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Wednesday, December 07, 2005

POETAS TANG 1990

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9-12-1990

POETAS CHINESES DA DINASTIA TANG (SÉCULOS VIII-X)INSPIRAM ANTÓNIO MAGALHÃES

«A MINHA PÁTRIA NÃO É A LÍNGUA PORTUGUESA»

O poeta António Magalhães, que publica o segundo livro aos 57 anos, não esconde os segredos da sua arte. Quer nas declarações que prestou a «A Capital», quer no próprio livro, «A Flauta na Falange», que a editorial Caminho acaba de lançar, repleto de epígrafes e citações, ele apresenta múltiplas pistas para ajudar o leitor no percurso de uma obra que, no mínimo, se deverá considerar complexa embora não complicada, tal como o I Ching e o Tao Te King, que o autor tem como referências perenes: « Se há coisas que rejeito na minha poesia - afirma Magalhães - uma delas é o hermetismo.»
De facto, a palavra que ele prefere (e profere várias vezes) é «limpidez», sendo esse um dos objectivos desta sua incessante procura das origens e raízes ideográficas da linguagem. Fala com verdadeira paixão, por exemplo, dos poetas chineses (da dinastia) Tang: «Gostaria que o meu livro fosse considerado como um livro muito antigo, um pouco ao nível espiritual e até estilístico dos poetas Tang, entre os séculos VIII e X, um dos períodos áureos da cultura chinesa e universal».

ASSUMINDO INFLUÊNCIAS

Assumindo sem receio nem vergonha as influências literárias que recebeu, conta-nos rapidamente como chegou aos poetas Tang:«François Chang, de origem chinesa e professor universitário de cultura chinesa em França, foi quem me iniciou, há anos, nesta poesia. Autor de várias obras sobre artes plásticas chinesas, foi o seu livro «L'Écriture poétique Chinoise» aquele que mais me influenciou. A tal ponto que aprendi um pouco de chinês medieval e um pouco de japonês, para poder ler no original, entre outros, alguns dos mais conhecidos desses poetas como Li Po, Wang Wei, Tu Fu, etc.»
Este «contágio» da espiritualidade chinesa, no entanto, não aconteceu por contacto directo, como o próprio António Magalhães explica, evocando os casos de Wenceslau de Moraes e Camilo Pessanha, também apaixonados pela cultura chinesa mas porque viveram lá: «Ao contrário desses nossos orientalistas, nunca vivi em Macau e nunca fui à China nem ao Extremo Oriente» sublinha este médico de profissão que, decididamente, em matéria de cultura poética não parece advogar a via intravenosa.

Pluralidade de sentidos: a supermetáfora

Fazendo justiça a uma boa antologia de poetas Tang, traduzidos e apresentados por Gil de Carvalho, na editora Assírio & Alvim, o autor de «A Flauta na Falange» aponta mais algumas nuances que particularizam o seu caso, sem deixar de assinalar, nos poetas referidos, «a sua rede metafórica tão rica, que em período algum se atingiu tal riqueza.» E acrescenta: « Não me interessa apenas escrever mas também conhecer os mecanismos da escrita, os diversos processos que eles usaram».
Partindo do ideograma, em que se baseia a escrita chinesa, não são os «caligramas» à Apollinaire o que visa António Magalhães, mas a pluralidade de sentidos ligados à «escrita ideográfica», uma espécie de supermetáfora. Também não rejeita o epíteto de «poeta experimental», na medida em que toda a investigação poética o é: « Esta escrita ideográfica permite jogos múltiplos de significações, em que os ideogramas se referem e reflectem uns aos outros de verso para verso ou dentro do mesmo verso. Com uma extraordinária economia de meios - muitos poemas são de quatro versos, cada verso constituído por cinco sílabas ou ideogramas -, eles tinham uma pluralidade de significados, o que dá uma grande densidade de conotações ao discurso. Os poetas Tang são importantes, na medida em que souberam aproveitar, de maneira suprema, as possibilidades que lhe dava esta escrita. Permitiram-se as maiores ousadias sintácticas, inultrapassáveis por todas as vanguardas..»
Resta dizer que António Magalhães procura, neste seu livro, não uma «paráfrase» dos Tang mas recriar para a nossa língua os próprios processos estilísticos e mentais que estiveram na base dessa poesia: «É um retomar - explica - desses processos para a nossa língua, procurando a mesma fluidez e limpidez, a mesma liberdade que eles usaram e, aproveitando os significantes da língua portuguesa, tentar apropriar-me da sua incomensurável riqueza.»
E definindo, exclama: «Poesia é isso mesmo: uma das suas funções é uma apropriação da língua. Descendo ao fundo do nosso idioma, descemos ao fundo de nós mesmos mesmos.»

HERANÇAS DIVERSAS

Perante um livro que se reclama de heranças tão diversas e tão «exógenas», a crítica irá ficar, desta vez, não só perplexa e desnorteada mas, atendendo à predominância de fontes orientais, com os olhos em bico. Literalmente falando.
Além dos poetas Tang, a dedicatória inicial do livro «A Flauta na Falange» inclui, de forma algo provocatória porque heterogénea, o poeta Paul Celan, judeu romeno emigrado em França e que viu morrer os pais nos crematórios nazis, Robert Walser, Ozu Yasujiro, Andrei Tarkovski, António Fragoso, Tito Schipa, Krishnamurti, Vergílio Ferreira, António Ramos Rosa, Paulo Teixeira.
Perante a avalanche de dedicatórias e epígrafes justificativas desta sua aventura aos confins da linguagem humana, António Magalhães dá uma última explicação: « A minha pátria não é, como dizia Fernando Pessoa, a língua portuguesa mas a poesia universal de todos os tempos. Daí o meu interesse por múltiplas leituras.» Isto, segundo nos diz, não está em contradição com o propósito de fundo, que é «tentar aprofundar as virtualidades da nossa língua do ponto de vista sintáctico e fonético.» O que explica, em resumo, «os abundantes neologismos que aparecem no livro, que procura essa apropriação das potencialidades da nossa língua.»
Rejeitando o «experimental pelo experimental», António Magalhães reconhece que o «poeta tem que fazer experiências, inventar uma linguagem própria, individualizada.» Curiosamente, o único poeta ocidental - Ezra Pound - onde poderíamos ir encontrar um tipo de preocupações e desafios idênticos aos de Magalhães, é o que não aparece explícito no livro, nem constitui matéria de citação ou epígrafe. Mais um enigma a juntar aos muitos que esta estranha poesia, de extrema (e)oriental limpidez, suscita.
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ROSSELLINI 1972

rosselini-2-ls> quinta-feira, 2 de Janeiro de 2003-scan

A TOMADA DO PODER POR LUÍS XIV - UM PROBLEMA DE ECOLOGIA (*)

[In «A Capital», em 9-12-1972]

"A arte faz-se cada vez mais um meio de evasão, mesmo de decadência. Onde está o pensamento? Não creio que possa haver maior alegria do que a de pensar, e creio que esta alegria pode voltar a recuperar-se rapidamente, se se der às pessoas a possibilidade disso. Desgraçadamente vivemos numa sociedade que faz tudo para converter as pessoas no mais superficial possível.
"Eu, que vivo bastante isolado, espanto-me quando tomo contacto com as gentes, ao descobrir que circulam não só muitas ideias feitas mas também muitas e muitas frases feitas. Parece que as compraram num mercado como se compram objectos de plástico e é espantoso que a maior parte dos raciocínios estejam construídos com base em frases deste género."-
ROBERTO ROSSELLINI

A "ALEGORIA DA CAVERNA"

Não são as aparências que importam, que garantem uma realidade mas a essência, muito elementar e muito simples, que preside, como núcleo dinamizador, como fonte das fontes, como causa rerum a essas aparências.
Nesta opção filosófica de Rossellini, A Tomada do Poder por Luís XIV tem a nítida vantagem de permitir, logo pelo cenário (pelas aparências das aparências), um contraste chocante, gritante mesmo entre as sombras da caverna e a alma, para utilizar a conhecida alegoria platónica.
Se há época, na história europeia, onde as aparências atingiram os requintes da Pompa e onde a acumulação barroca de supérfluos atingiu o absurdo, o delírio, o ridículo da balofa e pura Ostentação, essa época é sem dúvida e por definição, a de Luís XIV.
Das rendas a Versalhes, nenhuma outra se prestaria melhor para afirmar o contraste da alma prisioneira das fantasmagorias e na tentativa de se evadir da ganga das formas transitórias para atingir o núcleo da sua "profunda natureza". A antinomia do fundo e da forma não é em Rossellini uma oposição académica, como seria por exemplo entre os teóricos do neo-realismo: é a força que dinamiza as relações das suas figuras, os seus rasgos e crimes, a sua santidade ou a sua velhacaria.
Qualquer de nós - observador superficial, que só às máscaras e aos disfarces atende - terá a tendência para classificar de ridículo aquele rei e a sua corte, e sobre ele fazer recair o ódio que à consciência de hoje um tal espectáculo de exagero faraónico pode suscitar.
Não assim Roberto Rossellini, cujo "parti pris" é outro, mais vasto, mais fundo. Não se fica, enquanto observador, narrador e historiador, pela superfície dos factos, eventos, fenómenos, máscaras, cores, disfarces e fachadas, mas vai ao fundo e à essência das figuras e das situações. O seu trabalho é o de afastar as aparências, as máscaras, os sintomas, os véus e as rendas, para lhes encontrar uma explicação e, quase, uma justificação. Para lhes apanhar a determinante decisiva. Para lhes encontrar a causa da causa. E encontra-a.
Luís XIV aparece-nos inteiramente motivado: antes de mais e acima de tudo, pelo meio ambiente. Rossellini faz-nos ver como o "habitat" modela um comportamento mas também como um comportamento pode e deve (apesar de todas as limitações e sombras que o constrangem) reagir sobre esse "habitat" e contribuir, com um pequeno degrau, para a evolução da espécie a caminho da luz.
Um pouco como na espiral de Teilhard, para Rossellini o homem caminha da barbárie para a cultura, das trevas para a luz, do tosco para o perfeito, do opaco para o transparente, do sintoma para a causalidade verdadeira. E o "entourage" de um personagem, se é verdade que inevitavelmente o modela, dá-lhe também a "chance" de se afirmar no caminho da luz, da perfeição, da cultura, da liberdade; dá-lhe também a "chance" de evoluir; mas o que para Rossellini nunca pode ser invertida é a ordem e prioridade (é isso, para ele, o mal): e tomar a nuvem por Juno, o efeito pela causa, o sintoma pela doença, leva ao erro, ao mal, ao pecado.
O que estiver em erro, ajuíza então erradamente e classifica de criminoso aquele que é apenas produto de um meio "criminogéneo", de doente o que é apenas produto de um meio "patogénico", de malvado o que é apenas produto de um meio gerador de malvadez.
"O povo deve depender do seu Rei, como a Natureza depende do Sol", diz Luís XIV a Colbert. A Natureza, em sentido lato, quererá significar, em termos modernos, o que tenho vindo a designar por "entourage", "habitat", "meio ambiente".

DEMONSTRAÇÃO PELO ABSURDO

Rossellini desenvolve airosamente no seu filme a conhecida técnica matemática conhecida por "demonstração pelo absurdo".
Pelo exaspero das aparências, levadas ao requinte do exagero e da pompa balofa, a essência ou realidade (o que ele chama "a natureza profunda das coisas") torna-se-nos quase uma necessidade física. Qualquer das sequências capitais em que se divide o filme, mas especialmente a última - a ceia real assistida por toda a corte e "sustentada" por um exército de criados - vistas fora do contexto, da corrente sintáctica do filme, são apenas uma exibição de fatos, mesuras, cabeleiras (experimente-se entrar na sala escura uma hora depois do filme ter começado e registe-se que impressão terá esse espectador retardatário); na corrente geral da narrativa, porém, estabelece-se entre as aparências e o seu contrário, entre o espectáculo e a alma, - a simples essência da vida – um contraponto dialéctico incessante.
É como se pelo absurdo das aparências grandiloquentes, se nos demonstrasse a verdade da essência, da "natureza profunda das coisas".
O cinema terá mostrado centenas (milhares) de figuras ilustres nos seus leitos de morte; dezenas de cineastas terão filmado os últimos instantes de personagens históricos ou de ficção, movidos porventura por propósitos de realismo.
No entanto, as sequências que em A Tomada do Poder por Luns XIV descrevem os últimos instantes e depois a morte do Cardeal Mazarino, são a total reinvenção da conjuntura.
O realismo de Rossellini, para lá de uma poderosa, devoradora absorção do essencial (da corrente de vida e humanidade que subjaz ao ouropel, aos costumes, ao específico de época, classe, cultura), é ainda um realismo de pormenorização. Um realismo que reconstitui, pela imaginação, o pormenor característico.
Uma pergunta que obsessiona Rossellini e que certamente obcecará muitos de nós: como se passaram efectivamente as coisas com os nossos irmãos da Idade do Ferro, com Sócrates, com S. Francisco de Assis, com Luís XIV, com o general della Rovere?
Na pormenorizacão das aparências, tanto como na sintonização da essência, ousaria dizer que Rossellini é, depois de Fernão Lopes, como pintor de pormenor, o maior cronista de época de todos os tempos... Com a vantagem, sobre Fernão Lopes, de ter uma câmara de filmar e, ainda, a soberana vantagem de não ter assistido aos eventos: imaginar é a grande maneira de acertar em cheio na realidade que se pretende descrever.

A LARVA NO CASULO

Assim fica definido, também, o que os eruditos críticos da especialidade, já assinalaram neste génio do cinema: o seu classicismo (o seu sereno domínio da técnica e da linguagem cinematográfica) e o seu modernismo, expresso, quanto a mim, principalmente pela sua intuição "ecológica" da realidade: ele nunca vê um personagem, um comportamento, um grupo, desligado do meio que o gera, explica, modela, agride e até certo ponto justifica.
O espectador sentirá certamente um arrepio de horror, ao imaginar-se rei naquela cama de docel, cerrada por cortinas, acordado por um exército de criados e cortesãos, apanhado, devassado, destruído na sua mais íntima intimidade por dezenas de olhos alheios.
E sentirá no Rei, de repente, apenas um (pobre) ser humano vítima do seu "entourage", martirizado por todas as convenções e mitos que constituem o seu tempo e o seu espaço, a sua época e a sua condição, o seu acaso histórico e a necessidade do lugar a que está radicado.
Sentirá o horror do acaso que nos pode fazer nascer Luís XIV, S. Francisco ou Sócrates, e a necessidade que sempre determina, a partir de baixo, todas as nossas células, logo nove meses antes de ver a luz...
Impossível não o absolver, então, no nosso juízo. Impossível, enquanto ser humano, não o explicar. Impossível não nos ligarmos a ele por uma profunda simpatia humana: de certo modo, nós também pressentimos, cada um no seu meio ambiente, dentro da sua própria fatalidade, quão vítimas somos de costumes e mitos, tão martirizantes como esse.
Aqui radica o humanismo não humanitário de Rossellini. A História, para ele, não é outra coisa senão o sofrimento, o desconforto, a desorientação da larva que se mexe dentro de um casulo que por enquanto lhe fica apertado. Todas as épocas - seja a da Idade da Pedra, a de Sócrates, a de S. Francisco, a de Luís XIV ou a do general della Rovere -, são essas peles dentro das quais a criatura humana se agita e sofre no anseio de se libertar. E se há uma palavra de censura implícita na ética de Rossellini, só pode ser para aqueles que, como Fouquet nada fizeram para, ajudar a humanidade a sair desse casulo apertado e que
totalmente se mimetizam com o meio, se fizeram efeito da causa ambiente, sem eles próprios serem causa (criação) de outros efeitos. Só a esterilidade humana é, para Rossellini, o mal.

SE UM MARCIANO NOS VISSE...

Ao escolher um tema "histórico", outra lição actual se pode explicitar no filme: a
relatividade das estruturas mentais que tornam todos os juízos de valor (logo, a noção de bem e de mal) extremamente precários e efémeros. Hoje, a partir da nossa época, de uma formação intelectual determinada da nossa perspectiva, de um determinado grau de evolução, facilmente emitiremos juízos de valor sobre esses cenários de uma época, sobre as modas, as manias, as convenções.
Mas há, no filme, uma reflexão implícita que nos leva a hesitar em proferir juízos de valor definitivos. É como se uma voz tos segredasse: "E tu, que pensas tu da tua época, das modas de que és vítima, dos costumes em que estás mergulhado e de que não te podes distanciar, sobre os quais julgas ter poder crítico mas sobre que não podes exercer uma visão objectiva?" Modas, no entanto, e modos, que um ser de outra cultura, de outra época (passada? futura? ), de outro lugar, de outro planeta, pode considerar perfeitamente ridículos, condenáveis, estúpidos, anacrónicos.
Aqui a espantosa Modernidade de Rossellini. Direi antes: o seu visionarismo profético. A relatividade das estruturas, a fatuidade dos juízos de valor, a ambiguidade dos sentimentos, a transitividade dos mitos (o homem é um criador de mitos), a efemeridade de modas e de "habitat", tudo isso (e o que disso resulta em catadupa logarítmica define o pensamento de vanguarda que redescobriu o direito de todas as culturas à sua autonomia e à sua expressão.
Há em Rossellini um aviso implícito que podemos ouvir igualmente nos maiores filósofos, poetas e profetas do nosso tempo: se um marciano te vir, a ti, europeu de 1972, lá do seu planeta, tem cuidado, ó petulante mortal, pode ter o mesmo ataque de riso que tu tens ao ver Luís XIV enterrado nas suas rendas até ao pescoço, mergulhado na sua época, esperando pelo décimo sétimo prato de uma refeição que não acaba, pedindo um copo de água numa ordem que se transmite em cadeia a dezenas de criados, roendo enjoado o caroço de uma azeitona e mandando para trás o leitão que o médico da corte lhe desaconselha.

"DOENTES DE PROPAGANDA”

A conhecida indignação de Rossellini contra a degradação da palavra pelo "cliché" da propaganda, encaixa-se perfeitamente nesta ordem de preocupações: a "propaganda" e, de uma maneira geral, os mass media é um dos factores vectoriais que compõem o nosso "habitat".
O eco-sistema do animal chamado homem engloba o que é comum aos outros animais (a Natureza), o que já vem de épocas recuadas, mas também o que é específico do homem moderno e da tecnologia que lhe molda o comportamento, que lhe lava o cérebro, que o manipula e determina.
A propósito do seu "Sócrates", Rossellini teria dito:
"Estamos gravemente doentes de propaganda. Sócrates disse uma palavra admirável ("O Mundo está cheio de opiniões e completamente desprovido de conhecimentos"). Creio que sim. Se dispusermos de conhecimentos, todos os problemas se resolverão, mas, desgraçadamente, não dispomos deles. O que me interessa é saber."
Como estamos a perceber, é inesgotável a torrente de significações a extrair de um filme como A Tomada do Poder por Luís XIV. Assinalei algumas, mas faltava ainda uma fundamental: o contraponto que se estabelece entre passado e presente.
A história está aí não como crónica estática de um tempo ido mas como reflexo permanente da viva actualidade do espectador (e vice-versa). E essa transposição não se faz por analogia superficial, por contraste de efeitos ou sequer por metáfora. A transposição de significações, de forma a servirem para todos os tempos e não só para o tempo histórico definido pela narrativa, faz-se através daquela advertência básica que encontramos no autor de "A Idade do Ferro": definido por coordenadas de tempo e de espaço-tempo, cada "momento" da História exemplariza, na sua efémera relatividade e nas relações básicas que estabelece entre ser vivo e meio ambiente, todos os momentos.
Quer dizer: o que há de idêntico (e nos identifica com eles, portanto!) entre vários momentos históricos (o que há de actualidade ou perenidade nas reconstituições históricas de Rossellini) é o tecido de relações fundamentais que definem sempre, segundo a mesma lei universal, as relações do ser vivo com o seu meio ambiente. É de notar que esta lei universal, respeitando ao macrocosmos, é a única a permanecer, ainda quando todas as leis dos microcosmos culturais se mudam e transmudam.
Mudam as aparências, mas essa lei cósmica (e não já cultural), esse vínculo fundamental (no sentido em que Asimov empregou a palavra "fundamentos"), essa dialéctica das relações vida-meio ambiente, permanece.
Quer dizer: a realidade permanece, por muito que variem os fenómenos, as raças, até as civilizações sob os quais ela - realidade - se actualiza. A "potência" e o "acto", de Aristóteles, será porventura outra das aquisições da cultura clássica que Rossellini revivifica, moderniza. Exacto: actualiza.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas + 5 estrelas, talvez a melhor coisa que ele escreveu em toda a sua vida, foi publicado no jornal «A Capital», em 9-12-1972

Monday, December 05, 2005

VISIONÁRIOS 1972

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ELOGIO DA IMAGINAÇÃO (*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela, perfeitamente normal e superficial, foi publicado no suplemento literário do «Diário Ilustrado», Lisboa, 6-12-1972 ]

Nem será preciso evocar os casos exemplares de Sócrates, Giordano Bruno, Sade, Galileu, Freud, Rimbaud, Lautréamont, Nietzsche e Artaud, para comprovar de como a imaginação – virtude cardial do homem – tem sido quase sempre pouco apetecida pela ordem ou ordens estabelecidas.
Os visionários, contemporâneos de um futuro que quase nunca coincide com o presente onde estão, encontram-se mais ou menos condenados à morte, ao hospital ou ao gueto, perseguidos pelos que, no tempo e no templo, detêm o poder temporal.
Assim, a imaginação, por força da própria história que os seus autores desenham, se liga a uma vivência ou experiência de pessoa, indesligável da obra.
E assim vãos se afiguram os propósitos de a reduzir aos fabricos ou sinais externos da linguagem; embora, claro, sem a intervenção dos signos não exista manifestação imaginativa.
Se entre os mais recentes autores de uma imaginação absoluta, são menos frequentes os casos de fogueira, asilo, hospital ou campo concentracionário, não quer dizer que, por mais subtis, por terem mudado de forma e de táctica, por se encontrarem "actualizados" os processos de trituração e esmagamento não se façam sentir e até de maneira mais drástica, porque menos espectacular.
Porque mais ardilosas são também as formas que dizem representar hoje o reino solar da imaginação, mais difícil se torna distinguir entre o real fantástico e a mera rotina ou pirotecnia verbal, entre o revolucionário e o académico, entre o clássico e o moderno-de-sempre.
Estóico e um bocado ingénuo terá de ser o aprendiz de feiticeiro que, no meio da cultura constituída, não queira perder o pé. Nos últimos tempos, muitas têm sido as armadilhas que, sob o alibi de modernismo, se perfilam para suprimir ou deter exactamente toda a manifestação moderna, a força original de onde brota e se alimenta a imaginação - de um autor ou de um povo.
Os que doutrinam e teorizam, por exemplo, sobre poesia, os que decretam quem é quem não é, quem vale e quem não vale, quem vive e quem morre, os que exportam e importam, os que dedilham o novo romance, os que desenterram sistemas metafísicos, os que se apegam a fórmulas dogmáticas sob a desculpa ideológica de urgentes obrigatoriedades políticas- tudo isso corrompe a esperança, tudo isso concorre para tornar irrespirável qualquer atmosfera de ousio e aventura.
E sem imaginação, a época é de obscuridade, qualquer que seja o nome daquilo em que esse "obscurantismo" procura triunfar.
A escola experimentalista serviria para desculpar fatais esterilidades poéticas, e de sigla para instaurar uma academia, uma escolástica, uma dogmática de onde a imaginação sai cuspida e vexada, esvaziada e vencida.
Não são muitos os casos de imaginação-absoluta com que conta a recente literatura portuguesa (Raul de Carvalho e Mário Cesariny devem citar-se, porque logo ocorrem), e o facto, se pode obter justificação mas não desculpa, num subdesenvolvimento crónico, deveria, por outro lado, alertar-nos para a necessidade, a urgente obrigação que sobre todos os que escrevem impende de procurar saída.
Se a imaginação pertencia tradicionalmente aos poetas, cujo visionarismo os manuais se encarregam de historiar, desprezando e menosprezando, - o que se verificou, em algumas teorias estéticas recentes, foi o desvio e desvirtuação dessa linha digamos comum, aos heréticos de todos os tempos.
E porque, nos poetas, doutrinados por tais escolas, o conformismo começou de sobrepor-se à heresia, é natural que em outros campos da inteligência se procurasse quem exerça o livre trânsito da imaginação.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, perfeitamente normal e superficial, foi publicado no suplemento literário do «Diário Ilustrado», Lisboa, 6-12-1972
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J.L.P.RIBEIRO 1998

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TEORIAS DA VIDA TEORIAS PELA VIDA

ROTEIRO PARA O ESTUDANTE DE NATUROLOGIA

6/12/1998 - Sendo a história das teorias sobre a vida a mais desconhecida das histórias e sendo humanamente impossível, na história da saúde, abranger as centenas de capítulos que ela comporta, proponho-me, como contributo ao curso de Naturologia, rondar algumas dessas teorias e deixar um roteiro que, ano após ano, poderá ser desenvolvido com outros contributos de outros alunos deste curso.
Presumo que este possa ser um trabalho de fundo, até porque tem interfaces muito curiosos com algumas das cadeiras básicas do curso, para não dizer, indirectamente, com todas elas.

a) O mais evidente dos interfaces é com a cadeira de Biologia: constatando o estado de atomização a que chegou a Biologia e constatando os problemas metodológicos que essa cadeira hoje impõe a um curso de inspiração holística (que é o contrário da referida atomização), uma revisão das teorias científicas que à volta do radical «bio» se têm elaborado, poderá moderar, nessa cadeira, a tendência biocrática para reduzir o fenómeno vida a uma sua caricatura microscópica.

b) Há, depois, um outro interface também óbvio e que comecei por referir, que é com a cadeira de História da Saúde: a vastidão deste tema não permite que alguém o domine na sua totalidade. Um curso de Naturologia poderá realizar uma proveitosa síntese de aproximação holística, fazendo das teorias médicas e biológicas o seu núcleo de irradiação ou núcleo duro de estudo e pesquisa.

c) Com uma outra cadeira, a de epistemologia, o interface é igualmente claro e manifesto: é uma ocasião de pesquisar aquilo que a própria epistemologia tem descurado e praticamente ignorado. Consultando uma relativamente vasta bibliografia de epistemólogos, salta à vista essa lacuna: quase todos os livros e autores se debruçam sobre as ciências físicas e químicas, muito menos sobre as ciências matemáticas , ainda menos sobre ciências históricas e antropológicas, até chegar à quase total omissão das ciências biológicas.
Estatisticamente, a epistemologia esqueceu as ciências da vida.
Só por si, isto é um desafio à investigação naturológica, já que representa um episódio extremamente significativo da ideologia que lhe subjaz.

d) Inesperadamente, a Botânica, cadeira que não era suposto ter um interface tão claro e manifesto com estas preocupações de índole epistemológica e ecológica, é a que se revela com o melhor contributo a um panorama histórico e crítico das teorias biológicas.
Pelo menos, nos apontamentos coligidos pela professora Ana Eleonora Telhada, encontramos um longo, minucioso e precioso documento sobre o assunto. Embora limitado a um campo da biologia - a classificação biológica - esse estudo de Henrique Ribeiro, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, em edição da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, deve ser saudado como uma ajuda preciosa ao estudante de Naturologia, que precisa de um conspecto panorâmica dessas teorias como do pão para a boca.
São cerca de 15 páginas que virão dar a este roteiro um enorme incremento. Nele se citam nomes que são particularmente gratos à naturologia e que não era também suposto encontrarem-se num estudo de Botânica: Jean Piaget, Paul Ehrlich e Louis Von Bertalanffy, são alguns desses nomes «inesperados», nomeadamente o último que, embora fundador da Sistemática moderna, anda arredio e desconhecido de todos os cursos e faculdades.

e) Finalmente o interface menos evidente mas efectivo é com a ciência Psicológica.
Poderá constituir uma surpresa (surpreendente, digamos assim...) a leitura de um livro de psicologia clínica, como o de José Luís Pais Ribeiro, «Psicologia e Saúde», editado pelo ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada): o incauto, encontrará o que não julgaria nunca encontrar num estudo de nível universitário: a atenção ao global, ao ecológico, ao factor ambiental e, principalmente, à despistagem das condicionantes, versas e adversas, que determinam o comportamento e portanto a saúde ou a doença.

f) Ao falar de despistagem de factores, entramos em outra cadeira com a qual verificamos outro importante interface: a cadeira de Diagnóstico. De facto, o diagnóstico tradicional, quer em alopatia quer em naturopatia, terá que ser alargado até ao diagnóstico ambiental, ecológico ou ecodiagnóstico.
Coisa rara nunca vista, portanto, em livros e autores que são hoje correntes, quer em terapia médica quer em terapia naturopática.
Com uma única excepção: quem actualmente levou mais longe o diagnóstico a que aqui chamamos ecológico, foi Michio Kushi, nome que ainda não tem honras de figurar nas enciclopédias correntes e que talvez nem sequer esteja na Internet.

NAVEGAR É PRECISO

Este trabalho de «assemblage» que proponho, seria também um roteiro para viajar na Internet e saber se, nesse concentrado de informação, nessa enciclopédia de enciclopédias, alguns dos contributos mais importantes das novas medicinas lá figuram.
É evidente que as omissões têm um significado claramente ideológico: omitir de um banco de dados exaustivo, nomes como :
Michio Kushi
Wilhelm Reich
Josep Levy
é claramente uma prova do sectarismo ideológico que preside à tecnocrática e neutral Internet.
Ou seja, em matéria de informação armazenada na Internet, o problema deixou de ser a informação que há ou não há mas a informação selectiva que nos interessa ao nosso caminho : a naturologia holística e suas dificuldades de implantação, dada a guerra que lhe movem as «velhas tulipas.»
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