952

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CADERNOS DE UM APRENDIZ - ASSIM FALAVA ZARATUSTRA, em 20 de Agosto de 1952

Um outro profeta que anuncia a vinda dum novo deus. E usa dos mesmos grosseiros processos que o antigo usava. Complicada simbologia prestando-se a interpretações muito diversas de cada pessoa que lê; assim qualquer pessoa pode supor maravilhas onde o autor não pôs mais do que palavras.
Nietzsche, para derrubar os deuses anteriores a ele, cria um ainda mais imperfeito, na própria concepção. Nem ele procura coerência. Blasfema e com isso se acha capaz de impor uma nova religião e de mostrar às inteligências um novo deus.
Poesia ou filosofia? Poesia será, pois a filosofia exige requisitos que nem de longe ali se satisfazem. Por exemplo: uma linguagem inflexível e recta.
Mas saudemos o esforço, o entusiasmo e até a coragem dum grande pensamento que se revoltou contra crenças tradicionais, hábitos mantidos e até contra o próprio espírito na sua casa sem janelas. Tal tentativa só podia ter um fim como de facto teve: o rompimento da consciência individual em alguém cujo último sustentáculo era a consciência.
Nietzsche nunca se teria conformado com essa escravidão do humano ser à consciência. Lembra a poesia de José Régio no que esta tem de revolta, de procura de emancipação. Mas distancia-se dela pela falta de submissão, de lúcida e exacta visão das limitações implacáveis, da identificação do deus que procura com o deus tradicional. Nunca eu podia ter a pretensão de reduzir a termos lógicos o que por si nunca é lógico, nem coerente, nem meridiano.
Por isso disse que o livro de Nietzsche é poesia. Na grandeza do seu grito Nietzsche deixa-se vencer e nem repara que conduz a sua prédica com acentos de Novo Testamento, com expressões da Bíblia Antiga, com o próprio desejo da vinda dum deus e seu império.
Onde a emancipação total? A eterna prisão: o espírito humano que nunca permite se saia de si e dos termos em que ele equacionou o problema humano.
Mas mesmo que tal quiséssemos conseguir(a emancipação do espírito de si mesmo) não era com uma oração inflamada, imprecações e símbolos que o conseguiríamos mas na procura das raízes da inteligência lá onde elas provavelmente se encontram: na história. A intervenção do real e até do actual no emaranhado da simbologia poética, mostra bem as falhas inevitáveis que a grande ambição tinha de originar, dada a sua própria impossibilidade lógica; a loucura de Nietzsche é a maior e mais trágica e mais bela explicação de como Nietzsche percebeu isso muito bem e mediu a sua fraqueza.

Da impotência ao desespero e do desespero à loucura foi um passo. Que dizer do nebuloso conceito de massas que Nietzsche nos apresenta chamando-lhe os nomes mais diversos mas todos desprezivos?
Só isto: ele sentia qualquer coisa que, mais do que tudo lhe entravava o caminho; ele sentia qualquer coisa a acusá-lo surdamente de tanta ambição; ele sentia qualquer coisa a pesar-lhe na alma desmentindo cada grito com que a si mesmo se procurava convencer.
E a essa qualquer coisa chamou rebanho, populaça e muitos nomes mais. E como se compreende que um homem que se quer superior venha rojar-se perante o rebanho, a contar os seus anelos e desânimos e ambições?
Dessa paradoxal posição também Nietzsche dá conta e a expressa em diversas passagens. Uma vez mais se verifica a inapreciável vantagem de possuir o maior domínio da língua. Quando se tem muito que dizer, corre-se o risco de estragar tudo se não o soubermos expressar. Até certo ponto, isso me parece que aconteceu a Nietzsche.
Ou será da tradução? Afinal a visão do "ubermensh" não contraria, antes afirma, a lei biológica da evolução. A única atitude inteligente diante de Zaratustra não será considerá-lo como uma espantosa profecia perante a qual nos resta somente esperar, dispostos a presenciar grandes acontecimentos?
A todo o momento clama "Meus irmãos". Mas esses irmãos não passam dele próprio, desdobrado por imperiosa necessidade de expressão. O Super-Homem não tem irmãos. O egoísmo parece-me que um dia me convenci de que o egoísmo era a mola real da vida. E Nietzsche diz que sim, que é.
Eis uma afinidade para mim bastante honrosa. Se um dia o mundo se contorcer em gigantesca revolução de povos, não terá chegado a altura do Super-Homem, o advento duma época Nova, a saída do actual beco sem saída?
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O rompimento da razão é suspeito seja em que caso for: E se o não admitimos na religião, porque o havemos de admitir na filosofia de Nietzsche, que afinal não passa duma outra religião, mais imperfeita e sem os séculos a escorarem-lhe o assento.
Zaratustra é um poema. Por isso mesmo, outras consequências mais não se lhe podem pedir que as de contemplação e sugestão. Em Zaratustra, muitas ideias novas surgem. Mas antes que a essas ideias sejam dados foros de cidade, necessário é que passem da categoria de ideias poéticas para a de ideias filosóficas.
Não se pode chamar vaidoso ao «Ecce-Homo». Nietzsche não entendeu a vaidade como até ele se entendera.
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R. MAHEU 1972

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RENÉ MAHEU: ESSE PAÍS CHAMADO MUNDO (*)

[(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo» (Beja) , na rubrica «Leituras de Acaso», em 20/8/1972 e na revista «Vida Mundial», à volta da mesma data]

À medida que a informação se acumula e os meios humanos postos ao seu serviço (para a captar e difundir) se tornam quase incapazes de a controlar, nasce uma nova disciplina que, perante as dificuldades criadas pela nova «invasão» e subsidiada por meios técnicos ainda incipientes ou pouco generalizados, pretende tornar utilizável a matéria-prima que de outra forma nos ameaça de asfixia definitiva.
Sabe-se hoje muito e de tudo: coleccionam-se dados e notícias sobre acontecimentos e conhecimentos sem que o poder de os organizar tenha sido proporcional. Os computadores vieram a tempo, criar uma esperança de ordem no caos mas, até agora, o mais barato que se conhece custa ainda (apenas) 540 coutos, e pelo desfasamento habitual entre invenção técnica e aplicação tecnológica, não se pode confiar ainda inteiramente nos cérebros electrónicos...
Quer isto dizer que ao desmembramento noticioso da realidade, à sua pulverização até ao infinito e ao desespero, há que seguir-se como em todas as fases históricas se verificou, uma etapa de síntese. As filosofias de raiz literária chamadas para esta tarefa, mostraram-se impotentes mas também não exibiram maiores êxitos as filosofias de raiz matemática, tão afectas a preconceitos como aqueloutras. Sem perder nunca o rumo humanista do universal concreto, procuram hoje alguns pensadores, sem perda do sentido prático, aquela hierarquia de ideias e de valores que constitua o primeiro passo na ordenação...dos ordenadores.
O director-geral da U.N.E.S.C.O., René Maheu, em «A Civilização do Universal» trata de alguns temas que conduzem lá: mergulhado na «tirania. psicológica» exercida pelos meios de Informação, às alienações tradicionais veio juntar-se um tipo de coisificação até agora desconhecido, a paralisia, (atrofia) das faculdades não só emotivas mas até racionais causada pelo sistemática «bombardeamento» de notícias que já não é possível assimilar nem elaborar.
René Maheu, pela aprendizagem que as suas próprias funções lhe facultam, reelabora os dados inertes da ciência (do conhecimento em geral) em molas dinâmicas da realidade histórica; exemplifica e concretiza; coloca em sustentação recíproca os termos antinómicos de análise e síntese; se não está ainda descoberto o método propedêutico capaz de organizar todo o conhecimento actual do homem, a Prospectiva ou Futurologia que Maheu manipula com grande agilidade é, sem esquecer o presente confuso ou perturbante, e a resistência ou inércia oferecida par todas as forças contrárias ao progresso, a primeira aposta sobre o futuro com o objectiva de interpretar o mais recente passado; sem este ímpeto para a frente, os métodos ultrapassam-se a si próprios; estão antiquados, um dia antes de serem criados; a aceleração da desenvolvimento económico
( onde se verifica) imprime aos acontecimentos uma velocidade que vem ainda agravar a acumulação dos sinais que a pretendem traduzir, transmitir e organizar; na Prospectiva, arte e ciência em organização, se fixa agora a esperança dos espíritas mais ousados e responsáveis do nosso tempo.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo» (Beja) , na rubrica «Leituras de Acaso», em 20/8/1972
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Wednesday, August 16, 2006

KUNDERA 1990

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A METÁFORA ORGÂNICA ENTRE AS (MINHAS) IDEIAS

Lisboa, 18/Agosto/1990 - Era fatal. Agora que a metáfora orgânica surgiu como ideia-mestra da narrativa que me propunha (proponho) escrever, começo a ver essa ideia aproveitada e usada em tudo o que é escritor ou escriba, e por tudo quanto é sítio.
Até um ensaísta como Edgar Morin, de formação científica tão ortodoxa e tão crítico relativamente aos vitalismos, tão certo dos dados exactos das ciências positivas, até ele usa a «metáfora orgânica» quando, na obra «Questões do Nosso Tempo» (1981), compara o sistema de uma teoria (ou de uma doutrina) a um sistema orgânico (um ecossistema) que cria as suas próprias autodefesas contra os «vírus» das influências e críticas, externas ou internas, exógenas ou endógenas.
Pensei que um ensaísta com as responsabilidades «escolares» de Edgar Morin não quisesse rebaixar-se à sedução de ver todo o cosmos (e todos os microcosmos) como uma enfiada de ecossistemas (tipo boneca chinesa), à tentação de usar símiles do corpo e dos organismos para analisar fenómenos políticos, ideológicos e sociais.
William Borroughs, no livro «Cidades da Noite Vermelha», desenvolve a mesma intuição - fazer passar todas as vivências, ideias e terrores pelo metabolismo. Mas em Borroughs trata-se de uma coincidência , de uma intuição fulcral ou crucial e não de um leit motiv ou de um fait-divers. Aliás, foi lendo as suas «Terras do Poente» que se me consolidou a ideia da importância do metabolismo, numa literatura de vanguarda, como aliás já o disse, há dias, a propósito de Rabelais e do seu gigantesco «Pantagruel».
Há, com Borroughs e Rabelais, uma identidade de objectivos, pensamento e sensibilidade que explica a coincidência e me lisonjeia.
Mas já me é muito mais difícil aceitar que o senhor Kundera, no romance « A Imortalidade» (*) se divirta também com uma metáfora orgânica, ao contar a anedota ocorrida com o casal Salvador Dali-Gala: colocados, ao ir de férias, perante a perplexidade de não saber onde deixar um coelho de estimação que adoravam, Gala resolve realisticamente o problema dando de comer a Dali o coelho num delicioso guisado. «Deve comer-se o que se ama» é a lição moral que indirecta e vagamente Kundera extrai deste episódio, desta anedota surrealista.
Mas a questão em Kundera é se o melhor da sua literatura de consumo não serão as anedotas que ele conta ou invoca, nem que para isso tenha de as pedir emprestadas a Dali ou a Goethe. É que, mesmo para plagiar, há que estar naturalmente investido de autoridade moral e poética para o fazer, o que não me parece ser o caso de Kundera.
De qualquer modo, a ideia de um «canibalismo» latente em todo o acto de amor começa a escapar-me das mãos como uma intuição querida de tantos anos e que supunha minimamente original .
Espero poder vir a explorá-la antes que surja um ficcionista ou ensaísta da moda a fazê-lo, porque está a dar.
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E.F.SCHUMACHER 1981

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«THE SMALL IS BEAUTIFUL»

18/8/1981 - Acaba de sair em tradução portuguesa a obra mais conhecida e discutida do célebre economista alemão, radicado na Grã-Bretanha, Ernest Frederich Schumacher.
«Small is Beautiful» - título original do famoso livro - tornou-se, em todo o mundo, desde e sua publicação em 1973, sinónimo de economia e tecnologia intermédia, tese fundamental no pensamento da Schumacher.
Este «estudo de Economia em que as pessoas também contam» representa uma crítica tanto mais pertinente ao sistema económico até hoje vigente a Leste e a Oeste, quando o seu autor é um especialista iminente dessa ciência e desse sistema.
Schumacher, com efeito, tem uma brilhante carreira de economista.
Refugiado em Inglaterra, ele voltou à vida académica como investigador científico em Oxford, sendo simultaneamente conselheiro económico do Governo britânico para a reconstrução da Alemanha.
Durante as décadas de 59 e 60 documentou sobre problemas do desenvolvimento numerosos governos.
Fundador do Intermediate Technology Development Group (Grupo para o Desenvolvimento da Tecnologia Intermédia), foi durante anos conselheiro económico do Departamento Nacional do Carvão, do Reino Unido, e conselheiro económico do Governo da Birmânia em 1962 e da Índia em 1966.
As críticas que desfere contra a economia de exploração hoje vigente, quer no bloco capitalista quer no bloco socialista, baseiam-se, portanto, numa longa carreira de investigador, professor e economista político.
Schumacher morreu em 1977, dias antes da publicação do seu livro «Guide for the Perplexed». Mas não morreram as suas teses, difundidas hoje por todo o mundo onde começa a compreender-se que a ecologia e o ecodesenvolvimento são inseparáveis na luta dos povos e dos exploradas contra o imperialismo industrial
Embora a macrocefalia urbana seja em si mesma o maior atentado à qualidade de vida das populações, agrada no entanto à esquerda e à direita que, nos seus programas de urbanismo e habitação, prometem defender essa qualidade de vida dos cidadãos.
A macrocefalia e a superconcentração industrial nas cinturas urbanas - embora causem doenças orgânicas e sociais as mais diversas - trazem enormes vantagens para as estratégias partidárias, quer da esquerda, quer da direita. Para os organismos políticos que controlam os sindicatos, a concentração é vantajosa porque facilita a unidade de luta e da contra-repressão. As importantes greves de metalúrgicos nos arrabaldes de São Paulo, megalópolis tentacular, símbolo do concentracionário urbano, mostram de que maneira a grande cidade facilita a unidade dos trabalhadores e como, portanto, tem vantagens para uma estratégia grevista dos sindicatos.
Para a polícia, o Estado e as multinacionais, por outro lado, (quer dizer, a direita), a macrocefalia é ideal, pois todas essas forças da direita reprimem melhor o trabalhador em grandes concentrados do que se estivessem dispersas.
Com grande dose de objectividade, portanto, poderá dizer-se que a macrocefalia serve a direita e a esquerda com igual proveito.
De onde, portanto, não se vislumbra que possa vir da esquerda ou da direita, qualquer política urbana (e de desenvolvimento global) alternativa à macrocefalia - uma das principais causas da crise ecológica que o mundo vive, como São Paulo ilustra.
De nada serve dizer que a macrocefalia de Lisboa provoca não só a morte do estuário do Tejo mas muitos outros males de que este País padece. Enquanto essa macrocefalia interessar, na perspectiva do concentracionário industrial, os partidos de esquerda tanto como os partidos de direita, Lisboa continuará a crescer, com a Unesco, benfeitora, a dizer que nos vem estudar o estuário.
O exemplo, aliás, repete-se com o mesmo vigor no caso da concentração agrária que é o latifúndio: tem-se visto como ele é particularmente grato aos amigos e inimigos da reforma agrária (sic). Como alternativa ao latifúndio, querido à esquerda e à direita, a revolução ecológica dos campos espera.
Porque também neste caso - o latifúndio - o gigantismo é, ecologicamente falando, a ruína e o desastre.
Os dois exemplos encorajam uma generalização: o gigantismo é sempre antilecológico e só o que estiver à escala humana serve o homem, tudo o que for além disso o destruirá.
«The Small is Beautiful» - foi a paráfrase que o economista Schumacher encontrou para definir um dos vectores fundamentais da política ecológica.
Sendo o gigantismo - quer a macrocefalia urbana, quer o latifúndio, quer o complexo megalómano do tipo Sines, quer o empreendimento gigantesco do tipo Alqueva - inerente aos imperialismos que planificam a pilhagem dos recursos naturais da Terra - e dos países, é natural que os representantes, nesses países, desses imperialismos, à esquerda e à direita, sirvam os seus donos a senhores lançando o «slogan» «The Large is Beautiful».

QUANDO O PROMETIDO CONFORTO DA CIDADE SE TRANSFORMA EM INCÓMODO PESADELO

Também não é por falta de informação que a auto-suficiência se encontra impossibilitada. Hoje tudo está praticamente investigado. E se nos dizem que não está, é essa mais uma das habituais mentiras com que o sistema pretende travar a marcha inevitável dos homens para a libertação eco-alternativa.
Para que o «regresso ao campo» encontre a sua principal justificação, há que não perder de vista este facto dominante: o famigerado conforto, o emprego, o posto de trabalho, o bem-estar que se prometia ao rural quando o aliciaram para a cidade, é cada vez mais uma fraude maior.
O que nós temos mais certo, suspenso como um cutelo sobra as nossas vidas, é a mais atroz das incomodidades, o maior desconforto e o mais vergonhoso dos sofrimentos, quando, por exemplo, a torneira dos combustíveis voltar a fechar como fechou em 1973.
Na total dependência de uma fonte energética que de repente termina, como iremos pagar uma bilha de gás? Mil, dois mil escudos? E haverá bilhas de gás para comprar, mesmo a preço de ouro? Já se viu o ritmo a que o preço cresceu desde 1973? Pode calcular-se o ritmo em que vai crescer?
Porque nos continuam a embalar com histórias de fadas?
Este é apenas um facto para servir de símbolo a tudo o mais que nos conta a mitologia da felicidade pregada pela sociedade de consumo a seus anúncios.
Quando o sonho desse conforto - a água quente - se transformar num pesadelo (devido ao custo do gás), onde está afinal a teoria do conforto que nos tem sido prometido a troco da «dura vida dos campos»?
Mantidos na prisão da cidade, só já tarde compreenderemos o logro e as mentiras da mitologia publicitária: conforto, afinal, onde estás tu?
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 18/8/1981
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BABEL 1996

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18-8-1996

ESTUDOS TEXTUAIS (AS FONTES DA ORIGEM)- OBJECTIVO PRIORITÁRIO: DEPOIS DE BABEL, RECONSTITUIR A BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA - REMISSA PARA O TEMA DO NÚCLEO 6: CORPOS SUBTIS - DISCUSSÃO DA NOMENCLATURA TEOSÓFICA

Exemplo: Só no campo dos corpos subtis, a nomenclatura teosófica varia de autor para autor, de livro para livro, mesmo em cada autor e em cada livro, às vezes de capítulo para capítulo ou de linha para linha.
A desproporção hierárquica dessa nomenclatura salta à vista - se tivermos em conta o valor vibratório das áreas energéticas em jogo.
Annie Besant fala de «ego imortal» para designar tudo o que não é corpo físico. A palavra «eco» reduz a dimensões bem estritas a 5ª dimensão teosófica. Ao falar de «corpo astral» ou «corpo de desejos» como quase todos os teósofos, deixa no ar (alguma literatura o confirma) a ligação ao astral dos astros do sistema solar. É pouco. Porque o sistema solar e tudo o que são astros físicos - vibram N8 e não mais que N8 - ou seja, corpo físico.
Chamam, pois, «corpo astral» ao que é ainda corpo físico.
«Corpos mentais» é outra designação plena de equívocos em Annie Besant e seus colegas da Sociedade Teosófica.
O «mental» está indissoluvelmente ligado ao cérebro e, portanto, ao físico - não designando essa palavra a área energética que pretende nomear - área que vibra já na frequência de N32 (conferir hierarquia).
Outra nomenclatura corrente é de «homem» em vez de «ser humano». O discurso da ciência ocidental está cheio desta entidade mítica e sexista - o homem - em nome da qual a ciência tem cometido as maiores desumanidades. Nomeadamente com as ciências ditas humanas.

Proposta: Falando de energias e, portanto, de informação subtil, a questão das fontes coloca-se a todo o momento e quase sempre de forma insolúvel.
A talentosa Madame Helena Petrovna Blavatsky escandalizou a sua época, dizendo que recebia tão grande acervo de informações por clarividência. Outros teósofos - é o caso de Leadbeater - dizem que recebem as mensagens por clariaudiência.
Outros falam claramente em mediunidade - e são capazes de ter razão.
A ciência positiva nega isto tudo, evidentemente, mas a ciência positiva existe para negar tudo excepto a si própria.
A arqueologia, por exemplo, só chega até onde encontra testemunhos materiais. Localiza a antiguidade do Egipto faraónico em 4.500 anos AC - e as figuras rupestres do Coa, no máximo, em 30 mil anos.
Como pode a arqueologia datar com rigor o que lhe escapa, ou seja, o que, vindo de civilizações imateriais como a Lemúria, não tem evidentemente , testemunhos materiais a atestá-la.
E como se pode aceitar o absurdo de o Egipto faraónico remontar apenas a 4.500 AC - com tal grau de perfeição?
Se entramos nos textos clássicos - de Trimegisto (que alguns dizem ser nome de colégio de mistérios e não nome de um autor) ao Génesis ou ao Apocalipse ( Livro da Revelação) a Babel das traduções (traições) é idêntica e podem discutir até à eternidade uma palavra , uma informação, um dado.

Outro exemplo: Não é pelas ciências humanas - com sua dominante parasitária e vampiresca - que chegaremos às ciências divinas ou sagradas.
As ciências humanas podem (e devem) fornecer pistas para despistar , ou códigos para descodificar. Mas tudo isso tem que ser submetido a uma linguagem universal , um sistema de informação fiável.
Depois de Babel e depois de Alexandria, o puzzle da Eternidade está por reconstituir.

Por isso a proposta «Estudos textuais», é clara:
DEPOIS DE BABEL, RECONSTITUIR A BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA
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F. BERMUDES 1993

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DIÁRIO DE UM APRENDIZ
EXERCÍCIO DE EMERGÊNCIA COM FÉLIX BERMUDES


«O Homem Condenado a ser Deus»?


Lisboa, 18/8/1993

1 - Teósofos como Félix Bermudes, na obra «O Homem Condenado a ser Deus», Civilização Brasileira, Rio, 1974, exprimem-se através de nomenclaturas que, para o leitor vulgar, aparecem extremamente difíceis de «traduzir». Palavras de origem sânscrita, por exemplo, ou retiradas da tradição hinduísta, colocam aos leitores de línguas europeias problemas por vezes insolúveis de compreensão, de interpretação. Mas é sobre essa babel de idiomas que temos de caminhar quando estudamos matérias (e campos energéticos) que escapam ao conhecimento e discurso da ciência experimental. Às leis de causa e efeito. Para o bem e para o mal, os esquemas de organização hierárquica do Cosmos (os mapas do invisível) devem ser considerados com grande atenção e cuidado. E um método seguro, exacto, universal como a RA oferece um instrumento de análise imprescindível para ultrapassar essa babel. A RA não vem anular os bons contributos dados ao ser humano por algumas correntes, algumas das quais degeneraram em escolásticas. Enquanto tivermos o vasto campo da exegese para atravessar, a Hipótese Vibratória é uma bússola preciosa que nos permite seguir as vias mais certas e evitar as que são claramente equívocas. Uma coisa é certa: com ou sem RA, só há este caminho.

2 - Eis algumas citações curiosas colhidas no livro «O Homem Condenado a Ser Deus», de Félix Bermudes:

Seria curioso, por exemplo, para quem tiver tempo e paciência, fazer o cálculo da velocidade precisa para que a constelação de Hércules, com as suas 113 estrelas, descrevesse uma volta em torno do nosso planeta, nas 24 horas terrestres que as populações antigas concediam ao universo inteiro para a executar. - OHCSD,46

As condições da época não os deixaram produzir mais nem menos, mas ficaram habilitados para maior tarefa em posteriores encarnações e prepararam a humanidade para uma fase ulterior de progresso. - OHCSD,47

Temos de reconhecer que a nomenclatura exerce apenas a missão simbólica de nos fornecer analogias, que nos permitem formular, num mundo a três dimensões, uma concepção do que se passa naquelas esferas inacessíveis, ao próprio pensamento. Entre estas analogias e as realidades que elas tendem a trazer à nossa razão, há a distância que vai da célula embrionária ao indivíduo perfeito. - OHCSD,

A expressão «planos» foi mal escolhida por quem fez a equivalência do sânscrito para as línguas europeias e só a adoptamos para conjugar a tecnologia desta obra com a que já encontrámos consagrada. Trata-se, na realidade, de «mundos», 7 esferas concêntricas que se interpenetram, formando um só globo, mas conservando-se diferenciadas na massa total pelo grau de densidade. Cada plano subdivide-se em 7 sub-planos, diferenciados segundo a densidade. Do primeiro ao último destes 49 estados de matéria, a densidade atómica vai aumentando progressivamente, sempre na potência de 7, número consagrado do sistema. (...) estamos encarecidamente com o paciente leitor para fixar bem que ao empregarmos relativamente aos «planos» as expressões «em cima» ou «em baixo», «superior» ou «inferior», «mais alto ou mais baixo», não aludimos a lugares superpostos como prateleiras, mas a graus de densidade dentro de um grande mundo, que contém em si próprio e no mesmo espaço 7 mundos diferentes. - OHCSD,49-50

Dos 49 estados da matéria em que se dividem os 7 planos, apenas 2 se revelam plenamente à nossa consciência normal - o sólido e o líquido do mundo físico. Já os corpos gasosos, quando não podemos identificá-los pelo cheiro, pela cor ou pelo efeito cáustico, escapam à percepção dos nosso sentidos (...) Podemos identificar conscientemente dois estados de matéria e reconhecer parcialmente um outro, mas 146 escapam completamente aos sentidos. - OHCSD, 59

Muitos membros da nossa família humana já ultrapassaram essa fronteira; um terço dos «egos» existentes está a tirar passaportes; mas 2/3 não têm ainda forças para tão exaustiva jornada e não poderão alcançar a gloriosa meta. Esta proporção de 1/3 que completa a romagem e 2/3 que ficam no caminho não se limita aos 2 biliões e meio de indivíduos que vivem neste momento em corpo físico; abrange igualmente a multidão enorme de «egos» actualmente desencarnados, vivendo nos seus corpos invisíveis para nós, em planos astro-mentais. São ao todo cerca de 60 biliões, dos quais apenas 20 chegarão com aproveitamento ao exame final. Os outros 490 biliões serão dados como inabilitados e transitarão em seu devido tempo para a cadeia seguinte. - OHCSD, 77

Não há almas condenadas por toda a eternidade; isso seria incompatível com a bondade divina e com o amor do Pai que nos criou; mas podemos considerar, dentro das nossas concepções relativas do tempo, que os que se deixaram atrasar perderão uma eternidade, para só regressarem à existência consciente na eternidade seguinte. Durante o imensurável período em que lhes for suspenso o contacto com a vida cósmica, as suas consciências ficarão adormecidas, como as princesas dos bosques encantados. - OHCSD, 79-80

A radiação de alta espiritualidade não está patente nos chacras mas sim nas auras que envolvem os corpos subtis e os tornam fulgurantes e belos, quando a uma poderosa inteligência se aliam nobres virtudes. No mundo físico, um sábio ou um santo que não tenham tempo para curar de elegâncias, ficam diminuídos em confronto com qualquer escroc internacional, tão perito na arte de vestir como na de roubar. Mas nos mundos subtis cada um veste-se de luz e de cores mais ou menos formosas e envolve-se em auras mais ou menos vastas e fulgurantes, na medida justa do seu merecimento. A confusão é impossível, porque ali ninguém pode vestir o alheio. - OHCSD, 107
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T. ROSZACK 1971

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CARTA A URBANO TAVARES RODRIGUES SOBRE A «CIVILIZAÇÃO» QUE OS HIPPIES CONTESTAM

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18-8-1971 - “O Falso Conflito da Sociologia e da Psicologia" se intitulava o artigo que Urbano Talares Rodrigues, na sua secção semanal Arco Voltaico, de O Século de Domingo publicava no passado dia 15 de Agosto de 1971.

Esse artigo serve de referência às considerações que aqui me permito deixar à consideração do amigo e camarada da Imprensa que é Urbano Tavares Rodrigues, e à crítica dos leitores, pedindo, evidentemente, que o Urbano me desculpe esta intromissão e agradecendo, antecipadamente, a amizade com que ele sempre, em todas as circunstâncias, tem querido honrar-me.

Que Urbano Tavares Rodrigues seja um dos raros intelectuais portugueses a sentir e a viver por dentro - com paixão, com angústia - os problemas da contra-cultura e que seja ele um dos que, lendo Theodore Roszak, nos venha dar conta do que pensa desse livro e desse autor, até não admira. Porque ele é dos poucos a sentir e a pressentir aquilo que, amanhã, já será conhecido e reconhecido por muitos e muitos outros. Daí o desejo que esta carta contém de encetar um diálogo ao nível das ideias, um diálogo cívico e civilizado como é próprio e urgente entre portugueses. Gostaria que dois alentejanos dessem disso bom e proveitoso exemplo.

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Como logo em título se faz notar, o conflito da sociologia e da psicologia é um "falso conflito".

Urbano Tavares Rodrigues acentua depois a sua ideia: "Antes de mais, tudo isto é antidialéctico. Nem o teatro total, nem o conhecimento abissal do ser estão em conflito com a consciência de classe." (...) "Onde de facto há oposição é entre a moral de acção da New Left e o marasmo narcótico das comunidades "beat-hip".

É sobre o "marasmo narcótico das comunidades beat-hip" que me permito apresentar a U.T.R. a minha primeira discordância.

A meu ver, o que há de "revolucionário" na actuação das comunidades "hippy" supera, em muito, o "marasmo narcótico" a que algumas (e não todas, sublinho) porventura se dedicam.

A moral que Roszak defende, em nome dos "hippies", é a moral diferencialista - expressa também e a partir de premissas um pouco diversas por Henri-Lefèbvre no seu recente manifesto – um pouco em oposição ao "totalitarismo tecnocrático" como ele lhe chama.

A. crítica implícita em Roszak ( e nos "hippies" que adregam de intelectualizar aquilo que normalmente neles é mais e apenas prática) contesta o totalitarismo de uma civilização que faz desse totalitarismo a sua arma mais poderosa e mais mortífera. Que fecha (como diria Herbert Marcuse) o processo em ciclo vicioso. Que estabelece um circuito estanque. Que não deixa outras hipóteses nem saídas. Que não consente diferenças nem diferenciações. Que rasoira e uniformiza.

O que Roszak e os "hippies” (aquele por via intelectual, estes numa prática alheia a filosofias e excessivas mentalizações) contestam é o dirigismo como factor básico, universalmente aceite e indiscutido, de uma sociedade, o expansionismo ou imperialismo da febre produção-consumo, ainda que seja em nome do almejado desenvolvimento com que se pretende combater um inenarrável sub-desenvolvimento. Mas como diria Josué de Castro, o sub-desenvolvimento não é mais nem menos do que a outra face do desenvolvimento. E a sua autoridade na matéria parece incontestável pois, como se sabe, até a terminologia (desenvolvimento/subdesenvolvimento) é de sua autoria.

O totalitarismo dirigista daquilo que Roszak teima em chamar Tecnocracia, dá origem a um sem número de sofismas para se auto-justificar (e através dos "mass media" inserir subrepticiamente nas mentalidades até ser aceite como óbvia), sofismas que não foram os "hippies" evidentemente, os primeiros a analisar mas que foram talvez os primeiros a ter coragem de contestar. Pois contestar é muito mais do que criticar. Só se contesta, agindo, e os "hippies", mais do que os beatnicks, decidiram agir, dar o salto, efectivar a reviravolta, volvendo costas à sociedade do Coca Cola e do Chewing Gum. Safaram-se dali - eis tudo.

Os "hippies" são emigrantes da civilização totalitária e a guerra que se lhes move, provinda dos mais heterogéneos sectores políticos, é um pouco a mesma que se move contra outro tipo de inofensivas criaturas, as do "regresso à natureza" (naturistas ou vegetarianos, como são vulgarmente conhecidos), com os quais os "hippies" têm manifestado tantas e tão fundas afinidades. Só que a inabilidade intelectual e a falta de apetrechamento crítico (sofistico, talvez) de uns e outros, tem permitido que os funcionários do Sistema usem com eles da chacota que depois as massas igualmente adoptam.
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Quando alguém, rara e medrosamente, se permite uma crítica não já aos blocos políticos - este ou aquele - mas a toda a civilização tecnocrática - a civilização do luxo e do lixo - um argumento há que o crítico-contestador já conhece de cor e que serve quase sempre para o silenciar.

"Criticar a Tecnocracia em bloco é atitude reaccionária" - afirma um dos tais sofismas que acima referi.

E surge a pergunta: - Naturalmente querias o regresso às cavernas, não?

Ora ninguém, nem os "hippies", nem os do "regresso à natureza", quer o regresso às cavernas. A campaínha de porta, o automóvel, a torradeira eléctrica, a máquina de lavar, o relógio, o telefone, a máquina de escrever, os livros que leio, o papel onde escrevo, a esferográfica ponta fina que me escreve as prosas - o pão nosso de cada dia, pois: - tudo me diz imediatamente que não posso regressar às cavernas, que necessito imenso da técnica e da tecnologia (devo-lhe tudo, devo-lhe a vida!). Sim, que seria de nós sem tanto conforto, tanta facilitação, tanta beleza, tanta-tanta?!

Frente, portanto, ao argumento-sofisma das cavernas, o crítico-contestador estremece de pânico e parece, automaticamente, liquidado.

Vamos ver, no entanto, onde reside o sofisma, porque sofisma há e bem gordo, nesta como noutras emergências da tal Tecnocracia, especialista, como afirma Roszak, em fabricá-los.


Sendo, como ficou dito, uma das características dominantes da Tecnocracia o totalitarismo do seu processo, não deixa ele lugar, como é obvio e lógico, a coexistências, nem a um cordial "cada um que se ajeite à sua maneira e conforme queira". Não: a tecnocracia tem a santa mania de salvar toda a gente e a isso depois chama política.
Se fabrica um transistor, atravessará montes e vales, mares e continentes, rios e florestas, atravessará o mundo e rebolar-se-á no cosmos se ainda aí mais mundos houver, para colocar o transistor. Ninguém terá o direito, em toda a galáxia, de dizer não ao transistor. Há uma entidade que substituiu de há muito o indivíduo ou animal humano: é o consumidor. E o consumidor, devidamente "tratado" par todos “os mass media", aceitará de ora avante tudo o que lhe metam pela boca abaixo.

Isto já de tal modo se tornou evidente, óbvio, efectivo, quotidiano, inevitável, indiscutível, implícito, - já de tal modo se lava o cérebro a toda a humanidade - que não passa pela cabeça de ninguém ser diferente e de que - até por casmurrice - se pode dizer não ao transistor. Embora diga sim à torradeira eléctrica ou reciprocamente.

Serve esta anedota para ilustrar o que pretendo dizer: o que grupos minoritários como os "hippies" reclamam é o direito de dizer não à torradeira e sim ao transistor, ou reciprocamente, ou nem uma coisa nem outra.

No fundo eles não contestam a civilização da técnica mas a tecnocracia que, como Roszak explica, é coisa um pouco diferente. No fundo, eles contestam o totalitarismo da civilização, o seu processo globalizante, a lógica infernal dos seus sofismas em cadeia, a engrenagem do sistema onde a vontade desaparece e o indivíduo é completamente esmagado, frito e triturado. Reduzido totalmente à categoria de consumidor, de homem objecto (ou homem
abjecto, também e portanto).

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Não sabem os "hippies" nem eu sei, se a coexistência é possível: se é ou será possível que as minorias diferenciadas possam existir no meio da maioria massificada, amorfa. Se podem, ao menos à margem, viver e sobreviver.

É que mesmo à margem e como se tem visto, o Sistema não consente nas minorias que se autoirradiam. Como explica Roszak, o Sistema só consente nas minorias que expulsa e margina. As outras, além de lhe sujarem os tapetes e as praias, comprometerem reuniões elegantes e desafinar no coro-dos-supermercados-felicidade-a-domicílio-e-cabaz-do-natal, as minorias auto-marginadas são um remorso, um espinho, um enclave no bloco considerado uno e indivisível da santa sociedade do consumo-do-lixo.

O crítico que conteste esse bloco está tramado e tanto mais tramado quanto não tem bloco político onde se integrar, ideologia e sistema em que se apoiar. É este o sentido moderno (pós Maio 58) da atitude anárquico-utópica e é este o sentido "progressivo" da história, pois dadas as barbaridades a que a Tecnocracia, em nome da civilização, está cometendo contra a civilização mesma - a Leste e a Oeste - barbaridades que alguns políticos denunciam sem conseguirem pôr-lhes freio - não se trata já de política mas de metapolítica, antropolítica (Edgar Morin) ou política planetária.

Eis, pois, porque já tive ocasião de afirmar que a política dos "hippies" é o arroz. Si há uma maneira hoje de ser político progressivo: contestando aquela parte da civilização que pretende matar a outra, aquela parte que é antes a tecnologia desenfreada dos monopólios metendo pela boca abaixo do consumidor todos os venenos que lhe dá na real gana. Com essa parte são os "civilizados" - não os "hippies" - que totalitariamente confundem toda a civilização. Portanto, nem os hippies, nem Roszak, nem eu, nem os do "regresso à natureza" querem o regresso às cavernas queremos, sim, o regresso à civilização. Quem faz a amálgama e depois se queixa dela, e nos culpa dela?

Roszak, no seu livro Para uma Contra-Cultura, deixa bem claro que apenas contesta a Tecnocracia e não a civilização enquanto civilização, com mais ou menos transistores e torradeiras. Apenas contesta aquilo em que a estratégia do consumo a todo o custo e a todo o preço monopolizou por completo todas as descobertas da ciência e todas os avanços da técnica.

Nada de confusões, pois: quem monopolizou para estragar a tal civilização que tanto prezam, não foram as minorias contestantes, que até têm provado passar muito bem sem torradeira, sem transistor, sem popó, e sem o resta da quinquilharia considerada indispensável ao "homem moderno" (mais importante da que isso tudo, é para eles terem (re) descoberto o amor e revolucionado a existência ou experiência amorosa). Os representantes da tecnocracia que é a arte de monopolizar a técnica e colocá-la exclusivamente ao serviço da exploração do homem pelo homem - é que fizeram tudo para estabelecer a confusão e se queixam agora dela. O costume. A Leste e A Oeste, meu caro amigo Urbano, o costume.
18-8-1971
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(*) Este texto de Afonso Cautela, que é suposto ter sido publicado, não tenho de momento o comprovativo de que foi e onde e quando: fica portanto com a data de produção, 18-8-1971
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1-6 - roszak-7-ls-ie> = leituras selectas = ideia ecológica domingo, 29 de Dezembro de 2002-scan

RESPOSTA À RESPOSTA DE URBANO TAVARES RODRIGUES (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, na sequência do que teclei em roszak-6> , não sei se foi publicado, quando, como e onde: continua a levar a data em que foi produzido . Uma coisa é certa e quase constante, o ano de 1971 foi, para o sr. Afonso Cautela, o ano das grandes e maiores e melhores intuições...

[18-8-1971] - É possível que o entusiasmo posto no diálogo nos arraste muito para longe do que lhe deu origem - Theodore Roszak e o livro Para uma Contra-Cultura,- e do problema básico - "o falso conflito entre sociologia e psicologia" - problema expresso, aliás, no artigo de Urbano Tavares Rodrigues que nos serviu de porto de partida e de pretexto a esta troca epistolar.

Importava, afinal, saber se o conflito entre sociedade e indivíduo, colectividade e iniciativa, autoridade e liberdade, disciplina e imaginação, é um confluo em vias de extinguir-se com o advento de novas tipos de sociedade (de organização social) e se a passagem, no campo da economia, de uma estrutura capitalista para uma socialista, opera a necessária viragem, também, no campo das relações humanas: dos indivíduos entre si e do homem consigo mesmo.

A sua tese, Urbano, é de que sim: de que a viragem económica e social operou ou operará, mais cedo ou mais tarde, a viragem humana, psíquica, existencial, moral; a minha tese é de que (ainda) não: o económico e o social, mesmo nas sociedades e países que substituíram uma economia de exploração e consumo por uma economia de produção, devem ainda muito - mesmo que o tenham combatido - ao antigo statu quo cultural, para dele e dos seus vícios básicos se terem conseguido emancipar.

E o problema não é, tão pouco, o de por enquanto não terem atingido tal emancipação; tal como o Urbano diz na sua carta, "tudo isso é muito complexo quando se planifica com mais de 50% de analfabetos" e não sou eu a querer iludir tal complexidade, fazendo exigências a quem já tanto fez nos caminhos do (im)possível.

Não, meu amigo, o problema (bem mais grave) é que não estava implícita até há pouco (até 1968-Maio) nos programas revolucionários essa emancipação. Ninguém a prevê, projecta, deseja, idealiza ou reclama. Por isso a Contestação, por isso a linha internacional que a Contestação tem seguido em todo o mundo "desenvolvido", por isso Herbert Marcuse, Henri Lefèbvre, Roger Garaudy, Edgar Morin, o diferencialismo, o neo-trotskismo, etc

Quer dizer: a moral, a estética, a filosofia, enfim, toda a axiologia ou filosofia dos valores (incluindo aqui o critério da crítica) é subsidiária ainda de uma cultura que, além da sociedade de consumo, além da exploração do homem pelo homem, além da luta de classes, além da violência, da opressão e da tortura, além da alienação e corrupção das consciências, possui ainda muitas outras características tão odiosas como estas, mas que a crítica marxista não denuncia e que a revolução económica socialista não mudou nem - o que é pior - pensa mudar tão cedo. É que nem sequer fala nisso ou consente que se fale.

Trata-se, pois, de radicalizar a revolução, como diria Edgar Morin, e radicalizar a revolução é o que Theodore Roszak pretende com o manifesto do seu livro, é o que as minorias e comunidades out estão fazendo, é o que todos os grupos marginados (auto ou hetero-marginados) das sociedades organizadas pretendem, e já que as mesmas ditas sociedades organizadas, talvez porque o sejam, não fazem.

A crítica marxista ao capitalismo está longe de esgotar o saco da Abjecção que, herdada dos primores greco-helénicos, judaico-cristãos e etc se encontra infiltrada muito mais fundo.

O único defeito da crítica marxista é, afinal, ser ainda pouco exigente. Até onde ela denuncia os crimes da Abjecção, do Establishment, Roszak não discorda, nem as minorias da Dissidência, da Viragem, da Reviravolta tão pouco. Mas onde ela (crítica) estaciona, as minorias reclamam o direito à Contestação que é a crítica radicalizada, levada a outros campos além do económico e do político, preocupada também (mas não principalmente nem exclusivamente) com os aspectos humanos da revolução e não só com a propriedade dos meios de produção.

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Em relação a Roszak, no entanto, há que pôr de remissa uma identidade que não me parece correcta e na qual, confesso, também fui arrastado na minha carta para si, amigo Urbano: ele fala, no título do livro, em "contra-cultura", conceito que, como todos os conceitos, contém uma certa vastidão, e depois, lá dentro, no decorrer do ensaio, insiste desalmadamente (só) na Tecnocracia. Ora a Tecnocracia é uma parte - embora importante - mas apenas uma parte da total e totalitária Abjecção. A sociedade de consumo é uma parte - embora importante - mas apenas uma parte da mesma Abjecção. Oscilar constantemente entre dois conceitos de extensão diversa e identificá-los, fazer coincidir os seus contornos como se fossem conceitos iguais, eis o que, mesmo segundo a lógica de Aristóteles, resulta em sofisma. E confesso, Urbano, que também sofismei um tanto, nesse ponto e na minha carta anterior.

No fundo, o processo totalitário da sociedade de consumo e da tecnocracia já ela o aprendera antes de ser tecnocracia e sociedade de consumo. A Abjecção radica mais fundo e por isso disse que a Contra-Abjecção ou Contra-Cultura deverá radicalizar-se para atingir a totalidade do processo.

Nomeando constantemente a Contra-Cultura com a palavra Tecnocracia, Roszak deixa de fora quase todo o problema dos valores. E a verdade é que os "emigrantes da civilização totalitária" não fogem só à Tecnocracia e suas sequelas (industriocracia, burocracia, aristocracia, etc..), à sociedade de consumo e seus vícios, seus crimes. Fogem também e por exemplo (um entre muitos) àquela suprema hipocrisia - demagogia que ameaça eternizar-se - que é a antinomia entre sociedade e indivíduo, que é o conflito entre teoria e prática.

Eu sei, Urbano, que a dialéctica o pretende também: mas permito-me duvidar seriamente que a dialéctica tenha conseguido ser até agora (salvo algumas excepções) algo mais do que uma teoria mais, e tenha conseguido muitas vezes ou apenas algumas obviar a essas e outras antinomias. No fundo e enquanto não radicalizarmos a Viragem, o homem da Abjecção europocêntrica sofrerá sempre de divórcio entre teoria e prática, entre sociologia e psicologia, contradição esta que, por sua vez, irá originar muitas outras sub-contradições, e seja qual for o sistema económico implantado.

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Outro vector bastante omisso em Theodore Roszak é o sistema hierárquico em que o poder se organiza para não deixar de ser poder. Se é verdade que os melhores dos mestres nos têm assegurado que se marcha para o desaparecimento do Estado, os ''hippies"' ainda não viram isso e por isso dizem "good bye, bye" e nem sequer levam bagagem. Nem saudades.

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Não vou alongar a enumeração dos vectores culturais que definem a Abjecção, muito para lá do político e do económico, mas a verdade é que estes - o político e o económico - estão longe de esgotar a totalidade do problema humano.

Os "hippies" podem ser acusados de tudo, menos de reaccionários. Porque o mais importante neles, é o mais importante de uma revolução seja ela de caixa alta ou baixa., e quer nos dêem ou não com a matraca por dizermos isto: o que eles exemplificam, acima de tudo, é a total revolta contra o total totalitarismo; é o direito à heterodoxia, à heresia, à variabilidade e diversidade de caminhos humanos; o que eles exemplificam - e nesse aspecto o seu contributo é não só único e insubstituível como o mais importante dos próximos tempos futuros - é o direito aos desenvolvimentos paralelos; o que eles personificam é o anti-racismo a todos os níveis e em todos os campos (incluindo o racismo marialva e machista, o racismo da beleza física em que não há nenhum romancista da Abjecção que não se tenha esparrelado de barriga).

Porque a Abjecção se caracteriza sempre, e exactamente, pela uniformidade dogmática, pela rasoira burocratizante, pelo uni-linearismo de oportunidades, pelo racismo expresso ou latente nas relações humanas, pelo fascismo de esquerda e de direita.

Existe sub-desenvolvimento, porque a pilhagem, a pirataria e a colonização europeia não deixou que, por todo o mundo, os grupos, povos, passes, idiomas, culturas tivessem todos o seu próprio desenvolvimento e que houvesse por isso vários desenvolvimentos simultâneos. Ainda hoje sofremos da pecha totalitária mesmo quando nos dizemos tolerantes, progressivos, humanistas: ainda hoje queremos decretar um modelo único de desenvolvimento para todos os povos e lugares, sob o império da chamada ciência.

O diferencialismo de Henri Lefèbvre demonstra bem porque ele teria de ser um dissidente do partido, um marxista heterodoxo, um herege do Sistema. O diferencialismo opõe-se frontalmente a uma concepção de socialismo que, herda ainda da Abjecção anterior o vício da uniformidade exclusivista.

A Nova Utopia é, além de radicalista, diferencialista e reclama que a noção de paralelismo, relatividade e simultaneidade se estenda a tudo, se universalize. Aí, sim, no seu anti-totalitarismo a Utopia é ...totalitarista.

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Queria agora comentar mais uma afirmação de Urbano Tavares Rodrigues, na sua carta de resposta á minha primeira: "convenhamos em que não podemos, em que não poderemos todos nós ser contemplativos, ser criaturas de amor."

Mas é exactamente isso, amigo Urbano, o que diz o diferencialismo, Roszak, os hippies, eu e quem mais ande por aqui: tal e qual, não podemos ser todos contemplativos, como não podemos (nem devemos) ser todos homens de acção; mas isso equivale exactamente a afirmar que cada um desempenha, na espiral cósmica da evolução, o seu papel e a outro não devem obrigá-lo; isso equivale ainda a dizer que, se há quem se ocupe de política e economia, nem todos devem ficar obrigados a ocupar-se de política e de economia (este um dos motivos claríssimos porque me ocupo de antropologia, moral, ecologia, revolução humana, relações humanas, etc. exactamente porque me parece haver já muita e boa gente ocupada em tudo menos nisso: em produção e produtividade, por exemplo, menos em como fazer a revolução das relações humanas).

Nem mais nem menos do que diz, amigo Urbano, é o que diz o diferencialismo: o nosso vício mais comum é, quando adoptamos uma filosofia, uma crença, uma certeza, querer impô-la urbi et orbi, espalhá-la, torná-la comum a toda a gente, impô-la. È o vício do proselitismo, é a outra face do racismo, da intolerância e da violência, é o outro vector da Abjecção que muitos responsáveis se furtam de ver e criticar, por comodismo ou conveniência de ocasião, por oportunismo, enfim.

Nenhum utopista - nem Roszak, nem os ''hippies'', nem eu - quer impor nada a ninguém. Os fanáticos prosélitos disto e daquilo é que parecem querer. E com que fúria, às vezes. E com que sanha! E com que valentíssimas matracas! Quem fala de diferencialismo, de anti-racismo, de tolerância, de desenvolvimentos paralelos, de imaginação, de heresia e de heterodoxia, tem que aprender (se ainda não aprendeu) a perder esse vicio básico de moldar todo o mundo à imagem e semelhança do seu grupo, clã ou partido. De outra coisa não se ocupa a Nova Utopia de Edgar Morin, de Henri Lefèbvre, de Teilhard de Chardin, de Allan Watts, de Allen Ginsberg, de Norman Brown, etc, etc

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Importante, ainda, para situarmos a nossa polémica num contexto mais vasto que a oriente e nos oriente, é sublinhar isto: Theodore Roszak não aparece por geração espontânea, nem a sua Contra-Cultura surge agora, pela primeira vez, a propósito dos "hippies".
Ele, Roszak, é apenas um dos mais recentes elos de uma imensa Corrente (ou contra-Corrente) , Contra-Cultura tem havido desde que, num país chamado Hélade, surgiu com o nome de Logos algo que logo se tentou impor a todo o mundo e a toda a gente como único modelo, como "sangrenta" ditadura.
A partir daí, todas as polémicas são apenas sub-polémicas da Grande Polémica. E a nossa também, talvez, amigo Urbano. A partir daí, tudo quanto se opusesse ao Logos seria rotulado (e com que violência!) com nomes de irracionalismo, obscurantismo, ciências ocultas, falsas ciências, magia, alquimia, religião, mito, etc, etc.

Como se vê, a polémica vem de longe e passa pelos trágicos gregos, pelos filósofos pré-socráticos, por Sade, por Frederico Nietzsche, por Lautréamont, pelo Alfred Jarry da patafísica, passa pelos alquimistas e magos, pela Cabala, passa por Giordano Bruno e Galileo, passa por Mestre Eckard t, pelos românticos alemães, passa pelo hermetismo egípcio, ato passa pelos existencialistas, pelos socialistas utópicos, por Platão, Campanella e Tomás Morus, por André Breton e os surrealistas, pelo realismo fantástico de Louis Pauwels e Jacques Bergier, pelos "beatnicks", os mais directos e próximos antepassados dos "hippies".

Afinal, vista a esta luz, nem a (nossa) polémica tem nada de novo, nem de estranho, nem de complexo. Trata-se apenas de confrontar duas posições em confronto desde que existe Cultura e, portanto, como seu termo dialéctico inevitável, Contra-Cultura.

Sempre a cultura de padrão A tem segregado o seu próprio anti-veneno, normalmente chamado crítica, mas a que agora, rigorosamente, deve chamar-se Contestação, desde que os analistas todos do padrão A resolveram, mais uma vez, anexar a palavra crítica e adoptá-la a conceitos que com ela não coincidem nem tem nada a ver.

E a Contestação só pretende banir a ditadura (cultura) do Logos A, em que temos vivido (???), hoje agravada de outras ditaduras: industriocracia, tecnocracia, burocracia, mediocracia (a ditadura dos mass media), quatro apenas e para exemplo.

Daqui não nos devemos, pois, afastar. O conflito entre sociologia e psicologia, como todos os conflitos ou antinomias, não devia existir mas existe, desde que a ditadura da Razão A os instaurou, abrindo a brecha, inaugurando o reino do Anti- determinando o processo de ruptura, dilaceramento, dualismo, drama e contradição que caracteriza a comédia bufa da chamada civilização, que caracteriza o imperialismo da Razão A na sua luta de domínio de tudo o que bole, vive e existe sobre o Universo.

O que Roszak, os "hippies" e algumas minorias mais com eles (incluindo nestas minorias os poetas e profetas e visionários e contemporâneos do futuro de todos os tempos e lugares) pretendem não é uma Contra-Cultura mas várias contra-culturas, não é lutar contra a Ciência mas abrir a Ciência a todas as ciências, experiências, humanidades e realidades possíveis do impossível (nesta démarche, acompanham-nos hoje homens de ciência entre os mais ilustres, Linus Pauling, Wilhelm Reich, Isaac Asimov, Arthur Clark, Charles Foucault, Lévy Strauss, Jean Fourastié e, de uma maneira geral, os mais inteligentes, sensíveis, inventivos dos filósofos da Prospectiva ou dos escritores da science-fiction).

Que o império da uniformidade dê lugar ao da Multiformidade e o do absolutismo ao do relativismo (Einstein).

Que a rasoira dê lugar à diferença, a massa ao indivíduo, o trabalho em cadeia ao trabalho criador, a rotina à iniciativa, a razão A à imaginação (que não é, afinal, outra coisa, e como o demonstra Jorge Luis Borges, do que a razão de outras razões, passadas, presentes e futuras, no globo terrestre ou através das galáxias).

Sempre que a Ciência epiteta de anti-científico o que escapa à sua ditadura ou se opõe à sua (dela) ditadura, está a cometer o sofisma mais divulgado e arreigado da pequena história europeia do europocentrismo. Está a mentir, está a produzir demagogia, está a cometer o crime dos crimes que é travar o ímpeto humano e progressivo para a Utopia. Está a ser, em suma, obscurantista, embora o truque consista exactamente em acusar de obscurantista o que se opõe ao seu obscurantismo.

Essa mentira surge hoje bastante clara, quando uns senhores, em nome do experimentalismo, do estruturalismo ou do raio que os parta, nos martelam a paciência e nos pretendem travar o ímpeto para a imaginação, aos gritos de "ciência, ciência, ciência", a nós, utopistas, que, sem gritos histéricos, sem atitudes emocionais e dramáticas, temos sempre e toda a vida, através dos séculos, adoptado a única atitude científica, racional, tolerante, aberta e progressiva: a que parte de um princípio de tolerância e convivência (anti-racista, anti-segregacionista), onde todas as razões, culturas, individualidades, ciências (ocultas e desocultas) religiões, raças, artes, idiomas, vozes, etnias, experiências têm, terão lugar e devem ter assento logo que o processo descolonizador se acelere e os desenvolvimentos paralelos dêem lugar ao desenvolvimento A que, através da história, produziu o aviltante, abjecto, criminoso fenómeno do subdesenvolvimento: pilhagem, pirataria, escravatura, comércio, exploração do homem pelo homem, extermínio de culturas, genocídios, etnocídios e homicídios, eis o que nos ensina uma breve filosofia da história ou filosofia desta civilização que pretendeu impor-se a todas as civilizações como se única fosse e o umbigo do universo.

Contra o umbigo do Universo é que está Roszak, os "hippies", eu e mais quem queira alinhar na Nova Utopia. Para que o Reino da Necessidade dê lugar ao da liberdade, para que desapareça não só o conflito entre sociologia e psicologia mas todos os conflitos, guerras civis, violências, crimes, torturas da Abjecção, que o vício básico do Logos imperialista instaurou sobre o planeta Terra, parcela diminuta e provinciana de um Cosmos por descobrir.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, na sequência do que teclei em roszak-6 , não sei se foi publicado, quando, como e onde: continua a levar a data em que foi produzido. Uma coisa é certa e quase constante, o ano de 1971 foi, para o sr. Afonso Cautela, o ano das grandes e maiores e melhores intuições...
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Monday, August 14, 2006

C.PAVESE 1968

1-1- pavese-1-ls> quarta-feira, 25 de Dezembro de 2002-scan

DISPARADO O TIRO, VERIFICADO O ÓBITO

15-8-1968 - Disparado o tiro, verificado o óbito, cumpridas as formalidades legais, que outro gozo se pode comparar ao de procurar, nos escaninhos do escritor suicidado, os despojos da sua insensatez e os restos, salpicados de sangue ou simplesmente sujos de pó, d e uma solidão condignamente cumprida?

Vem depois a tentação de nos compararmos ao falecido, nos seus infortúnios e esse lisonjeiro confronto talvez explique a voga que as memórias e os diários continuam a ter, as edições que a indústria cultural exige cada vez em ritmo mais acelerado. Porque - não o esqueçamos - há o consumo e os consumidores.

Pavese, no meio de Malraux e de John dos Passos, pode parecer matéria idêntica, mas ao contacto logo se vê que, apesar de tudo e das aparências, o escritor que o foi por fatalidade difere dos que o são por divertimento ou complemento de outras actividades remuneradoras, Verbi gratia, a de ministro.
Ler Pavese e o seu «Ofício de Viver", trabalhoso esforço que se não conta pelas horas gastas (sai-se fora do tempo quando há um livro destes no caminho!) é tarefa idêntica à de escalar o diário de Kafka ou as confissões de Rousseau. Por aí, começamos um pouco ao de leve a perceber como a literatura é o inferno por excelência dos que não tiveram nenhum céu (ideológico, por exemplo) onde acolher-se. Que a literatura mata, embora muitos vivam dela. Que a literatura é um ofício tão terrível como o de viver, e reciprocamente (embora muitos vivam e peçam bis).

Pavese para ajuda dos dias desconfortáveis - quem pode furtar-se à pena de o ler como um refúgio da tempestade que nele mesmo eclode? Paradoxalmente, uma tempestade onde queremos perder-nos e de que nenhuns receios humanos logram afastar-nos.

Matou-se ele num quarto de hotel, porque odiava o corpo. Acontece. Sem esgar, como se escrevesse as páginas tranquilas de uma novela, arredou de si a mesa, disse que não estava para mais e foi-se. Preparou aquilo com tempo e requinte, e foi-se. No dia anterior ainda apontara no diário a última das palavras possíveis. Esgotara-se com elas. Acontece. A sós com as folhas brancas de que nasce um livro. A sós consigo. Sem tradução para a vida de todos os dias e de toda a gente. Sem complemento ou ponte. E no entanto banal. A coisa mais banal do mundo. Só.

Ficou para nós O Ofício de Viver - documento do que poderia ter sido esse encontro de Jacob com o Anjo, de Pavese com o Anjo
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JOSÉ RÉGIO 1955

1-6 – 55-08-15- ls> = leituras selectas - régio-1-ls> leituras do ac

A LETRA E O ESPÍRITO(*) OU «A SALVAÇÃO DO MUNDO»,
TRAGICOMÉDIA DE JOSÉ RÉGIO, Lisboa, 1953

(*) Este inédito de Afonso Cautela poderá ter sido publicado muito parcialmente, ou no «57» ou na revista «Ocidente»: o manuscrito tinha uma nota à margem, dirigida a António Quadros, director do jornal «57»: se servir, devolva para rever e refundir.» Acho que não foi refundido nem devolvido nem publicado

Ferreira do Alentejo, 15 de Agosto de 1955


Se tivéssemos de escolher uma personagem que polarizasse a significação tragicómica da peça, iríamos direitinhos à Rainha-Mãe, louca, que diz por mais de uma vez: «Bem sabes que tanto choro como rio».
E quando o Profeta deslinda, na cara de todos, a comédia dos ministros do Rei, ele, que também consideravam louco, recebe os aplausos da Rainha-Mãe: «Gosto do que ele diz! Gosto do que ele diz! Percebo pouco, mas gosto!».
Percebia a significação sibilina das suas acusações e das suas profecias. Os loucos entendem-se uns aos outros, assim como a linguagem da Cítara (arquétipo nítido da poesia) é a única que «sabe dizer» as coisas que doutro modo se não dizem.
Tem esta peça evidentes pontos de contacto com O Príncipe com Orelhas de Burro(1942) ; a cítara, ou antes, a CÍTARA, substitui aqui a viola do cego. E a Aia, que chegamos a supor muda, é bem o equivalente do violinista cego.
Fomos ao rol dos personagens no princípio do livro, na suposição de lá encontrarmos a Cítara incluída; de facto, é ela uma das personagens mais significativas, a única que «diz coisas». A fala dos outros, é um indistinto coaxar, que se não divisa nem entende.
A Rainha-Mãe pede ao Profeta: «Fala! Tu sabes dizer, és como a Célia....». E a Célia é muda. A verbosidade da Rainha louca propicia a apreensão do mistério, através de palavras que os ministros sensatos e, por extensão, os leitores e espectadores sensatos, apenas toleram e de que desdenham. Por isso, a sua incontrolada maneira de se expressar atinge uma patética altura de que fica aquém a serenidade do profeta.
Essa altura só nos poderá ser dada na representação, quando todos os elementos cénicos nos ajudarem a reconstituir a figura total da Rainha, símbolo dramático, ou melhor, tragicómico sobre que toda a peça se apoia. De facto, é ela a única nota de teatralidade , com suas intervenções bruscas e inesperadas.
O Rei representa o mesmo papel de mediador entre o céu e a terra que já n’O Príncipe com Orelhas de Burro assumira.
Di-lo o Chefe do Partido Aristocrático:«Há muito que Vossa Alteza sonhava com tais loucuras.» A acusação, despedida para ofender e ferir fundo o Rei, certamente o não turbaria , bem como à Rainha-Mãe se lhe não importava a loucura: « Eu bem sei que sou maluca, bem sei ; mas sinto-me bem assim...»
Aquilo que os homens «demasiado inteligentes» supõem ser uma acusação, constitui afinal uma glória ou, no menos, uma resignação.«Todos os mortos chamam doidos aos que ressuscitam», diz o profeta com ponderação e profundidade.
Mas, por outro lado, é certeira a afirmação do mesmo ministro, quando afirma:
«Está por demais provado que vos faltam as primaciais qualidades dum verdadeiro chefe.»
Sim, será isso verdade, na medida em que for verdade, também, a glória de ser louco como os outros: o Profeta, a Rainha, a Cítara...
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Aqui se resolverá o desfecho das teses que José Régio vinha opondo desde o início: terminará ele com um discurso (afinal um discurso, afinal a letra com que será preciso, no último instante, condescender , apesar do Quinto Evangelho ser um livro em branco) ou com a abdicação?
É o que iremos ver e o que nos habilitará à interpretação do pensamento que anima e inspira toda a obra de Régio, um pensamento de seriedade e resgate do homem pelo espírito.
Se é por um discurso, por a letra, apesar de tudo, por uma doutrina, que Régio se decide , há que conhecê-la, pois ela se desvia da dos ministros, de cada uma em particular e se filia talvez em todas elas numa síntese difícil de conceber pelos que por serem «demasiado inteligentes, não entendem nada de nada.» (fala do Profeta, pg. 272) a síntese talvez que todo o livro pretende e que, por milagre da arte, realiza.
Não sou eu quem o diz, é José Régio, pela boca de Jerónimo: «Também eu há muito desconfio das palavras, das doutrinas, das posições, da propaganda... estou farto de bíblias. E, ao mesmo tempo, compreendo que se não pode passar sem elças. Sou um atormentado, talvez um indivíduo supérfluo...».
Supérfluo é que ele não é; como personagem da peça, há que olhá-lo mesmo com uma certa atenção, pois a sua aparição não só muda o curso dos acontecimentos como os explica subsequentemente em muitos aspectos.
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Repare-se na identidade que logo se estabelece (não estamos nós a procurar explicar a obra dramática de Régio à base do seu impenitente lirismo, do seu impenitente pessoalismo?) entre Jerónimo e o Rei, identidade de destinos. A «grande cena muda» de que Régio acentuara a importância na respectiva rubrica, tem, de facto essa importância: «estes gestos, dum e doutro, devem ser perfeitamente simultâneos, sem o que será anulado todo o intuito da cena.»
É de facto assim; a mão que se levanta para o assassínio é a mesma que se levanta para o suicídio. O autor teve necessidade de desdobrar aí o Rei num seu duplo, quer ao mesmo tempo significasse uma espécie de destino que lhe impediu o suicídio real, embora subsistisse o seu valor virtual e simbólico, que se requeria para prosseguimento da dialéctica dramática, e também aquele amparo e companhia, aquele nosso «outro» que em momento graves invocamos , por nossa irremediável solidão.
«Nunca até hoje encontrei quem pudesse fazer meu confidente», eis o lamento dolorido do Rei. Mas encontra-o finalmente e encontra-o em circunstâncias muito especiais, primeiro porque lhe fez a revelação súbita de como é possível o impossível (a tal síntese, morte-vida, prazer-luto, todos os termos que dialecticamente andam desavindos, mas que no momento supremo da criação, da ressurreição do homem, no absurdo, no contraditório suicídio, encontram sua primeira e última razão de ser); depois, porque tem o primeiro confidente (fictício ou, por isso mesmo, o mais , o único verdadeiro, visto que não passa da sua própria face iluminada) para encetar uma jornada de confiança no futuro, motivo de coragem, contra o que um dos ministros já lhe dissera: «O erro de Vossa Alteza não é bem duvidar dos outros, ou das suas doutrinas; mas duvidar de si próprio.»
E confiar em Jerónimo, o que será senão o primeiro gesto de confiança , o primeiro mas decisivo e definidor de toda a sua conduta futura do Rei em si próprio?
Não se esqueça também de que Jerónimo trazia intenções de se suicidar, após ter cumprido o compromisso de regicídio, o que mais uma vez equipara ou equivale os dois destinos.
É Jerónimo que diz:«Talvez a minha história íntima não ande muito longe da tua.» (pg 92) . Essa identidade ou equivalência acentua-se nos outros actos, até ao último na passagem aqui citada da página 290 e duma outra fala de Jerónimo: «Mas o seu espírito destroói aquilo mesmo que vai criando.» Isto significa a preocupação de Régio ainda pela boca de Jerónimo: «O meu espírito é corrosivo. Ou será todo o Espírito que o é?»
Esta advertência nos informa do pirronismo que subjaz, em todos os espíritos verdadeiros, ao lado da crença mais firma. Eis a legenda de toda a peça, a perplexidade-núcleo de todo o drama, a fonte gerescente de toda a aventura do espírito: esperança-desespero.
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Régio teria conseguido a síntese dos contrários? Guardo para mim o que penso, nisto, e deixo à opinião livre de cada um, conjecturar o que sobre o tema capital da peça de José Régio e do nosso tempo se lhe afigurar mais justo. Certo é que já ninguém pode desmentir a actualidade e essencialidade de «A Salvação do Mundo», documento-síntese que bem merecia a sorte de levar ao mundo a sua verdade. Merecia-o Régio e merecia-o a humanidade, que espera, espera sempre...
Parece-nos que Régio pôs o problema da salvação do mundo no seu verdadeiro pé. Não é mentalidade para aceitar qualquer solução simplista e por isso propõe ao mundo que se salve, não mediante as receitas dos vários chefes de partidos, mas mediante o livro em branco que «só pode ser cheio em Espírito e Verdade.»
Se não estamos a trair o pensamento do autor, essa verdade é principalmente a verdade psicológica , íntima, de consciência – a sinceridade – (pg. 19) - e esse espírito é principalmente a poesia, a arte, a religião mística.
Bem sei que estou a estragar com palavras o espírito do autor mas permita-se-me este trânsito, perdoável só porque aqui me declaro recolhido e íntimo leitor do mais ( e que é tudo) que José Régio deixa pressentir mas que não pode reduzir-se a fórmulas.
Também terei de aceitar a sua acusação : «Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas.» Aceito-a e aqui deixo o meu acto de contrição, pela letra desta minha arenga.
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Retorna-se à pergunta: mas o que é, para Régio e para nós, Espírito e que é verdade? . Ouçamos o que nos dizem os seus personagens.
O Profeta, a Rainha e a Cítara (esta, a última a ter a palavra na tragédia, como a melhor depositária do Espírito Puro, sem letras que o constranjam) tomam a palavra mas...nada dizem, e por isso dizem tudo.
Vejamos agora o medianeiro entre os dois impossíveis (a Letra e o Espírito puros, aquele representada pela tacanhez dos ministros e de todos eles o mais tacanho – o Extremista), vejamos agora Pedro da Traslândia, o Rei.
Opta pelo discurso , pela letra, não abdica (o silêncio seria o espírito puro) mas que diz ele?
Antes de mais congratula-se com o seu povo, com os seus «amigos», clamando: «Já vários dos que me cercam desesperam de mim. Vós ainda não. E é isso que me dá nova coragem. Obrigado! Amigos... »
Eis o fundamento da sua ressurreição, pois foi ele um «homem que morreu e ressuscitou, e já não desiste!». É a confiança nos outros, aquele esperança que enquanto houver vida não morre (enquanto há vida, há esperança, diz o povo mas nem sempre os filósofos o imitam) e dá razão de ser à nossa esperança de medianeiros .
(Aqui nos parece residir o fundamento social da obra de Régio, o «egotista» , o «narcisómano», como os críticos incompreensivelmente o têm classificado. Egotista o poeta de A Chaga do Lado? É preciso que os senhores críticos aprendam a ler com atenção o que lêem).
Mas não esqueçamos que, para viver, é preciso morrer primeiro, só quem morre pode ressuscitar «homem novo». A única justificação de Pedro (porque agora era Pedro e não já o Rei) que se impunha diante do povo era o testemunho de humanidade (da fraqueza, da desistência e do subsequente recomeço «cheio de boa fé e boa vontade.» , sem mais ciência nem sabedoria.
O Rei conclui: «(...) Receio já estar usando palavras a mais, porque isto não é um discurso político...».
O rei coloca-se assim entre o Espírito (o Profeta, a Rainha e a Cítara, que nada dizem) e a Letra (a verborreia dos ministros), na plataforma humana e, assim, sinceramente se confessa. (lembre-se o papel que a sinceridade desempenha na obra romanesca, crítica e poética de Régio, explicitada n’O Príncipe com Orelhas de Burro e neste livro à pg. 79).
É esse acto de sinceridade o que o Rei encontra mais necessário para inaugurar o seu novo reinado, apesar de um dos ministros ter opinado do primeiro discurso do Rei (« O mais sincero que fiz até hoje», diz ele, pg 18): «Ninguém entendeu a comunicação de Vossa Alteza, que era demasiado pessoal.»
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Talvez por demasiado pessoal (e na terminologia que temos vindo a usar , diríamos por demasiado espiritual) também a obra testemunhal (novelística e teatro) de Régio tenha sido várias vezes mal interpretada, o que não é novidade para ele.
Mas pode perguntar tal como o Primeiro Ministro: «Que pretendi eu sempre ensinar-vos senão o amor da verdade?».
Tememos circunscrever nalguma definição demasiado estreita ou demasiado ambígua a intenção do autor, mas não resistimos à tentação de invocar aqui o que nos parece ter grandes afinidades com o pensamento agente do autor; sim, porque a verdade é que Régio não é um céptico e se desdenha a acção política, acredita na acção espiritual.
Como vamos chamar-lhe? Acção pedagógica? E porque não, se a entendermos na amplidão do espírito e não na mesquinhez da letra?... (Recordar artigos de Régio no «Diário Popular»).
Falar de acção pedagógica não é falar de livros, nem de escolas, nem de doutrinas, nem de «programas de salvação». E em todo o caso as doutrinas não são más em si mas no uso estreito que se faça delas. Eis o que se nos revela, como chave para toda a interpretação restante, à pg. 51.
«O que talvez seja impossível» é ainda a hesitação do Rei, a hesitação de Régio, a hesitação de nós todos, afinal.
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A síntese impossível, amor-ódio, vida-morte, prazer-dor, esses termos refundidos na obra de criação, melhor , na ressurreição do homem. O homem, «se vem a salvar o mundo é salvando-se a si próprio.».
Eis a única lei válida e universal, que Píndaro formulou : «Ser o que se é.» Quem o diz? O Chefe do Partido Democrático.
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Será preciso perguntar ainda: O teatro de Régio é um teatro de ideias? (Assim como a sua novelística?).
Um teatro intencional? Um teatro de propaganda, mesmo no bom sentido como quer o crítico da revista «Brotéria»?
Talvez , mas repare-se na feição particularíssima das suas ideias, das suas intenções e da sua propaganda.
Não será o pensamento expresso apenas um antelóquio, uma introdução à sua obra poética, a única a que verdadeiramente se poderá aplicar o conceito regiano de arte como «expressão que se basta e nos basta?»A «única emoção criadora pura?».
A monotonia dos seus versos epigramáticos e satíricos que já alguém notou (David Mourão Ferreira) e a dos temas do seu teatro e da sua ficção, que agora podemos notar, não glosam afinal todos um único e só pensamento, uma única e só propaganda, uma única e só intenção?
Dir-se-á então que só a sua poesia ascende a uma validez de arte? Talvez, mas nem só a ele teria de se aplicar essa fatalidade, mas a todos os poetas que tentem qualquer outro género e submeter-se a outras leis que não sejam as do seu génio lírico.
Repare-se como nesta peça tudo é claro, enquanto não intervêm os loucos, os poetas. Enquanto a Rainha não aparece, assistimos à pura controvérsia intelectual, uma espécie de forum doutrinário dentro duma peça teatral. E enquanto isso, não se realiza a integração poética, por mais que se insinuem expressões de certa ambiguidade e que pressupõem o mistério.
Todos os esforços se assimilam a um só: justificar-se, explicar-se, prefaciar-se o poeta e confessar-se humanamente aos seus amigos em quem ainda confia. Assimilemos Régio com o Rei e aí teremos, sempre, fazendo publicamente o seu testemunho de personagem régia mas humana, para que todos o entendam, lhe entendam o que ele aprendeu com o profeta (Régio místico), pois só isso importa no trânsito a caminho do Puro Espírito, esse que não se explica, esse que só o tanger das cordas de uma Cítara (Régio lírico) sabem exprimir aos doces ouvidos que o sabem escutar ( e «que se deixa de escutar só porque há ouvidos» - Fernando Pessoa).
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Em termos dialécticos (isto é, não poéticos) eis o que aos homens importa transmitir-lhes. Como profeta dum conceito sui-generis de salvação do mundo, vem Régio fazer também a sua propaganda, a propaganda de renegar todas as propagandas, inclusivamente a dele...
Mas com isto, dando voz a uma vigorosa intenção pessoal, não terá ele mais do que exaltado um egotismo, uma preferência sem universalidade e sem viabilidade humana, geral?
Não será ele o megalómano, o cabotino, que lhe chamaram críticos azedos?
Julgo que não. Ao por e repor o seu próprio problema, Régio formula o problema humano, a perplexidade do mundo que se quer salvar. Régio quer dizer-nos de que só o Espírito salva mas para isso teve de se socorrer da letra, que ele procura afeiçoar ainda da maneira menos rígida, menos formalista, menos intolerante, menos perigosa em face dos condicionalismos ideológicos e mais acessível à turba: o teatro, o romance, de ideias evidentemente.
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Mas teremos nós visto a que distância se situa Régio de toda a literatura de propaganda ( que tudo o que for de poesia há-de ser propaganda de qualquer coisa, toda a literatura é pedagógica, especialmente a literatura crítica)?
Aceitamos, aceitando o convite de Régio, todas as doutrinas, todas as verdades, todas as letras, não aceitando nenhuma em particular, porque as aceitámos a todas em espírito, forjado num pensamento personal, síntese de todos os contrários, encruzilhada de todas as direcções, infinito de todos os finitos.
Eis a utopia. Eis a síntese possível do impossível, dirão os dialécticos: mas abençoados os que viram e não se limitam a gozá-la mas degradam (pode existir redenção sem cruz?) grande parte do seu talento lírico, disponibilidades estéticas, portanto, dando a mensagem profética aos homens de boa vontade (eticismo, pedagogismo ou humanismo continente, afinal, na obra regiana).
Que Régio não tema pela efemeridade que um tal papel de mediador (não é Pedro da Traslândia o mediador?) , de testemunho, de pedagogo, de profeta e de mensageiro lhe pode fazer sofrer a sua obra de esteta. Cumpríssemos nós todos , com alegria, a missão que a todos cabe de redimir o homem pelo espírito.
Não é este o menor mérito da última obra de Régio: dar a cada homem a coragem de ressurreição, sem distinções de classes ou doutrinas, de épocas ou de raças, mas de todos os homens de «boa fé e de boa vontade».
Ferreira do Alentejo, 15 de Agosto de 1955
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