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Friday, March 03, 2006

G. VIDAL 91

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[3-3-1991]

AUTORES EM ANTOLOGIA

[INÉDITOS AC ? - Aprontar quando ler mais alguns dos títulos de Gore Vidal - este texto serve apenas de grelha ou base para um artigo definitivo sobre Gore Vidal - vidal 3775 caracteres - 3/3/1991]

Gozar com todos os preconceitos e puritanismos estabelecidos, quer à esquerda quer à direita, poderá ter sido, se é que foi, a intenção primeira e última de Gore Vidal, quando desatou a escrever, em ---, este romance, que ele um dia terá considerado o melhor da sua carreira, talvez ainda no mesmo propósito de humor corrosivo e subversivo em que está escrito «Myra Breckundrige», também traduzido para português e editado na Vega.
O norte-americano Gore Vidal entrou, aliás, na edição portuguesa com armas e bagagens, e parece não esmorecer tão cedo a devoção que por aqui lhe é votada como autor seguramente comercial.
Não só porque, latente, está sempre o misoginismo que em «Myra» é elevado ao cubo, não só porque ele nunca leva a sério o que os sistemas morais decidem tratar com a maior das solenidades, mas porque, essa descontração e bom humor, acaba por ser contagiosa e cativar o leitor.
Aliás, quem, de outra maneira, teria coragem de levar de vencida os seus romances «oceânicos», se não fosse essa piscadela de olho estrutural que estabelece para sempre uma eterna cumplicidade entre escritor e público?
O romance «Juliano», por exemplo, tem 434 páginas na edição Dom Quixote, que já lançou também, do mesmo escritor, o romance «Criação», (604 páginas) e «Washington DC» (---páginas).
A questão, neste panorama estatístico, é que não se trata de mais um autor «tanto faz», quer dizer, que não aquenta nem arrefenta, ler ou deixar de ler.
A carga subversiva da sua obra, o relevo cultural que assumem as suas incursões na história do mundo clássico, romano e pré-romano, fazem de Gore Vidal um terrível eliminador de supérfluos e um dos que ajudam a acertar na muge do essencial.
Há, pois, como objectivo didáctico, que lê-lo, nem que seja à revelia das autoridades policiais e da Associação de Espectadores da Televisão, com sede no Porto.
Eu faria mesmo de Gore Vidal um autor obrigatório para a PGA, devendo ser obrigatoriamente submetidos todos os ministros e pares do Reino.
Para quem não possa, desde já, mergulhar nos dois volumes de maior fôlego acessíveis em língua portuguesa, é que este «Myra Breckinridge» pode servir de estimulante aperitivo. O prefácio do tradutor, António Fernando Cascais, quase nos esmaga de erudição.
Mas quem sobreviver à prova, terá diante de si a mais divertida desmontagem das tripas do sistema a que qualquer escritor já se devotou.
Almodóvar, a esta luz, é apenas um menino de coro envergonhado. Fazendo que o sistema estabelecido se enforque nas próprias tripas (contradições), Gore Vidal inventa o personagem mais provocante que se poderia inventar desde que a trepidante tecnologia da prótese inventou os seios de sílicone.
Mesmo para quem tenha como nós um preconceito de raiz contra o romanesco - a arte de queimar o tempo que nos roubam - , render-se-á ao «romanesco» de Vidal, e isto pela razão simples de que ele é um pensador, um profeta, um subversor de costumes que se disfarça sob a forma de «narrativas de ficção».
Mais do que qualquer filósofo encartado, Gore Vdal põe em questão, desde a raiz, a podre civilização que tanto gozo lhe dá (e nos dá) ver feita em trampa, em m...., que é sua natureza estrutural.
Daí que, ainda irónico, ele tenha falado em estruturalismo a propósito deste seu «Myra»: é que também os estruturalistas podiam muito bem mudar de sexo, graças às novas tecnologias, ficando segundo todos os conformes e ter muito êxito em Hollywood, como o/a Myra teve, não só enquanto foi mulher mas também e principalmente quando passou a ser homem.
***

R. DE CARVALHO 66

raul-1
- notas de leitura – autores em que ele se leu


RAUL DE CARVALHO, POETA ABSOLUTO(*)

3/3/1966 - Hesitei em escrever este artigo sobre Raul de Carvalho, artigo que não pretende ser crítico mas apenas o testemunho de um leitor. Raul de Carvalho pareceu-me sempre um poeta de tal modo evidente e absoluto, de tal modo à prova de análise e de crítica , que difícil ou impossível me parece demonstrar como é e porque é assim. Perante um poeta tão evidente, que dizer? Que fazer? Hesitei e ponderei os argumentos de pessoas utilitárias e práticas, que poderiam classificar de indesejável, importuno ou incómodo o propósito de escrever sobre Raul de Carvalho e todos os problemas que a sua poesia levanta. Ponderei e concluí que, de facto, terei de ser incómodo, importuno e indesejável ao falar sobre Raul de Carvalho, mau grado os argumentos das pessoas sensatas e a razão dos que têm sempre razão (porque não sabem ter mais nada). (...)
Um desses argumentos é, por exemplo, o de que o articulista não deve distrair o presumível leitor com problemas secundários, quando há problemas vitais a tratar e a resolver; nem desmoralizar as massas com artigos sobre poesia e poetas "decadentes"; nem complicar deliberada e "demasiadamente" o que é simples. Há um dever de urgência - dizem os sensatos - para quem escreve relativamente a quem lê. Não parece - dizem - que se deva perder tempo (e fazê-lo perder) com escritores líricos ou (ainda por cima) místicos, quando uma doutrinação "realista" (dizem eles) é agora mais necessária e urgente do que nunca.

De outro ponto de vista - insensato -, porém, havia a considerar isto: tema em que os críticos não gostam de pegar - porque difícil, proibido ou perigoso - eis precisamente o tema em que se deve pegar, quando se não é nem crítico, nem sensato, nem realista. E eis porque me pareceu útil, mesmo muito útil, testemunhar sobre Raul de Carvalho, poeta absoluto.

Em Raul de Carvalho, a constante que chamaríamos mística, na sua obra, sugere uma série de comentários generalizáveis aos escritores que, sem partilharem uma crença ou religião organizada, se confessam religiosos. Eis um dos temas perigosos e eis onde valerá a pena ficar algum tempo, gastar algumas palavras.
Diga-se, entretanto, que uma atitude como a sua, tem tudo e todos contra si, nada nem ninguém a favor. Nada mais incómodo para as religiões organizadas do que os espíritos "religiosamente livres" ou "livremente religiosos". E nada mais importuno também para os não religiosos. O deus dos poetas - espeleólogos de um absoluto que é deles e é lá com eles - não é o deus das igrejas nem o dos metafísicos. Não é nada de absoluto mas algo de relativo que se pretende tornar absoluto.
Não fora o receio de parecer pedante e a simples enumeração dos poetas que falaram do seu deus quase não teria fim. Místicos não oficiais, "ateo-teístas" como a si próprio se classificaria Teixeira de Pascoaes, acabam quase todos por chegar a uma solução de compromisso em que o medianeiro não é um sacerdote oficial ou oficioso mas o amor e o objecto do amor. Em Dostoievski todos nós sabemos que é a piedade (o amor latu sensu) quem salva todos aqueles homens sem deus, que não acreditam nele e que o não querem, o deus identificável com uma ortodoxia, um dogma, uma ordem clerical. Diríamos que o deus dos poetas é o deus dos heréticos, restando indagar da legitimidade que lhes assiste de praticar uma tal identificação – liberdade = amor = deus e de cantar essa identidade.
Mas terá sentido perguntar o que é ou não é legítimo a um poeta que paga com o corpo as ilegitimidades do espírito? Será justo pedir-lhe mais alguma coisa ou coisa diferente dessa ilegitimidade? O poeta não se definirá exactamente pelas ilegalidades que pratica e não será tanto maior quanto mais graves elas forem?

Depois do surrealismo, deixaria de haver diferença, para o poeta, entre existência poética e existência prática. Na literatura portuguesa, porém, a Oeste da Europa, o surrealismo esteve de passagem e poucos escritores houve que identificassem totalmente a poesia que viveram com a vida que escreveram. Ao optar entre a regra e a excepção, a teoria e a prática, o pensamento e a existência, poucos nomes houve que possam comparar-se e susceptíveis de interessar à vanguarda europeia. Depois de Fernando Pessoa, tudo se passou sem grandes riscos e rasgos.
Por isso Raul de Carvalho permaneceu isolado. O seu caso não podia comparar-se e nenhum outro caso. Numa literatura exclusivamente em competição de talentos, teria de ficar deslocado. Para o situar e compreender, será necessário um campo comparativo muito mais vasto, um padrão que ultrapasse as nossas fronteiras literárias, uma escala de valores muito diferente da que, durante dezenas de anos, os críticos impuseram aqui como única e como a melhor.
Se essa escala não existe, há que o dizer com franqueza e ir procurá-la Se a poesia de Raul de Carvalho reduz certas obras a uma lastimável insignificância, há que interpretá-lo em função disso. Se a sua voz abafa outras vozes, há que o reconhecer sem reticências. Se a sua presença incomoda, não se tente abafá-la porque já é tarde. Se a sua obra formula problemas, inquieta pela complexidade e pelos silêncios, há que saber abordá-la (onde, como e quando), há que o ler com atenção. Se como críticos formos nós a fracassar, responsabilizemo-nos unicamente do falhanço e, como é óbvio, não a ele, não à sua poesia que possivelmente foi demais para isto...
Experiência após experiência, numa oficina de si próprio, Raul de Carvalho procurou caminhos, tentou inovações, viveu total e absolutamente uma aventura sem perguntar nunca, por covardia ou conforto, onde o levava essa aventura, a que abismos o conduzia. Há que optar, e Raul de Carvalho optou.
Nele se pode falar com propriedade de uma existência que foi resistência, uma maneira que o poeta tem de se fazer ao largo e, pelo instinto ou pela imaginação, navegar no rio subterrâneo de que só ele conhece o trajecto.
Pagou , é claro, no corpo essa aventura. Mas em que época ou lugar, não pagou o poeta com o corpo a poesia que (aparentemente) escreveu com as mãos? Onde e quando deixou a poesia de ser descida aos infernos , existência e resistência, combate corpo a corpo, luta de vida ou de morte, solidão, mesa da solidão e teoria da solidão? Onde e quando já houve poetas subsidiados? Ou , se os houve, que fez deles o tempo? A que nada os reduziu?
Poeta irregular, ''experimental'' no melhor e único sentido da palavra experimental, talvez não seja até um poeta de talento. Mas desde quando o talento teve que interessar para que houvesse génio e a arte foi condição prévia para que haja poesia?
Repete-se, talvez, e podem notar-se na sua obra duas ou três constantes temáticas. Mas por fidelidade a si próprio e nunca por escassez imaginativa .
Repete-se porque gira em torno de algumas obsessões centrais com uma persistência quase religiosa. Tão semelhante a um livro de horas, a um diário de guerra ou de exílio, a sua obra é essa procura, essa meditação, essa lenta e dolorosa reelaboração de si próprio. O autor de Parágrafos não separou nunca a experiência da experimentação, o ofício de existir do ofício de escrever.

Poderá falar-se, em Raul de Carvalho, de uma certa teimosia lírica e romântica (ultra-romântica mesmo), de uma tendência mística, de uma crença num sobrenatural pouco explícito e de implicações religiosas possivelmente contraditórias. Poderão outros acusá-lo de metaforização excessiva, caótica libertação de imagens e descontrolo verbal. Outros ainda, sensíveis ao autobiográfico e sem distinguir um palmo adiante do nariz, mui zelosos da pública moralidade e suas saias, dirão que o poeta acusa, em termos bem explícitos hábitos inusitados, propósitos fora do normal e (até quem sabe?) estranhas perversidades. Virão outros, de lente em punho, lamentar-se das anáforas, do discursivismo, da monotonia temática. O catedrático ou crítico oficial das letras queixar-se-á mesmo de que ele não escreveu sonetos e não carpinteirou nada bem os versos, as rimas, as sílabas. Outros, poetas de farda, dirão dele - Raul de Carvalho -, que usa e abusa do discurso coloquial. Para os que gostam de cor-de-rosa, a sua poesia pinta tudo de negro e "decadentista" é o melhor que se poderá dizer dela. Para os que preferem o negro, a poesia de Raul de Carvalho canta demasiado idílica ou idealìsticamente, o amor, a vida e a morte. Qualquer doutor em Estilística, arreliado e furibundo, arrepelando os sedosos cabelos de académico por correspondência e arrebitando o cachimbo de impaciência, o arremeterá por não saber onde o classificar, catalogar, arrumar.
Claro: Todos eles têm razão. Por isso mesmo e graças a eles, é que o poeta existe. Não para agradar à. Estilística e aos doutores, mas para gramar e descer aos infernos, que foi essa e sempre essa e só essa a sua função através do tempo.
Quer os críticos tenham dito que sim, ou dito que não, ou não tenham dito nada - aguardemos que o futuro fale dele. Porque o tempo há-de falar e querer conhecê-lo. Não só como e porque o atesta a obra publicada, não só como e porque o atesta a obra inédita (mais vasta, mais complexa e mais significante do que a publicada,), mas porque, numa e noutra, foi sempre jogada e comprometida nessa obra toda uma existência. A vida é afinal e sempre o preço com que o poeta paga a imortalidade que lhe pertence.
- - - - -
(*) Com certeza inédito, este texto fala mais do Afonso do que propriamente do Raul. Acho que valeu a pena escrevê-lo.

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R. LULL 91

91-03-03-ls-ce> leituras selectas do ac – 5 estrelas - sexta-feira, 7 de Março de 2003 - lulio> livros>14065 caracteres

3-3-1991

RAIMUNDO LÚLIO - FICHA ENCICLOPÉDICA

Famoso filósofo medieval, poeta, teólogo e missionário maiorquino, chamado Doctor Iluminatissimus, Raimundo Lull foi o primeiro apóstolo do mundo muçulmano, numa época em que o islamismo era ele mesmo fortemente missionário, espalhando-se pelo arquipélago malaio e pela Índia, Geórgia, Egipto e entre os Mongóis , considerando crime de morte a apostasia dos seus.
Nasceu em Palma de Maiorca, circa 1235, de uma família nobre catalã ali estabelecida com extensas terras, desde a reconquista aos árabes.
O jovem Raimundo, casado cedo e trasladado ao continente, onde foi feito senescal na corte de Jaime II, experimentou as agitações de uma aventurosa e dissipada existência; mas em Julho de 1266, à volta dos trinta anos, renunciou subitamente à poesia erótica que cultivava e que o faz ser considerado o fundador da escola catalã de poesia, e à vida mundana que levava, desfez-se da maior parte dos seus cabedais, ficando com o indispensável para sua manutenção e de sua mulher e filhos e entregou-se, não a uma vida contemplativa, que a sua alma ardente e entranhadamente imaginosa não poderia levar, mas à meditação e ao estudo, no desejo de aplicar as suas faculdades na extensão do cristianismo.
Tem-se dito que tomou o hábito franciscano, outros pensam que foi irmão terceiro dessa ordem, mas nada está claramente comprovado a esse respeito, como em tantos outros particulares da sua vida.
O seu grande inimigo, inquisidor de Aragão Nicolau Aymerich, que forjou a célebre bula de S. Gregório para o perder, considera--o um comerciante herege, e denuncia quinhentas proposições suas como heterodoxas.
Em contacto com os sarracenos vizinhos e com os vestígios que eles haveriam deixado nas Baleares, deixou Lúlio medrar em seu espírito o fervoroso desejo de converter os muçulmanos com uma nova cruzada.
Mas esta cruzada, em seu desejo, não era da cruz no punho das espadas mas de uma cruz ideal , de pregação inteligente e perseverante, de lógica e de paciência.
Em vão procurou interessar papas e cardeais e até reis, no seu sonhado empreendimento.
Desacompanhado de todo o auxílio, viajou por fim para Tunes.
Tinha então 56 anos e era esse o ano em que chegava à Europa Ocidental a confrangedora notícia da queda de Acre e do fim do estado cristão da Palestina.
Antes deste decisivo sucesso da sua vida, peregrinara a Santiago de Compostela, cursara e escola de Montpellier, depois dos estudos particulares em Palma e a uma solidão completa se votara por algum tempo, preparando-se para a sua cruzada.
Para conhecer o árabe, comprara um escravo sarraceno com quem estudou durante anos, e que por fim atentou contra a vida do amo.
Dotado de imaginação ardente, quis inventar um método novo de lógica, uma espécia de mecânica filosófica, com o auxílio da qual todos podiam dissertar com subtileza sobre qualquer matéria.
Ele mesmo veio a dar solução a quatro mil problemas postos, por meio do seu método,chamado « Ars Generalis Sive Magna», porventura a sua obra mais divulgada.
Como os árabes tinham tido o primado da ciência e da filosofia mediterrânicas, ele entendia que era com um cristianismo racional que poderia conquistá-los.
Estudou Averrois para o combater, sempre com um alvo missionário.
A chamada « doutrina lulliana», tendente a demonstrar pelo raciocínio a verdade dos dogmas cristãos, veio a ser renovada trezentos anos depois por Giordano Bruno.
Foi por meio de incríveis esforços que Lúlio conseguiu difundir na Europa a sua doutrina da fé provada, e se é certo que veio a ser publicamente ensinada em 1298, graças ao patrocínio de Jaime II e Filipe o Belo, contudo não foi apreciada devidamente durante três séculos.
As vistas do filósofo estavam demasiadamente acima do tempo em que viveu e não poderia provocar mais do que uma vã e fútil admiração.
Em Tunes conseguiu convencer alguns islamitas reputados e muitos outros do povo, que receberam o baptismo cristão; mas um zeloso imame aconselhou às autoridades o seu encarceramento e morte, em razão do perigo que ele representava.
Depois de algum tempo, foi-lhe comutada a pena de morte na de banimento.
Não lhe sofreu o ânimo os seus conversos, e voltou de novo a Tunes, mas a 30-6-1315, em Bugia, na Argélia, morreu apedrejado.
Figura desconcertante, assim o consideram alguns críticos, e assim serão forçados a considerá-los os leitores das numerosas biografias e críticas que lhe têm sido feitas.
Auxiliarão, contudo, no dédalo das considerações a fazer, estes dois factos: que são considerados espúrios, com forte motivo, os trabalhos de alquimia e de cabala que lhe foram atribuídos e estão coleccionados com as suas obras; e que as ideias de Pedro Venerabilis (morto em 1157), advogadas por Lúlio e adoptadas pela primeira vez por ele na missão prática, o levaram e especializar-se não só na língua como no pensamento árabe, o que não se poderia dar sem alguma influência verificada desse pensamento na sua obra.
«Charlatão vádio» lhe chamou Bacon com extremo rigor e injustiça.
Mesmo que haja juntado as ciências ocultas, a cabala, a magia, a alquimia aos seus estudos sérios, ainda se poderá perguntar a que título e como as estudou.
A Igreja de Roma tem oscilado entre condená-lo como heterodoxo e honrá-lo como mártir , não podendo desdenhar o testemunho, que a história lhe dá, de precursor das missões modernas.
O Dr. Joaquim de Carvalho reconhece uma rápida influência de Lúlio no « Leal Conselheiro» de D. Duarte.
O escultor catalão João Samsó erigiu-lhe uma estátua cheia de nobreza e as suas cinzas, recolhidas em Bugia e transportadas, repousam num sarcófago historiado na sua cidade natal.
As suas obras foram publicadas em Mogúncia, em dez volumes, de 1722 a 42.
Por meio da alquimia, Lúlio preparou, pela primeira vez, o álcool anidro, o carbonato de potássio a partir do creme de tártaro, descreveu a água régia, etc.
*
LULISMO - É assim designado, não tanto o projecto de Raimundo Lull relativo a uma ciência universal - que interessou pensadores da craveira de Nicolau de Cusa, Pico, Bruno, Descartes, Bacon, Gassendi e Leibniz - mas o germe de uma «escola» que , logo após a morte de Raimundo Lull, lançou raízes em Valência, Barcelona e Maiorca, de onde irradiou para Castela, Portugal e Itália.
Pedro Dagui é a figura central desta Lulismo catalão pré-renascentista.
Simultaneamente surge em Paris, em redor do fundo ms. legado por Lull à Cartuxa de Vauvert e dirigido por T. Le Myésier, um pequeno núcleo lulista.
Com este se virá a relacionar, provavelmente através do flamengo H. de Campo, o Lulismo de Nicolau de Cusa.
Em pleno renascimento, Lefèbvre d´Étape dá nova vida, em Paris, ao Lulismo de carácter religioso e místico, ao passo que na Alemanha, A. de Nettesheim e Paracelso cultivam o Lulismo, respectivamente, lógico-enciclopédico e médico-alquimista.
Na confluência deste Lulismo europeu renascentista surge o Lulismo de Giordano Bruno e, posteriormente, o do humanista protestante alemão J.E. Alsted.
Entretanto, em Espanha, sob a protecção de Cisneros e Filipe II, a escola lulista tinha-se difundido com fortes raízes.
Surgem cátedras lulistas em várias universidades, principalmente em Maiorca.
N. de Pachs, J. L. Vileta e F. Marzal são os mestres mais influentes na época. À margem da actividade escolar, o Lulismo influi em figuras que rodeiam Filipe II, como P. de Guevara e J. de Herrera.
No século XVII, os jesuítas S. Izquierdo e A. Kirchner reelaboram um Lulismo em sentido enciclopédico.
Em ambos se inspirará a «Dissertatio Art Combinatória» de Leibnitz.
Ainda no século XVIII se encontram duas notáveis aflorações de Lulismo, uma em Mogúncia, graças a J. Salsinger, autor de uma edição monumental das obras de Lull, e outra em Maiorca, com figuras como o jesuíta J. Costurer e, sobretudo, o cistercience A. R. Pascual.
A par do Lulismo autêntico, encontra-se um Lulismo espúrio, centrado no «Testamentum» e noutros escritos pseudo-lulianos de alquimia, e até uma correnmte antilulista, cujos primeiros e principais representantes são, na Catalunha, o inquisidor N. Eymerich, e , em Paris, o chanceler Gerson. Desde o fim do século XIX renasceu, em Espanha e fora dela, o estudo de Raimundo Lull, mas agora ao nível da história, sem pretender construir uma corrente de pensamento.
*
LULISMO EM PORTUGAL - Foi persistente a influência do Lulismo em Portugal, atingindo mesmo certa irradiação ( seculos XV-XVI), desenvolvendo-se a produção literária, de valor desigual, em três direcções ou tendências (seguindo a classificação proposta por Carreras Artau):
A) Polémico-racionalista, de que ficaram numerosos testemunhos da disputa religiosa de cristãos contra judeus e muçulmanos, sendo obra capital o «Livro da Corte Enperial» (século XV), tendo Lúlio servido não só de inspiração quanto à temática e finalidade apologética como ainda no directo aproveitamento textual( Cruz Pontes).
B) Lógico-enciclopedista, atestada por vastas compilações, em códices medievais pertencentes às bibliotecas monásticas de Sta Cruz de Coimbra e de Sta Maria de Alcobaça.
Denotando persistência de preocupações lulianas até ao século seguinte, ficou-nos o incunábulo gótico «Ars inventiva veritatis cum Commento» ( Valência,15=5).
Em 1431, documenta-se a presença em Lisboa de um Mestre Adrião, que ensinava porventura em escola privada, a arte luliana: e será a esses sequazes de Lúlio que D. Duarte, no «Leal Conselheiro» alude, censurando neles a intenção demonstrativa nas matérias do Dogma, pela sua racionalização, muito embora, no domínio da Moral, o monarca cite como autoridade e aceite, em vários passos da obra,teses lulistas.
Registam-se ainda influências lulistas, mais ou menos esparsas, em outra obras da época, como a «Virtuosa Bemfeitoria» e o « Bosque Deleitoso».
C) Mística,feição que tem levado a atribuir papel relevante à formação da mundividência colectiva portuguesa, e que explica, senão contribuiu, para originar a Expansão.
Segundo um dos mais destacados defensores desta tese, Jaime Cortesão, os franciscanos teriam sido «os principais criadores da mística dos descobrimentos» e, por sua vez , como intérprete dos ideis seráficos, Lull é considerado « o tipo porventura mais perfeito do tipo de proselitismo franciscano».
Com efeito, o Maiorquino defendeu o apostolado missionário com vista à conversão dos gentios, e daí a apologia do estudo das línguas orientais, sobretudo do árabe, a conquista dos estados muçulmanos desde Ceuta até ao Levante , chegando a sugerir, segundo Beazley, o plano, de circum-navegar a África para alcançar a Índia.
Sob este aspecto, as preocupações da época pela cartografia, astrologia, astronomia e náutica levavam a descobrir novos motivos de interesse no «opus»luliano, ou em escritos apócrifos (pseudo-lulismo)de carácter esotérico e cabalístico.
No Renascimento, o Lulismo traduz-se na terminologia e na feição de teologia racionalizante de algumas obras portuguesas, denotando por vezes a nova ambiência pré-reformista, como no caso de Gil Vicente( A.J. Saraiva)ou, com matizes humanistas, na «Ropica Pnefma» de João de Barros.
*
RAMON LULL ( Enciclopédia Verbo) - Missionário e pensador catalão ( Palma de Maiorca, entre 1232 e 1235).
Depois de levar vida mundana, abandonando mulher e filhos, entregou-se ao apostolado.
Desde então a sua vida é um contínuo peregrinar por Barcelona, Montpellier, corte papal, Paris, Génova, Norte de África, Chipre e Palestina, sempre com o mesmo objectivo de dar a conhecer a sua «Ars Magna» e de a pôr ao serviço da conversão de infiéis, em especial judeus e muçulmanos.
Para o fim da vida, o missionário dá lugar ao apologista que fez frente ao crescente averroísmo da Sorbonne.
No meio da sua vida agitada, pôde compor uns 256 livros ( com 27 mil páginas) que reflectem todos os aspectos do saber.
Lull escreveu em árabee, mais frequentemente, em catalão, fazendo com que logo os seus escritos fossem traduzidos para latim.
Se bem que o pensamento de Lull se não exaura com a «Ars Magna», esta obra é a que lhe mereceu maior fama.
Está-lhe subjacente o ideal missionário.
Lull parte da convicção da unidade da verdade , e daí vai à busca de um método para demonstrar as verdades da fé aos infiéis por meio das chamadas «razões necessárias».
Para isso põe em Deus uma série de princípios ou atributos essenciais, como a bondade, a grandeza, a eternidade, o poder, a sabedoria, etc., esforçando-se por relacioná-los com a sua semelhança nas criaturas.
Surge assim uma lógica comparativa, não formal mas material e, por assim dizer, ontológica, na qual o movimento dos conceitos segue o movimento da realidade.
Para facilitar o seu uso, Lull recorre a um sistema de letras, números e figuras geométricas que converte a sua arte num antepassado da lógica simbólica.
Certamente reside aqui - neste esforço para sistematizar e unificar o saber - a raiz da sedução que o pensamento de Lull exerceu na história.
Por isto tudo, Lull foi acusado de racionalismo e a sua doutrina condenada por Gregório XI, em 1376 ( se bem que, posteriormente, Martinho V declarasse a bula papal sub-reptícia e nula).
Hoje é bem claro que as razões necessárias de Lull não passam de razões de congruência e que de, modo geral, o seu pensamento se situa no horizonte pré-tomista de Stº Anselmo e dos Victorinos, com o seu optimismo racional, mas tembém com uma visão agustiniana das relações entre a razão e a fé.
Sublinhe-se que a «Arte» de Lull é, ao mesmo tempo, procedimento lógico e método de contemplação.
Em Lull, o lógico e o polemista andam juntos com o místico.
À inteligência compete abrir o caminho para Deus, logo se retirando para deixar caminho livre ao amor .
O termo da filosofia é a porta para a mística.
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Monday, February 27, 2006

UNAMUNO 64

dor-ls-ie> quarta-feira, 6 de Novembro de 2002 –> sinopse muito feliz de uma ideia-chave da ideia ecológica – urgente em pdf e on line, até porque publicado – uma passagem de raspão pelo «existencialismo», o qual, que eu saiba, nunca foi reivindicado pelos ideólogos da ecologia...

A EXCEPÇÃO E A REGRA (*)

(*) (In «Jornal de Notícias», 27-2-1964)

1-Destinando-se a «máquina de fazer felicidade» que deve idealmente ser toda a máquina política, a eliminar o sofrimento, há no entanto lugar para que se pergunte: porque o faz? Com que direito o faz?
Se a dor, física e moral, é para alguns um refúgio, para outros uma explicação e uma finalidade da existência, para outros ainda um manancial criador, com que direito o político quer eliminá-la?
Dir-se-á que a pergunta é de loucos e que a maioria não quer sofrer. A maioria quer ser feliz e é para a maioria que a política trabalha, para a regra e não para a excepção, para a simetria e não para o esgar, para a estabilidade e não para a vertigem.
Dir-se-á que este «sentido trágico da «vida» é apenas, quando é, próprio de minorias e minorias de anormais, opondo-se drasticamente ao «sentido político da existência», próprio de maiorias e de maiorias de normais, ou que, exactamente por serem maiorias, monopolizam a seu favor o conceito de normalidade.
Verificá-lo, porém, é subentender a legitimidade da minoria, do homem assimétrico, do que reclama a liberdade de ser minoria e o direito, entro outros, à infelicidade e ao sofrimento.
Nada obsta a que se fabrique, e quanto antes, sem sofismas, sem atrasos, sem mentiras, sem o principio retrógrado do «distrair e adiar», a «felicidade objectiva» das maiorias, de que as minorias afinal também beneficiariam ... Se a política existe, que trabalhe a política para o que serve: pão para todos, justiça para todos, amor para todos.
Mas que, em nome disso, ou em nome do que disso se promete (eternamente promete, ai de nós!) não se cale a voz da minoria, a minoria assimétrica, a minoria do esgar e da vertigem, a minoria do «sentido trágico da existência».

2 - Georges Bernanos chamou à dor a maravilha do universo: «Le malheur des hommes est la merveille de l'univers.»; Dostoievski afirmava que «Sofrer é a grande missão»; Teixeira de Pascoaes deixou estes dois versos admiráveis: «A vida é dor. Sofrer é conhecer/Só os olhos que choram sabem ver.».
Proclamar o direito do homem à infelicidade e ao sofrimento, pode ser uma loucura, mas é também propor um real e grave problema à política e aos políticos, empenhados que estes estejam em obter soluções abstractas e objectivas para a felicidade abstracta e objectiva de um homem necessariamente abstracto e objectivo.

3-Nas sociedades padronizadas segundo um ideal hedonístico de felicidade -seja esse ideal mais socialista ou mais liberal, mais democrático ou mais burocrático - não tem escapado a alguns observadores a inexistência de algo - um enigmático quid - que existe em sociedades menos prósperas e felizes.
Claro que ninguém quererá, apressada e exageradamente, concluir que, nesses paraísos da higiene e do civismo, da felicidade e do desafogo económico que são, por exemplo, os países nórdicos da Europa, o que falta seja precisamente a infelicidade, a porcaria, o desgrenhamento cívico-parlamentar dos países latinos.
Mas talvez se pudesse verificar que a sociedade ideal ou quase ideal deixa margem para que alguns homens não consigam encontrar nela a pátria ideal; só na aparência os filósofos do desespero, os autores trágicos, os místicos e os suicidas pertenceriam de direito às sociedades desesperados, política e socialmente desesperadas, e ainda que o sofrimento parece desvelar uma ponta do véu que vela a esfinge, o sofrimento ensina, o sofrimento parece ser via de gnose e libertação.
Os nomes portugueses de Fialho, Antero, Camilo, Pascoaes, Fernando Pessoa, Manuel Laranjeira, Raul Brandão, confirmam uma tradição trágica do espírito português.
«Agora interessa-me o fenómeno da frequência com que se dão suicídios em Portugal, terra trágica» - escreve Miguel de Unamuno numa carta a Teixeira de Pascoaes e noutra faz notar o verso de António Nobre, «aquel terribel verso de Nobre: Amigos / que desgraça nascer em Portugal!».
Repare-se, porém, que uma coisa é, para Nobre e para outros nobres, a desgraça de nascer em Portugal e outra coisa, independente daquela, a «vocação» de alguns (ou muitos) portugueses para o sofrimento entendido como forma de experiência existencial e de gnose.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em 27 de Fevereiro de 1964
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HIPPIES 71

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O SISMO DA NOVA UTOPIA

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «O Século Ilustrado», coluna «Futuro», 27-2-1971

Até há pouco tempo era escassa, em português, a bibliografia sobre a juventude do nosso tempo. Mas à medida que o fenómeno ultrapassou a fase de sintoma para se declarar explosivo e uma das principais revoluções não violentas do nosso tempo, os editores portugueses, percebendo a estratégia, utilizaram táctica condizente.
E alguns títulos apareceram nos escaparates, sobre a juventude em geral e os «hippies» em particular: «Os Hippies», reportagem da «Time-Life», em edição da Europa-América; «Os Hippies - Quem os Conhece», na colecção « Cadernos Dom Quixote», são dois dos mais recentes. Na Colecção «Cadernos do Século», anuncia-se para o número 9 o título «Juventude a Relações Humanas», que irá corresponder ao interesse suscitado por um tema cada vez mais controverso.
Nele, pelo menos, convergem forças de tal modo importantes e dele se esperam mutações de tal modo profundas, que não admira esta expectativa, geral, mesclada de simpatia e de hostilidade. Ainda quando a Imprensa articula críticas ou diatribes contra os «hippies», nunca deixa de acentuar que eles pretendem coisas simples e, afinal, velhas de sempre: paz, liberdade, amor, eis uma trilogia que entrou na banalidade de todas as épocas, lugares-comuns que os absurdos da idade tecnológica têm, ao que parece, imensa dificuldade em permitir, aceitar e compreender.
Os profetas da Nova Utopia apenas desejam coisas «impossíveis» porque a marcha da sociedade e da História tornou impossíveis as coisas mais óbvias e necessárias. Apenas porque um pretenso progresso tecnológico vem dificultando as mais elementares e básicas e radicais das aspirações humanas. Eles apenas se revoltam contra o que oprime e reprime o homem, impossibilita a existência, corrompe a liberdade. O «impossível» deles esteve, afinal, como possível no sonho de todos os que trabalharam e sonharam pelo progresso humano.
Este mito - o do progresso -, indissoluvelmente ligado a outro - o do futuro -, pode criticar-se enquanto mito, mas a verdade é que tem constituído a mola-real, a ideia-força que lançou o homem, mergulhado no medo, no desespero e no niilismo, para além de si próprio, das suas fronteiras a limitações.
Se é verdade que um intrincado tecido mitológico recobre hoje o cérebro humano que, bombardeado pelos «mass media», não tem grande capacidade de raciocínio e de paixão crítica, isso não impede alguns de considerarem como lícitos certos mitos que, ao contrário da maioria, são positivos e empurram os homens para a frente, para a saída da caverna platónica... Esses mitos não são obstáculos ao progresso, mas o seu motor, o próprio progresso, desde que aliados, sempre, ao conhecimento da realidade histórica onde se implantem.
Numa tradução para língua espanhola (1), Eugen Bohler distingue entre mitologia a ideologia que, embora algumas vezes sejam a mesma coisa, outras vezes se separam e mesmo opõem. Tudo está em saber que espécie de mitos compõem o sistema estudado. No mito do futuro encontra Eugen Bohler a origem de muitos outros, pois a distanciação ou ruptura que ele abre ao pensamento terá de ser colmatada (preenchida) com uma rede mitológica consciente ou inconscientemente elaborada pela colectividade (através de todas as suas linguagens artísticas), cindida essa colectividade entre presente e não presente.
Esta psicologia do mito, talvez discutível, não deixa de apontar vantajosas conclusões para diagnóstico de uma juventude que fez do presente-passado tábua rasa, começando a dar exemplos de presente-futuro, que todas as academias e fortalezas e sistemas do mundo logo combateram a reprimiram, denegrindo e deturpando sempre que não podiam usar meios mais violentos. Cite-se, por exemplo, a maneira como foram caluniados os festivais de Wight e de Woodstock.
No fundo, a juventude utopista do nosso tempo nada mais quer do que seguir a linha que se pode vincular, por exemplo, ao Platão da «República». É estranho como com tão clássico e greco-latino programa, hoje os descendentes de Platão, Campanella ou de «sir» Thomas Morus - sonhador incorrecto, malcriado a incómodo, como se sabe - não obtêm a simpatia dos mais idosos e experientes: pais ou professores encarregados de tutelar as novas gerações.
Quem ler, através de uma recente tradução para espanhol(2), «As Utopias Socialistas», concluirá que a juventude neo-utopista de hoje nada mais faz do que pôr em prática as velhas teorias da nossa velha e respeitável cultura, de que são exemplos já muito próximos H.G. Wells, Júlio Verne, George Orwell e Aldous Huxley.
Ou será que a utopia contém sempre uma dose de crítica à realidade constituída? Sonhar o futuro, tal como a «alma» humana o quer e necessita, seria, assim, uma incómoda maneira de abanar o presente. Assim como um sismo de média violência. Assim como o sismo que na prototípica cidade de Los Angeles só assustou os que aí não estão acostumados a ser deles - sismos humanos - os seus próprios promotores.
Entre os inovadores a visionários, sempre houve homens « subterrâneos» que, educados ou não por Dostoievski, irromperam à luz do Sol com uma perigosa força cataclísmica. Daí que os pacíficos, os barbudos e pobres (desarmados) profetas da Nova Utopia sejam olhados com tanta reserva e, muitas vezes, de armas na mão, quando a verdade que eles sonham é apenas um lugar-comum de todos os tempos e de todos os lugares - cristãos ou budistas - em que ainda não havia televisão: o sonho da comunidade tribal onde todos possam viver a deixar viver. Como é que programa tão simples e tão lindo, pode assustar-nos tanto?
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(1) «Problema del Hombre Moderno», Eugen Bohler, Alianza Editorial, Madrid, 1967.
(2) «Las Utopias Socialistas», de A.L. Morton, Ediciones Martinez Roca, Barcelona, 1970.
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «O Século Ilustrado», coluna «Futuro», 27-2-1971
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PETER HANDKE 92

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ONDE ESTÁ O OXIGÉNIO DO UNIVERSO HUMANO?

Lisboa, 27/2/1992 - Todos procuram saber o que é o oxigénio do espírito, aquele elemento simples e eterno e coerente e sem fissuras do qual toda a nossa vida psíquica depende. E cada um encontrou entidades, quem sabe se arquétipos, quem sabe se paradigmas quem sabe se quintessências, que podem candidatar-se a esse papel.
Na Fadiga encontrou Peter Handke o princípio universal
No Jogo viu Huizinga o Todo
Na Dialéctica sonhou Marx conter-se o universo
Na interdependência pensam estar os ecólogos a quintessência
Na Crítica acreditam outros, na Matemática, na Lógica e suas categorias perfeitas
No Amor viram os místicos do Amor a última Ratio
Na Estrutura viram os estruturalistas Tudo, enquanto outros o viram no Tempo e os mais antigos na Água e os contemporâneos no Ar
No Meio Ambiente está (quase) tudo, dizem outros e de acordo com um budismo naif ou zen, no Vazio pleno ou no Pleno Vazio é que está o Busílis
Na Dor Humana como absoluto acreditam os pessimistas, os realistas como Gautama Buda, acreditou Pascoaes, que hesitou entre a Saudade do futuro e a Saudade do passado como a categoria vectorial do Absoluto
Outros mais levianos não hesitaram e queimaram a palavra de todas as palavras: deus, enquanto os mais modestos e terra a terra falaram de Yoga ou mera religação-religião
A Inveja Social e a Luta de Classes foi para os marxistas e nem só o motor da História, quando se acreditava que a história era motorizada
Deificada, a Pobreza - nomeadamente se atinge o estágio da Miséria - pode bem ser o Absoluto num mundo relativo
Os surrealistas em geral descobriram o Humor e o André Breton em particular o Humor Negro, alfa e ómega da Imaginação Criadora, essa estrela de cinco pontas
Os gregos da época clássica não estiveram com meias medidas e inventaram logo quatro nomes para deus: «Mythos», «Logos», «Ethos» e «Eros», este acrescido posteriormente, via Freud, do Tanatos
Na ordem física, a simbologia do Sol tem querido servir de ersatz a Deus e quase o conseguiu, mesmo quando Hitler retorceu a ponta da suástica
Liberdade, «cor de homem» para Breton e Éluard, surge eventual e anarquicamente como porta-estandarte do Todo que falta ao Nada que é o Homem
O Verbo foi Deus nos textos do Velho testamento [ ???] e se anda hoje, em plena «manipulação do homem pelo homem», pelas ruas da amargura não é porque se tenham esquecido dele mas porque se lembram dele demasiado os que professam a religião que diz: «manipulai-vos uns aos outros»
Dos românticos aos ultraromânticos e decadentistas, esteve em moda a Poesia ascender ao podium do Absoluto e o Vate a Profeta de todos os tempos: ainda não se sabe, com tanta poeira metafísica, se a poesia foi afinal tanto como os críticos disseram depois do que (des)fizeram
Karma vem desde o princípio dos tempos como o princípio universal por excelência e a sua actualidade confirma-se quando, com o novo conceito de entropia, alguns começam a percer que «tudo é energia» e que não outra moral, nem outra ética, nem outra lógica, nem outro referencial axiológico: percebeu-se o valor kármico da Entropia quando algumas correntes contemporâneas detectaram no Desperdício o vectoer central de todo um Modelo de Civilização, que suga aos Pobres para dar aos Ricos
Na Violência os sociólogos encontram o que Nietzsche encontrou na Vontade de Poder
No tédio e no stress encontrei eu a minha metafísica mas também outros suicidas e eternos chatiados
No Doping e na Droga encontrou o alucinado Burroughs, o que outros encontraram no Aleatório -- buraco negro do universo humano
Na Metáfora e no Símbolo viram os artistas o seu quinto Céu, o motor universal e por isso Erich Fromm lhe chamou a linguagem esquecida
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VERSO E REVERSO - CARTA DE PETER HANDKE A STEFAN ZWEIG SOBRE A SORTE DA SORTE GRANDE

# Forum dos Aflitos
# Leituras Moraes
# Textos Barrocos

Lisboa, 27 de Fevereiro de 1992

Pesquisas levadas a cabo pela equipa de terreno do Instituto Polaco de Arqueologia Industrial, reforçaram os cientistas na convicção de que o texto aparecido nas cavernas de Maastrich, a duzentos quilómetros de Viena de Áustria, poderia ser atribuído ao escritor Peter Handke, aquele fatigado escritor que da Fadiga fez oxigénio, metafísica, ontologia, corpo matricial do universo, e que, em boa parte por isso, continua sem exegese crítica possível que lhe valha, irredutível a todos os reducionismos da análise psicopatológica e semântica, quiçá estruturalista, a mais usual nos açougues europeus de carne fresca e virgem.
Mas os arqueólogos de Maastrich, depois de uma análise espectral ao texto descoberto, concluem pela veracidade da tese: os manuscritos são, de facto, de Peter Handke, que os terá manuscrito (obviamente) e dado a dactilografar posteriormente à sua amada Catarina, que subitamente atacada de gripe asiática teria descurado a tarefa do seu amorável noivo.
Esses textos, ameaçados de apocrificidade, correspondem a uma fase menos desejável da sua inexistente carreira. Peter, como hoje se sabe, esteve sempre atrás das grades (em sentido figurado), jamais conseguiu ter força para dar um passo em frente, deixou-se arrastar e submergir, como uma casca de noz ou -- na melhor das hipóteses -- uma rolha de cortiça que a corrente do Danúbio levasse até ao Mar Negro.
Entre os manuscritos descobertos nas profundas cavernas de Hoolsteicht, Handke preconiza a feitura de um testamento ponderal que ninguém sabe se chegou a concretizar e que assumia forma de uma carta a Stefan Zweig, um dos cronistas da Viena imperial, biógrafo deslumbrado com as luzes da cidade luz, com a grande capital da Europa antes do império Nazi pôr tudo em escombros e em ordem.
Em essa carta a Zweig, o escritor da Fadiga fazia notar que todo o verso tem reverso e que ele, sismógrafo não oficial das baixas frequências, dos movimentos subtis da História e da Matéria, não adivinhava nada de bom em função desse desmedido poderio imperial dos Habsburgos e da sua cidade símbolo, a Viena das valsas do Strauss que terá sido, segundo os mentideros da época, colaboracionista do Terceiro Reich. Peter defende a tese, nessa carta a Stefan Zweig, de que as valsas de Strauss são uma espécie de canto do cisne -- outras, mais barrocos, diriam um «requiem» -- anunciador dos campos de concentração.
Dos muitos judeus que então emigraram para o Novo Mundo e nem só, ou dos que se suicidaram como Bethleheim [ ??? ], Zweig, Walter Benjamim, ninguém pressentia, mais do que Handke, a vaga que iria subir na Europa.
O que hoje se pode perguntar, na esteira de Handke -- que andava sempre fatigado sem ninguém perceber porquê -- é que sinais se podem hoje pressentir de um possível holocausto que esteja para acontecer em breve. O melhor prenúncio de uma vaga má é sempre uma estranha vaga melhor que boa, tal como a que Viena viveu nos deslumbrantes e áureos tempos e antes da Segunda Guerra Mundial.
Quem nasceu à volta de 1933 nasceu de facto com a Era a que Handke, em outro dos seus inéditos semi-apócrifos, chama Era pós Apocalíptica, aquilo a que mais tarde, igualmente profeta, o Professor de ginástica e Educação Física Manuel Sérgio chamaria «pós modernismo».
Na carta inédita que o Instituto Polaco exumou das lamas vulcânicas de um vesúvio que terá estado em acção -- sem ninguém dar por isso -- durante o tempo dos crematórios, como resposta da Natureza ao extermínio em massa e às labaredas dos fornos, Handke refere a Zweig essa angústia na boca do estômago que o obcecava e que o levaria, em vida, a escrever o ensaio pai de todos os ensaios que foi «a vida enquanto fadiga crónica», ideia-chave que, depois de Handke, poucos teriam a ideia de conceber através de parto normal.
Só trinta anos mais tarde, os magazines e cientistas iriam falar de «stress». Só sir Tomas Bernhard ou mister Arthur Schnitzler se lhe igualam, na perspicácia analítica da Chatice e sua génese causal.
Pela força do pressentimento, pelo ardor profético de que vem animado esse terremoto sensível e autodestrutivo que foi autor semi-clandestino chamado Peter Handke, poucos se lhe igualam. Se a história respira, se há movimentos in e movimentos yang, se a uma crista da onda corresponde uma vaga, se o verso tem sempre um reverso, há que saber quem esteve primeiro, o que é causa e o que é efeito; se o esplendor e triunfo e poderio dos Habsburgos, com quase toda a Europa válida do tempo no Papo, ou se o Hitler que também tinha um apetite voraz e que, se não papou a Europa, tentou pelo menos aboletar-se com uns milhões de esqueletos, já depois de extraída a carne, o óleo e o marfim dos dentes.
Sigam a rota de Handke e é possível que cheguem a entender o inentendível. Tomem por boa a tese dele e talvez consigam explicar o inexplicável. Tomem o hipótese por tese e Juno pela nuvem, e talvez estejam a ler a história no sentido correcto.
Do que Handke nos alertou com seus trejeitos incompreensíveis, foi de que talvez a gente esteja a ler o livro da história do fim para o princípio. Ou -- mais louco ainda -- com as letras de pernas pró ar. De acordo com o que o Instituto Polaco deixou expresso na adenda à carta do escritor, tudo está em aberto, a própria história ainda não é um livro completo, a filosofia oscila entre o serviço militar da tecnocracia e o desvendar crítico dos problemas.
Tempo de encruzilhada, e sabendo pela prática que tudo se paga, que nada é gratuito, que o progresso tem preço e o triunfo um preço ainda maior, não custa crer no aviso de Handke e na ilusão naif de Zweig: este nunca terá percebido a «outra face» dos acontecimentos, opaco que esteve sempre ao dinamismo do bem e do mal, exaltando apenas um lado do mecanismo universal.
Quando ele escolhe personalidades vincadas e fortes para biografar -- aquilo a que todos nós chamamos génios -- , dá mostra desse mesmo hierarquismo e é por isso que a carta não foi um acaso, e muito menos acaso ter sido dirigida a Zweig, matagal de lugares-comuns mas apesar disso um homem com eles no sítio, pelo menos parece, um divulgador que entusiasmou gerações na vida de gente ilustre, enfim, um judeu que olhou a história sem perceber porque era e foi vítima de tudo aquilo que colectiva e individualmente o atingia.
O karma na história é ainda mais difícil de percepcionar do que o Karma na vida individual de cada um. Como é impossível perceber no ocidente laico e aintifundamentalista que há sempre uma causa para tudo o que acontece. Toda a gente culpa a sorte por não lhe sair a sorte grande. Mas toda a gente diz que teve uma grande sorte quando a sorte grande lhe sai.
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